18 Outubro 2023
"A guerra hoje é contra a vida no Planeta e não existem instituições voltadas para essa realidade. Não existem instituições capazes de frear a loucura".
O artigo é de Santiago Alcazar e Paulo Buss, publicado por CEE/FioCruz, 11-10-2023.
Santiago Alcazar é diplomata de carreira de Ministério das Relações Exteriores do Brasil e colaborador do CRIS/Fiocruz.
Paulo Buss é professor emérito da Fundação Oswaldo Cruz, diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz) e membro titular da Academia Nacional de Medicina.
Em 1º de outubro, o Brasil assumiu a presidência do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. A presidência do CS, como se sabe, é ocupada por cada um de seus membros, por período de um mês, seguindo a ordem sequencial alfabética dos nomes dos países em inglês.
Em 2 de outubro, o CS adotou por 13 votos a favor e 2 abstenções (Rússia e China) o envio de missão multinacional de apoio para a segurança do Haiti, no contexto da grave crise de violência, crimes e abusos que vêm experimentado aquele país [1]. Há consenso que a situação no Haiti é preocupante e está a merecer ação. As abstenções de Rússia e China, não contestam a substância, mas lamentam que a decisão para aplicação do Capítulo VII da Carta tenha deixado aprofundar a questão com vistas a garantir o êxito da missão [2].
No mesmo dia, na apresentação do programa de trabalho do CS para o mês de outubro, notou-se que a questão da Ucrânia não havia sido incluída [3]. A razão seria a percepção da ineficácia da inclusão do tema para a paz na Ucrânia. Nos últimos meses, seguiram-se diversas reuniões sobre Ucrânia, não obstante a objeção da Rússia, sem que se avançasse um milímetro que seja em direção à paz. Caso algum país solicite reunião especial, a questão poderá ser considerada, mas a repetição da mesma coisa esperando resultados diferentes não condiz com parâmetros aceitos de sanidade mental. Cedo ou tarde, será preciso deparar-se com a necessidade de buscar a paz em negociação a partir da realidade.
A questão Armênia-Azerbaijão, certamente irá merecer cuidado especial por parte da presidência do CS. A totalidade da população do enclave de Nagorno-Karabakh foi obrigada a deixar tudo para trás e refugiar-se às pressas na Armênia. Ainda que o Azerbaijão tenha declarado vitória, a ação militar deixa um sabor amargo de questão não resolvida que poderá vir a assombrar a população local, uma e outra vez, com resultados nefastos. A questão, ademais, tem potencial para tornar-se especialmente espinhosa, à luz da recente sinalização da Armênia de buscar com a França uma aliança estratégica [4]. Por outro lado, o Azerbaijão, confiante na força de seu poderio militar após a conquista de Nagorno-Karabakh, bem como na de sua irmandade com a Turquia, dá sinais de romper com a Rússia [5], que de golpe, perderia assim duas peças fundamentais no tabuleiro de países na região do Cáucaso. Ainda que possivelmente movidos por interesses distintos, a ação daqueles dois países soma-se ao efeito de enfraquecer a posição da Rússia, concentrada na questão da guerra na Ucrânia.
Nesse contexto, a escalada das tensões, tanto na guerra na Ucrânia, quanto na região do Cáucaso, parece inevitável e com consequências desconhecidas. Não seria de todo improvável que as duas movimentações, as da Armênia e as do Azerbaijão sejam instâncias de uma complexa orquestração de intenções político-estratégicas com os mesmos propósitos das chamadas revoluções coloridas.
A terceira questão, a da Palestina e solução de dois Estados, que seria considerada em debate aberto no CS, em 24 de outubro, acaba de estourar com violência inesperada no sábado, 7 de outubro – como que a recordar os 50 anos do início da guerra do Yom Kippur, em 1973. Desde então, registram-se oficialmente mais de 2 mil mortes de lado a lado, milhares de feridos, centenas de desaparecidos e um número ainda incerto de reféns, possivelmente mais de 200. A escalada da guerra é crescente, assim como suas vítimas. Registram-se destruição absurda de residências, infraestrutura, escolas, serviços de saúde, números crescentes a cada dia. Bloqueio total na Faixa de Gaza, com 2 milhões de pessoas, metade com menos de 20 anos: Israel suspendeu o abastecimento de água, eletricidade e combustível, não chegam mais nem medicamentos, nem comida, nada. A estupidez e a irracionalidade respondidas igualmente. Uma crise humanitária brutal a caminho, mais destruição, mais feridos, mais mortos. Civis inocentes são as maiores vítimas de ambos os lados. O já frágil sistema de saúde da Palestina – particularmente em Gaza – entrou em colapso. Com o corte da eletricidade, água, combustíveis os feridos não podem ser atendidos. As ONGs presentes no território estão com margem de manobra cada vez menor, pela escassez de recursos e o bloqueio total ao território.
Não há dúvida de que, de todos os temas complexos à frente do CS, a atual situação Israel/Palestina torna-se a que mais visibilidade terá na grande mídia, mais que aquela reservada à guerra na Ucrânia, que assim passaria forçosamente a um segundo plano. Os que se sentem cansados em justificar uma guerra que só lhes trouxe prejuízos, como um bumerangue que lhes atingiu a cabeça em cheio; os que pelo mesmo motivo desinteressam-se crescentemente de defender a liderança de Kiev, percebida como atolada em autoritarismo, corrupção e em ações que poderiam levá-la ao Tribunal Penal Internacional; os que têm crescente dificuldade em explicar para os seus representados as razões para financiar uma guerra provocada por eles mesmos, com fins que contradizem os próprios fundamentos da civilização Ocidental – todos esses, sentirão alívio e, cinicamente aliviados, verão a chance de largar Zelenski e a sua turma ao deus-dará, sem por isso parecer ou ser percebido como a encarnação do mal.
A presidência do Brasil propõe ainda um extenso programa de reuniões sobre temas da agenda de paz e segurança internacional, como as situações na Colômbia, Iêmen, Somália, Saara Ocidental e da Região dos Grandes Lagos, na África. Propõe-se a tratar também das missões de paz da ONU no Iraque (UNAMI), na Líbia (UNSMIL), no Kosovo (UNMIK), na Síria (UNDOF) e na República Centro-Africana (MINUSCA) [6]. Sobre a situação no Oriente Médio, o chanceler Mauro Vieira declarava em entrevista na véspera da erupção da violência do Hamas, que “o povo palestino aguarda há 75 anos a concretização de seu inalienável direito à autodeterminação e sofre com a escalada de violência, que registra, em 2023, o maior número de mortes de civis na Cisjordânia desde 2005” [7].
Como se pode ver, a atuação do Brasil na presidência do CS neste mês de outubro, pode representar um teste crucial para as ambições do país de ser membro permanente do órgão. Com três crises capazes de desafiar a capacidade multilateral para o encaminhamento de soluções para problemas de responsabilidade do CS, a atuação do Brasil à frente da presidência do Conselho será medida contra o êxito ou o fracasso das ações empreendidas nos próximos 24 dias
Guerra na Ucrânia, Israel/Palestina, Armênia/Azerbaijão – são conflitos armados que acionam a principal função do CS: assegurar a manutenção da paz e da segurança internacional. Sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas [8], o artigo 39 estabelece que o CS determinará a existência de qualquer ameaça à paz e determinará as medidas para restabelecê-la e assegurar a segurança internacional.
Ameaça implica uma intencionalidade e difere de risco, que é apenas uma possibilidade. A distinção é sutil, mas é importante ressaltá-la. O CS ocupa-se de ameaças volitivas, não de riscos desprovidos de intencionalidade, como, por exemplo, um risco para a saúde, que seria de responsabilidade da OMS. O Regulamento Sanitário Internacional (RSI), por exemplo, define risco de saúde pública como a possibilidade de um evento que pode afetar de maneira adversa a saúde de populações humanas, com ênfase em uma que pode espalhar-se internacionalmente ou pode representar um perigo sério e direto.
Por essa razão, causou espécie que, em 2014, por ocasião do surto do vírus do Ébola, o CS tenha adotado a resolução S/Res/2177/2014 [9] que, entre outras coisas, reconhece que “os ganhos alcançados em prol da paz e do desenvolvimento podem ser revertidos em razão do surto do vírus do Ébola e, à luz de sua responsabilidade pela manutenção da paz e da segurança internacional, decide determinar que o vírus do Ébola constitui ameaça à paz e à segurança internacional”. Pela primeira vez em sua história, o CS reconhecia uma crise de saúde pública como uma ameaça à paz e à segurança internacional. É importante repetir: o CS reconheceu que o vírus pode reverter os ganhos em favor do desenvolvimento e, assim, “minar a estabilidade dos países afetados, gerar agitação civil, tensão social e uma deterioração no quadro da política e da segurança”.
O risco de saúde pública do RSI transformou-se no âmbito do CS, com o surto do vírus do Ébola, em ameaça à paz e à segurança internacional. Ainda que a resolução do CS não tenha recorrido ou feito menção às medidas de coerção previstas no Artigo VII da Carta, o reconhecimento do vírus do Ébola como ameaça representa uma ampliação do conceito de paz e de segurança para além de seu entendimento tradicional. A relação causal conflito-ameaça à paz e à segurança passa a incluir, do lado da causa, eventos de saúde ou de doenças.
Não há razão alguma para deter-se aí. Por que, de fato, não incluir do lado esquerdo da equação, os movimentos migratórios, que têm também o potencial de gerar agitação civil, tensão social e uma deterioração no quadro da política e da segurança? A história das migrações confunde-se com a própria História. A particularidade agora, no entanto, é que as migrações, como produtos do Antropoceno, são provocadas, entre outras causas, por falhas morais e não mais por eventos naturais. Há, assim, uma intencionalidade, direta ou indireta, mas que é volitiva e, por isso, implica a entrada em ação de uma vontade. Tratar-se-ia, por tanto de uma ameaça à paz e à segurança e não de uma possibilidade impessoal.
À pergunta supostamente inocente: Por que vocês vêm aqui? – lançada por algum nacional de país receptor a um migrante maltrapilho e maltratado, este certamente responderá: Porque antes vocês estiveram lá. Iraque, Líbia, Etiópia, Sudão, Afeganistão e agora Ucrânia, Nagorno-Karabakh e Palestina, são vítimas de conflitos que enriquecem a indústria bélica e alimentam os debates no CS. Mas o que fazer das outras vítimas da desertificação, da falta de água e de alimentos, da pobreza, da falta de oportunidades, da falta de condições, da mudança climática enfim – todas elas causadas por vontades políticas, imorais, portanto, e não por possibilidades matemáticas abstratas? Por que não levar a mudança climática para o debate no Conselho de Segurança ou exigir também, com a força da coerção se preciso, o respeito à Agenda 2030 e a aplicação plena de seus 17 ODS?
É um pouco absurdo que ainda hoje a percepção do conceito de saúde nos foros nacionais ou multilaterais de decisão política, econômica ou financeira, na avassaladora maioria dos casos, continue limitada a seus aspectos biológicos e de cuidados. Como não entender que toda e qualquer política é um ato volitivo e, por essa circunstância, torna-se potencial ameaça à paz e à segurança, ademais, evidentemente, de ameaça à própria vida? Como não entender que a saúde é o resultado do somatório de seus determinantes econômicos, comerciais, financeiros e sociais? Que são precisamente os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável? Como não se indignar com a cara de paisagem que fazem todo ano os líderes quando observam que os compromissos assumidos ou vão em marcha à ré, ou estão estacionados. Por que? Perguntam. Aprovamos políticas, dizem. Justamente, aprovaram políticas com vontade e ao fazê-lo deixaram a possibilidade de risco para entrar na ameaça à vida.
A Organização das Nações Unidas foi criada com o propósito de salvar as gerações vindouras do flagelo da guerra, entendida como instância de algum conflito armado. Agregou-se, com o tempo, o compromisso com a promoção do e, mais recentemente, com o direito ao desenvolvimento. O absurdo é que hoje, a realidade premente, a guerra decisiva, não é mais dessa natureza primitiva. A guerra hoje é contra a vida no Planeta e não existem instituições voltadas para essa realidade. Não existem instituições capazes de frear a loucura. O que existe sobre a mesa são vagas intenções de reforma, que mais parecem marteladas aqui e ali, uma ou duas boas mãos de pintura e nada mais. E nem sequer essa simples reforma poderá vir a ver a luz, uma vez que os 78 anos da ONU lhe conferem o caráter de antiguidade, vintage, que não se pode tocar para aumentar o seu valor de venda ou para ser inscrito como patrimônio pela Unesco.
E la nave va, com ou sem Fellini, à extremidade da Terra para cair no abismo sem fim. Who cares?
[1] Acesse aqui.
[2] Acesse aqui.
[3] Acesse aqui.
[4] Acesse aqui.
[5] Acesse aqui.
[6] Ver aqui.
[7] Ver aqui.
[8] Ver aqui, onde se encontra a tradução oficial da Carta das Nações Unidas, ao português, no Brasil, publicada por decreto do então presidente Getúlio Vargas, em 22/10/1945 - um bônus de erudição ao leitor curioso que vem ao pé das páginas
[9] Ver aqui.
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Sobre a irresponsabilidade da ameaça: o papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a presidência rotatória do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU