17 Janeiro 2025
"Gaza hospeda o maior grupo de crianças amputadas da história moderna”, declarou Lisa Doughten, diretora da divisão de finanças e parcerias do Escritório de Assuntos Humanitários da ONU no Conselho de Segurança das Nações Unidas", informa Tommaso Di Francesco, poeta italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 16-01-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a essa altura, o que foi alcançado ontem é muito mais do que a paz que nunca chegou: é uma zona temporal, uma “janela de oportunidade”, dizem as ONGs - fundamental para recuperar a humanidade e os direitos, para ter voz, para levantá-la, para pretender a verdade - deve ser seguida pela prisão por crimes de guerra de Netanyahu, talvez agora pronto a cantar vitória, a novas candidaturas e aventuras políticas".
Há duas maneiras de enfrentar aquela que é declarado como uma “trégua provisória de 42 dias em Gaza”, aparentemente aceita pelo Hamas, pelo primeiro-ministro israelense Netanyahu e pela IDF, o exército de Israel, que em um tiro ao pato cotidiano chamado vergonhosamente de “guerra” pela grande mídia, bombardeou os “desumanos” na Faixa de Gaza, resultando em mais de 46.000 civis mortos, entre os quais 17.000 crianças e milhares e milhares de mulheres, após o massacre de 7 de outubro e o sequestro de 240 reféns israelenses pelo Hamas.
A primeira maneira, tradicional, mas absolutamente necessária, é avaliar os prós e os contras, juntamente com a veracidade dos compromissos assumidos pelas partes no acordo; em seguida, quem ganhou e quem perdeu e por que o massacre continuou, se é que é possível, depois de tanta devastação, esquematizar assim o resultado, mas é importante fazer isso porque a trégua era possível mesmo há 8 meses; e, por fim, o dar e receber, porque está claro que a concessão da trégua em Gaza dá início a uma penetração israelense mais direcionada e não menos destrutiva na ocupação, na colonização e no isolamento da Cisjordânia.
O outro critério, mais vago, se não arriscado, mas essencial e de mais ampla visão, é o de ler a trégua com o critério da esperança, com os olhos daqueles que sofreram a guerra de aniquilação, “de baixo”, com o olhar voltado para o céu. Daqueles que a vivenciaram em sua própria carne por mais de quinze meses. Uma eternidade, esse foi o tempo que durou a retaliação israelense de vingança, realizada com as armas mais refinadas e poderosas, caças-bombardeiros de última geração, tanques indestrutíveis e drones tecnocriminosos prontos para atingir alvos fáceis nas massas humanas indistintas e indefesas, como nas migrações dos pássaros, para conscientemente arrasar centros habitados, escolas, hospitais e locais de culto.
Então, como não dar um suspiro de alívio, com dois milhões e 300 mil pessoas, um suspiro profundo, quase impossível, em meio à poeira dos escombros acumulados? Como não ver que uma pequena, última e frágil esperança desponta nos olhos das crianças de Gaza que as revistas científicas do mundo e os testemunhos diretos dos médicos e das ONGs que atuaram no local agora descrevem como a “geração perdida”. Ou seja, a geração de centenas de milhares de crianças que não conseguem mais imaginar a realidade, o presente e o futuro, sem a presença sangrenta da guerra, que se tornou para elas uma coação em repetição que zerou suas mentes.
Em uma idade que deveria ser afetivo-formativa, acostumadas como estão - as mais velhas já estavam acostumadas antes mesmo do dia 7 de outubro, por causa das tantas guerras que sofreram - à violência, ao barulho ensurdecedor das bombas que chegam do alto em um céu escuro e sem luz, aprendendo até mesmo a distingui-las, a evitar as balas como em um slalom; a ter pavor de perder os entes queridos, mas mesmo as maiores em tal condição perderam a razão e não são de ajuda - em Gaza, as mães pedem ajuda às crianças -; a ser forçadas a correr ansiosas após ordens repentinas de evacuação, fugindo entre ruínas, cadáveres e feridos gritando, a descobrir a vulnerabilidade de um corpo humano dilacerado.
“Gaza hospeda o maior grupo de crianças amputadas da história moderna”, declarou Lisa Doughten, diretora da divisão de finanças e parcerias do Escritório de Assuntos Humanitários da ONU no Conselho de Segurança das Nações Unidas. E a se deparar com a fome absoluta todas as manhãs, depois de um falso sono, que as obrigou e ainda as obriga a fazer filas desesperadas para arrancar um pouco de água e pão de outros meninos e meninas com raiva e descoberta crueldade. Muitas vezes sozinhas, abandonadas, sem família ou amigos.
A trégua que está sendo anunciada, é claro, não é a paz eternamente prometida ao povo palestino sem direitos e cuja própria terra é negada - estranho que o Secretário de Estado Blinken, que alternou repreensões e tantos bilhões de armas para Israel, tenha se lembrado do Estado da Palestina cinco dias antes de sair de cena com o periclitante Biden. Mas, a essa altura, o que foi alcançado ontem é muito mais do que a paz que nunca chegou: é uma zona temporal, uma “janela de oportunidade”, dizem as ONGs - fundamental para recuperar a humanidade e os direitos, para ter voz, para levantá-la, para pretender a verdade - deve ser seguida pela prisão por crimes de guerra de Netanyahu, talvez agora pronto a cantar vitória, a novas candidaturas e aventuras políticas. Porque está de fato acontecendo o paradoxo imperial que novo Congresso dos EUA imponha sanções ao Tribunal Penal Internacional: Trump, o mentor da supremacia israelense na região e do Pacto de Abraão que excluía os palestinos, está prestes a entrar na Casa Branca e, nos últimos dias, prometia muito mais “inferno em Gaza...” e agora está reivindicando o resultado da trégua,
Se for uma verdadeira trégua, um povo inteiro deve exigir e obter solidariedade. Não a esmola televisiva dos governos que ficaram calados e cúmplices. As necessidades humanitárias deverão ser atendidas.
Pelo menos para não morrer de fome e de doenças. Depois disso, o papel do sistema da ONU, também conscientemente bombardeado pelo governo israelense, deve ser restaurado. Se for uma trégua verdadeira, vale a pena esperar, no verso do poeta palestino Ibrahim Nasrallah: “Não se afaste o céu / agora que chegou luminoso/ lavado no sangue criança/ em campos de papoulas vermelhas/ sufocados sob os trilhos dos tanques/. Não se afaste o céu/ que finalmente chegou/.../ e chegou limpo”.