17 Janeiro 2025
Isso não é o fim da guerra nem um verdadeiro cessar-fogo; é apenas uma pausa temporária na máquina de matar israelense. O fim dos bombardeios atuais não significa o fim da ocupação, da opressão e da negação de nossos direitos humanos básicos.
O artigo é de Mahmoud Mushtaha, publicado por CTXT, 16-01-2025.
Mahmoud Mushtaha é jornalista e ativista dos direitos humanos de Gaza. Atualmente, está cursando um mestrado em Mídia Global e Comunicação na Universidade de Leicester, no Reino Unido. Recentemente, publicou seu primeiro livro em espanhol, "Sobrevivir al genocidio en Gaza".
Após 446 dias de devastação, o desafio em Gaza é recuperar o senso de normalidade entre os escombros de vidas despedaçadas.
Não consigo acreditar: após 466 dias de sofrimento inimaginável, matanças implacáveis e a fome e devastação calculadas desferidas pela máquina de guerra israelense, o genocídio em Gaza finalmente chegou ao fim.
O peso desses dias ainda oprime fortemente meu coração. Cada segundo foi marcado pelo sofrimento, pelo medo e pela impotência diante das incontáveis vidas perdidas e famílias destruídas. Gerações inteiras foram marcadas a ferro pela violência incessante e pelo silêncio ensurdecedor da comunidade internacional. Ainda assim, apesar das atrocidades cometidas, a propaganda sionista e ultradireitista israelense tentou inverter a narrativa, em um esforço para desumanizar as vítimas e justificar o injustificável.
Este momento parece surreal. Os céus, que antes rugiam com o som das bombas, agora abrigam a possibilidade de cura. Talvez as ruas, que foram testemunhas de uma dor interminável, voltem um dia a se encher de risos. Mas, mesmo com o fechamento deste capítulo, as cicatrizes permanecem: um duro lembrete da incapacidade do mundo de agir a tempo e da necessidade urgente de justiça e responsabilização. O fim do genocídio não apaga os crimes cometidos; pelo contrário, amplifica a necessidade de justiça e do julgamento dos criminosos de guerra.
Espero que este fim não seja apenas uma pausa, mas um verdadeiro começo: um caminho para a cura, a reconstrução e a garantia de que atrocidades como essas nunca mais se repitam. Não precisamos voltar ao mesmo ciclo de dor e sofrimento. Desde 1948, suportamos matanças incessantes, todas decorrentes da ausência de responsabilização penal de Israel.
Agora que foi acordado um cessar-fogo em Gaza, as bombas deixarão de cair, e o mundo suspirará aliviado. Ainda assim, para aqueles de nós que sobreviveram, a guerra não acabou: ela apenas se transformou. Pode ser que a destruição física tenha cessado, mas as batalhas psicológica e emocional continuam. O trauma da perda, as memórias da devastação e a dor da sobrevivência persistirão muito além do momento em que a última bomba tenha caído. Para Gaza, o desafio já não é apenas reconstruir infraestruturas, mas recuperar um senso de normalidade entre os escombros de vidas despedaçadas.
Enquanto esses dias sombrios chegam ao fim, as cicatrizes permanecem: um duro lembrete da incapacidade do mundo de agir a tempo. O que precisamos agora é que Israel e seus criminosos de guerra sejam levados a julgamento, que haja justiça para nossas vítimas. Sem isso, o cessar-fogo será apenas uma pausa temporária, uma simples interrupção em um ciclo de violência que devasta a Palestina há décadas. Não podemos permitir que isso aconteça. Precisamos exigir que os responsáveis pelo genocídio sejam responsabilizados e que a comunidade internacional finalmente reconheça a humanidade do povo palestino e seu direito de viver em paz.
Infelizmente, enfrentamos outra guerra após esta: uma guerra contra nós mesmos. É uma batalha psicológica, uma luta para curar feridas que não são visíveis, mas que são igualmente profundas. Como podemos começar a nos recuperar se não há casas para retornar, nem escolas para nossas crianças, nem hospitais para cuidar dos doentes, e tampouco universidades para educar nossos jovens? Como reconstruir nossas vidas quando os alicerces de nossa sociedade foram aniquilados? O que precisamos agora é de tempo para o luto, para chorar nossos entes queridos e procurar aqueles que desapareceram desde 7 de outubro.
Para compreender a profundidade dos desafios à frente, conversei com sobreviventes, trabalhadores humanitários e psicólogos que estiveram no terreno em Gaza. Um Salim Amin, mãe de cinco filhos, compartilhou comigo seus medos: “Estamos aliviados pelo fim dos bombardeios, mas e agora? Não temos casa, nem fonte de renda, e eu… nem filhos. Eles foram mortos em 16 de maio de 2024. A paz não significa nada se não pudermos encontrar uma forma de viver”. Seu sonho agora, após o cessar-fogo, é construir uma tumba para seus filhos.
O doutor Adek, um psicólogo que trabalha com sobreviventes de traumas, descreve a crise prolongada de saúde mental que Gaza enfrenta. “Estamos vendo uma geração inteira profundamente marcada pelo genocídio, pelas matanças e pela fome”, diz ele. “Crianças que presenciaram horrores inimagináveis, pais consumidos pela culpa do sobrevivente, e uma população lutando para encontrar esperança em meio ao desespero”. As infraestruturas de saúde mental em Gaza já eram limitadas antes do conflito, e agora praticamente não existem mais.
As necessidades de Gaza agora, segundo especialistas, são multifacetadas. A ajuda humanitária imediata é crucial: comida, água potável, suprimentos médicos e abrigos temporários devem ser a prioridade. Além disso, são indispensáveis investimentos de longo prazo para reconstruir infraestruturas, restaurar instituições educacionais e fornecer serviços de saúde mental. A comunidade internacional precisa redobrar seus esforços, não apenas com palavras, mas com ações concretas, para garantir que Gaza tenha os recursos necessários para se reconstruir de forma sustentável.
Isso não é o fim da guerra nem um verdadeiro cessar-fogo; é apenas uma pausa temporária na máquina de matar israelense. O fim dos bombardeios atuais não significa o fim da ocupação, da opressão e da negação de nossos direitos humanos básicos. Não é paz: é apenas um breve respiro. E, neste momento, eu preciso fazer meu luto. Preciso chorar por meu tio Hisham e sua esposa Hanan, por seus filhos Mohammed e Bassil, e por seus sete netos. Preciso lamentar os 72 membros da minha família que perdi. Preciso fazer luto pelo meu povo, pelas mais de 50.000 vidas brutalmente arrancadas. Cada vida perdida é, em si, um mundo inteiro, e cada uma merece ser lembrada, honrada e pranteada.
Agora, o desafio em Gaza é sobreviver aos próximos dias, dado que o cessar-fogo deve entrar em vigor em 19 de janeiro. Os caminhos que se abrem são incertos e traiçoeiros. Como vamos sobreviver sem casas, sem recursos, sem as necessidades básicas da vida? A comunidade internacional não deve apenas exigir responsabilização judicial, mas também fornecer apoio tangível para a reconstrução e reabilitação de Gaza. Esta é uma crise humanitária que demanda ações imediatas e sustentadas.
A resiliência do povo palestino tem sido testada repetidamente. Temos suportado o insuportável, sobrevivido ao inimaginável. E, ainda assim, continuamos aqui. Nosso espírito permanece inquebrantável, mesmo quando nossos corações carregam o peso de uma tristeza imensa. Mas essa resiliência não deve ser confundida com aceitação. Não vamos aceitar um futuro em que nos neguem justiça, onde criminosos de guerra fiquem impunes, onde as vidas de nossos entes queridos sejam reduzidas a estatísticas. Exigimos justiça. Exigimos dignidade. Exigimos liberdade.
A reconstrução de Gaza não se trata apenas de construir casas e reparar infraestruturas; trata-se de restaurar esperança, dignidade e humanidade. Trata-se de dar às nossas crianças um futuro que não seja definido pela guerra e pela derrota. Trata-se de assegurar que as memórias das pessoas que perdemos sejam preservadas, que suas histórias sejam contadas e que seu sacrifício não tenha sido em vão.
Abood Fathi, de 21 anos, um jovem universitário, expressa seus temores: “Eu sonhava em me tornar engenheiro para reconstruir Gaza, mas agora nem sei se restará alguma universidade. Será que terei a chance de estudar novamente?”. Suas palavras refletem as aspirações de uma geração que está por um fio.
Que o mundo, ao observar Gaza emergir dos escombros, também a olhe com um senso de responsabilidade. Que lembre do papel que teve, seja por ação ou omissão, em permitir que essa tragédia se desenrolasse. Que se comprometa a fazer melhor, a se posicionar ao lado dos oprimidos, a levar os opressores à justiça. Esta não é apenas uma questão palestina; é uma questão global. A luta por justiça em Gaza é uma luta por justiça em todos os lugares.
Nos dias que virão, enquanto a poeira se assenta e a atenção do mundo inevitavelmente se volta para outro lugar, precisamos nos manter vigilantes. Precisamos garantir que o cessar-fogo não seja apenas um prelúdio para outro capítulo de violência. Precisamos exigir o fim da ocupação, o fim do bloqueio e o fim da opressão sistemática ao povo palestino. Só então poderemos começar a ter esperança em uma paz verdadeira.
Este não é o fim de nossa luta. Não é o fim de nossa história. É apenas um capítulo: um capítulo doloroso, devastador, que sempre carregaremos conosco. Mas continuaremos escrevendo nossa história, lutando por nossos direitos, honrando nossos mártires e construindo um futuro à altura de seu sacrifício. A Palestina se levantará novamente, não das cinzas da guerra, mas da força e da resiliência de seu povo. E o mundo nunca deve esquecer isso.