02 Dezembro 2024
O uso de drogas – lícitas e ilícitas – cresce no ambiente acadêmico, em paralelo ao aumento nos diagnósticos de ansiedade e depressão. Mas “enfrentar” o adoecimento dos jovens com mais medicalização não terá os resultados prometidos.
O artigo é de Ricardo Pimentel Méllo, professor de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Usos de Drogas (NUCED), em artigo publicado por Outras Palavras, 29-11-2024.
O conceito de “saúde mental” é usado de modo amplo e abrangente, relacionado a uma ambição idealizada de vida equilibrada, significando em nossa sociedade hedonista, vida alegre e sem sofrimentos. Daí emergirem outros conceitos que lhe dão suporte e vida prática, tais como: “bem-estar emocional”; “autoconhecimento”; “autocuidado”; “autoestima”; “resiliência”; “relacionamentos saudáveis”; “produtividade e motivação no trabalho” e a busca por “prevenção” que aumente a capacidade de lidar com situações de estresse, frustração e tristeza, além de estar sempre disposto a enfrentar desafios. Ou seja, o conceito vai se mantendo em uso, a partir de mudanças em seus arrimos estruturais.
Devemos sempre relacionar os modelos de vida humana (ou modos de viver) com a chamada “saúde mental”. Se a “mente” é um conceito herdado da Grécia Clássica (500 a.c. – 300 a.c.), “doença mental” emerge no século XVIII, dando condições para o nascimento da Psiquiatria (Foucault 1961/1978), e é um termo que permanece sendo usado com muita frequência até hoje. Não é possível que, depois de 260 anos de criado, esse conceito fique, parafraseando Caetano Veloso, “impávido que nem Muhammad Ali”. Deve ser questionado, porque se fez insinuando que, nós, humanos, temos uma essência, a qual nos diferencia de todas as outras espécies vivas, e essa tal essência é nominada como “alma”, “mente”, “subjetividade” ou “psiquê”.
O incrível é ainda se sustentar que os nossos sofrimentos humanos são divididos em físicos e metafísicos, estes se referindo a uma “sofrença mental”. Assim, tanto a mente quanto seu suposto adoecimento, constituem-se como um “dado evidente”. Isso é espantoso em uma sociedade moderna sustentada na linguagem dita objetiva e que supõe decodificar a natureza por meio de aparatos tecnológicos.
A busca de certos campos do saber por biomarcadores (ou marcadores físicos), para o que se julga não físico, parece infinda. Na disputa por hegemonia biopolítica, as ciências exatas e biomédicas dedicaram-se a colonizar o território das chamadas ciências humanas e sociais. O projeto de colonização se iniciou na Renascença e teve seu auge a partir do século XIX. Como afirma Foucault, ao se reportar à Psicologia, é preciso acordar desse sono dogmático (Foucault, 1965/2002), se realmente quisermos enfrentar nossas dores, sem nos esquivarmos de suas fontes, recorrendo a drogas, sejam quais elas forem.
O psiquiatra e psicanalista húngaro Thomas Szasz, começou a criticar o uso do termo “doença mental” como um conceito em um artigo datado de 1958. O autor argumenta que se trata de uma construção teórica, não uma verdade factual. Portanto, não é mais nem menos “factual” do que crenças em feitiçarias e afirmar que alguém está possuído pelo demônio (Szasz, 1979a; 1979b). O autor já apontava que alterações no cérebro ou um “defeito neurológico” não podem ser automaticamente relacionados com um conceito efêmero como mente.
No contemporâneo, todas as críticas de Szasz valem para o termo correlato “transtorno”, que mais uma vez foge do debate de sofrimento advindo da miséria criativa proposta pelo neoliberalismo, que exclui o sofrimento como parte da vida. Este sim favorece a criatividade e deveria ser o termo usado para indicar o que Freud (1930/2020) chamou de mal-estar, que advém da nossa vivência cultural. Szasz é enfático em denunciar que relacionar toda nossa vida a sintomas neurológicos é um erro epistemológico, portanto, erro atinente a um certo modo de organizar teoricamente nossos modos de viver:
Conceituando a doença psiquiátrica baseados no modelo de doença médica, os psiquiatras não têm outra escolha a não ser definir o tratamento psiquiátrico como algo que só pode ser “dado” a pessoas que têm uma doença psiquiátrica! (Szasz, 1979a, p. 231).
A psiquiatria está muito mais ligada aos problemas da ética do que à medicina. Uso a palavra “psiquiatria” aqui para referir-me àquela disciplina contemporânea que está envolvida com os problemas da vida (e não com as doenças cerebrais, que são problemas para a neurologia). (Szasz, 1979b, p. 60).
Não tenciono propor uma nova concepção da “doença psiquiátrica” nem uma nova forma de “terapia”. A minha intenção é […] a de sugerir que os fenômenos atualmente chamados de doenças mentais sejam revistos de uma maneira mais simples, que eles sejam removidos da categoria das doenças, e que sejam considerados como as expressões da luta do homem contra o problema de como ele deveria viver. (Szasz, 1979a, p. 61).
A noção da doença mental assim serve principalmente para obscurecer o fato diário de que a vida para a maioria das pessoas é uma luta contínua, não pela sobrevivência biológica, mas para um “lugar ao sol”, para a “paz de espírito”, ou algum outro valor humano. (Szasz, 1979a, p. 61).
De modo ainda mais específico, a perspectiva proposta por Szasz, quando o tema é o uso abusivo e/ou compulsivo de substâncias, ampara a argumentação de que esse tema não pode ser cuidado como um problema de “vício”, “dependência química”, “transtorno” ou “doença mental”, não importando quais sejam as “drogas” ou quais sejam os territórios de usos. Sobre os usos de medicamentos e outras drogas por universitários (professores, técnicos e estudantes), não há como desvinculá-los dos motivos que também levam não universitários a usar.
A justificativa geralmente apresentada é “depressão” e “ansiedade”, como se esses termos fossem autoexplicativos e indicassem somente uma providência: drogalizar a vida. Infelizmente, alguns saberes associam tais sintomas a “distúrbios de humor” ou “desajuste neurológico”, porque imaginam que a “felicidade eterna”, além de não ser um sintoma traiçoeiro, deve ser referência de uma vida sem abalos. Na verdade, propõem uma vida mitomaníaca.
Não creio que as universidades causem “depressão” e “ansiedade” por si, mas ocasionam sofrimentos, por serem captadas pelos mesmos dispositivos neoliberais da sociedade em geral: empreendedorismo individual e modos de viver consumista (isso vale para as escolas de Ensino Fundamental). A indústria das drogas, sejam as farmacêuticas lícitas, sejam as farmacêuticas ilícitas, se alimenta dos mesmos dispositivos que almejam gerir as nossas vidas, de tal modo que a principal preocupação é a de que devemos calcular quais riscos são capazes de impedir nossa felicidade eterna. O capitalismo promete um casamento infindável e feliz com a vida, até que a morte nos separe que, no rumo precarizado em que estamos, deverá chegar antes de conseguirmos nos aposentar.
Restringe-se o chamado psiquismo às “doenças mentais”, e os nossos inevitáveis “sofrimentos” e “mal-estares” são reduzidos a algum “transtorno”, o qual deve ter base biológica e só pode ser corrigido com usos de medicamentos ou outras drogas. A figura do profissional “psi”, por exemplo, perdeu sua importância: se ele não se rende ao modelo biomédico, ele é compelido a ser um agente coach conselheiro de vida saudável e humanizada. A medicalização e a patologização da vida levaram a uma epidemia de diagnósticos favorecidos pelos usos dogmáticos dos manuais biomédicos, que popularmente se resumem às doenças: TDAH, Autismo, Pânico e Depressão.
Alguns aspectos da vida, que poderiam ser analisados por diversos saberes, tais como Sociologia, Antropologia, Psicologia, Psicanálise, História etc., passam a ser objetos de estudo, avaliação, diagnóstico e prescrição bioquímica fornecida por um único domínio disciplinar: a medicina apoiada na farmácia. Criou-se a “necessidade” de o corpo ser gerido por drogas, como primeira e única solução para nossos sofrimentos: voltamos ao período manicomial, de onde nunca saímos completamente, só substituindo a camisa de força pela contenção química que impede a criatividade e a fluidez da vida:
[…] desconsideramos que vivemos em uma sociedade hedônica, proibida de sofrer. Sociedade onde cada um de nós deve viver momentos eternos de felicidade, que diante do menor sintoma de tristeza devemos, na obrigação de sermos felizes, buscar alívio rápido com soluções milagrosas: tomar medicamentos para isso (Méllo; Garcia, 2016, p. 155-156).
Desse modo, vivemos uma profusão de diagnósticos de “doenças mentais”, como citamos acima, que justificam o uso abusivo e/ou compulsivo de drogas legais. Já está em tempo de exigir que o problema seja colocado nos moldes em que aparece como tal: já vivemos uma sociedade “adicta”, “toxicomaníaca” ou dizendo melhor, uma sociedade que admite e incentiva o uso de medicamentos e outras drogas, como único meio de obter janelas de drenagem de sofrimentos. Exatamente isso: os sofrimentos se aglutinam com a química das drogas que adentram em nossos corpos e escorrem pelo sistema urinário, sem embaraço crítico.
O gozo momentâneo, que se alimenta da manutenção do uso contínuo de substâncias, dá a ilusão de problema/sofrimento resolvido, uma vez escoado como material inútil pelo aparelho urinário. Afinal, para que serve o sofrimento, senão para impedir que alguém seja produtivo e resiliente consumidor feliz? Não se pode tratar dores e desamparos como pontos fora da curva do que se supõe ser normal e ainda se pregar a ilusão da felicidade duradoura como modelo de vida (Méllo, 2016; 2018; 2021).
As universidades são parte do sistema de difusão desse modo de viver individualista e consumista da felicidade eterna, dando a sua contribuição para a expansão do controle, por meio de valores morais disciplinares que se universalizaram na onda do chamado “processo de globalização”, destruindo rituais de convivência comunitária nos amplos espaços das universidades e restringindo o convívio às salas de aulas – quando não se limita à instrução advinda da famigerada “educação a distância” (EAD), modalidade quando usada integralmente e sem nenhum escrúpulo, sepulta a convivência nas universidades e agrava a exigência de que professores privilegiem a vida burocrática, tornando-se exército reprodutor de conteúdos que devem também ser disseminados pelos estudantes, em provas de conhecimento de competência empreendedora individual.
É claro que há exceções de resistência, mas as universidades avançam no globalismo neoliberal, acarretando transformações nas relações com o tempo e o espaço, regulando nossas atividades de trabalho com tarefas repetitivas e transformando nossos corpos livres em submissos do produtivismo, o qual tem como maior símbolo o currículo Lattes.
A tecnologia, que poderia facilitar nossos estudos críticos, agora almeja até isso substituir, por meio de “ChatsGPTs”. Corremos o risco de fingir que escrevemos e estudamos, quando, na verdade, estamos sendo cooptados, para a vida de reprodutores de conteúdos pré-fabricados. Se antes buscávamos amparo em estudos bibliográficos para desenvolver raciocínios, agora, o raciocínio já vem pronto para cortar e colar, como um texto que se faz magicamente.
Nesse quadro de vida empreendedora, restam-nos as drogas, que seguem o mesmo teor ilusionista do mundo do consumo: servem para apaziguar e anestesiar o diagnóstico de que:
[…] estamos perdendo a capacidade de gerir nossas vidas, que acabam sendo impulsionadas pela próxima compra que irá nos definir como consumidores de estilos sempre atuais. É como se a atualização de modos de vida em produtos recentes nos tornasse jovens para sempre. […]
O mundo do consumo, com a proliferação de produtos atrelados a maneiras de viver, exacerbou a euforia do “preciso aparecer e ser alguém nesse mundo”. Temos o dever de ser alegres, ter uma vida saudável ou de ter “qualidade de vida”. Isso significa estarmos atentos ao produto da hora (Méllo, 2016, p. 30).
Podemos nos opor a esse quadro de fascinação pela “servidão voluntária”, situando nossas práticas sob a perspectiva da ética do cuidado, que, no caso de utilização de drogas, deve nos impelir a compreender os diversos usos feitos por aqueles que são categorizados como consumidores e, o mais importante, devemos cartografar as redes relacionais que sustentam o uso abusivo e/ou compulsivo feito por alguém.
Seguindo com a articulação dos conceitos propostos aqui, a autonomia é fundamental para se contrapor ao neoliberalismo do empresário de si. Não podemos confundir autonomia com esse presunçoso e perverso modo de viver narcisista, o qual cresce, entusiasmado, capturando e descartando o que ainda resta de nossos modos de viver solidários. A solidariedade, que era fruto da convivência comunitária, reconhecendo o outro como um igual, na sua diferença, virou campanha televisiva para arrecadar roupas. Ou seja, eu vou dar o que me sobra e não sei onde descartar: pois que o desútil vá para aquele ali que não tem condições de ter o que eu tenho. Isso é perverso!
A autonomia se faz em processo, quando ampliamos nossos laços para fora do quadro familiar, identificando-nos com outros aspectos da cultura, exercendo escolhas, em um processo de socialização caracterizado e nominado por Berger e Luckmann (1966/1985) como “socialização secundária”. Porém, o que me parece estar acontecendo, no mundo neoliberal capitalista: o processo de socialização nos impele a modos de viver culturalmente narcisistas e culturalmente patológicos, porque denotam o menosprezo pela vida coletiva, pela solidariedade, pelo cuidado de si e do outro, ao mesmo tempo que inflamam em cada novo jovem o “eu-auto-soberbo” de cada um: o outro existe para que eu apareça.
Emerge, para fora das telas de cinema, como modelo micropolítico de modo de viver para cada um de nós, o Rambo: um solitário, nascido e treinado para exercitar agressividade, com músculos até então só vistos em divindades gregas. É só verificar a quantidade de academias de culto a si e as exposições nas redes midiáticas de “corpos perfeitos” sendo talhados apenas pelo esforço pessoal e pelo ingerir de algumas drogas que potencializam esse esforço individual. Da mesma forma, é só verificar a quantidade de pessoas que almejam potencializar sua bestialidade individual com a posse de armas.
Por outro lado, quando esse modelo ilusório, fabricado em moldes de filmes hollywoodianos, não consegue ser efetivado em corpos de pessoas “reais”, quando a onipotência narcísica encontra obstáculos, quando o sentimento de finitude irrompe, os Rambos (ou Rambes) não têm referências simbólicas para resistir e não têm laços que amparem suas dores/sofrimentos. E aí entra a solução mágica, ainda no padrão da onipotência narcísica: medicamentos/drogas. É uma solução que não enfrenta o problema, porque persiste na fantasia de perfeição advinda da onipotência narcísica sustentada, de forma desmedida, em um ideal de Eu, solidificado na cultura narcisista-empreendedora-consumista-antropocêntrica-neoliberal = modelo Rambo.
Este também pode ser expresso pelo personagem sem nome, o famoso ciborgue assassino, o qual se conhece como “Exterminador do Futuro”. Creio que não teria nome mais adequado para os humanos no contemporâneo: “exterminadores do futuro”.
Quero finalizar discorrendo sobre o cuidado. Nesse caso, abordo sobre o conceito de cuidado discutido em Méllo (2018), argumentando sobre sua implicação em determinada ética. O cuidado circula como conceito desde o mundo helenístico e, nos últimos vinte anos, cresceu em importância, no chamado campo da saúde. Infelizmente, encontramos posicionamentos confusos que fazem do cuidado um conceito normativo e burocrático. São posturas hegemônicas, normalizadoras e patologizadoras, que se alinham a um suposto autocuidado caracteristicamente biomédico (isso inclui a Psicologia), cujo dispositivo mais importante é o binarismo patologia versus normalidade.
Não chamaria isso de cuidado. Sabiamente, a cultura popular chama isso de “tratamento”, porque não se sente realmente cuidada, embora possa ser tratada com competência técnica. Mas o foco do tratamento é um corpo universal, sem singularidades, exceto aquelas que o agrupam em nova classificação universal patológica advinda de algum manual.
A despeito disso, o conceito de cuidado retoma sua visibilidade, em um momento extremamente criativo da vida humana – um momento de passagem, de mudanças das rígidas fronteiras do viver humano. Isso tem reações duras e mortais daqueles que não desejam mudanças: os que resistem, querendo que a vida se resuma a consumos de mesmices identitárias marcadas com selos de normalidade, com pretensão a verdades universais inquestionáveis, geralmente resumidas na frase da moda que é “qualidade de vida”. O mundo humano vive um momento de transformação, de “desterritorialização”, onde cada um de nós está estabelecendo conexões múltiplas, portanto, dando formas variadas à vida que vivemos, a partir dos laços sociais que fazemos. Como estamos mergulhados nesse tsunami de mudanças micropolíticas e macropolíticas, não conseguimos entender bem o que está ocorrendo. Estamos na chamada “era dos riscos”, na “era de incertezas”, como defende o sociólogo alemão, Ulrich Beck:
“Sociedade de risco” significa que vivemos em um mundo fora de controle. Não há nada certo além da incerteza. Mas vamos aos detalhes. O termo “risco” tem dois sentidos radicalmente diferentes. Aplica-se, em primeiro lugar, a um mundo governado inteiramente pelas leis da probabilidade, onde tudo é mensurável e calculável. Esta palavra [risco] também é comumente usada para referir-se a incertezas não quantificáveis, a “riscos que não podem ser mensurados”. Quando falo de “sociedade de risco”, é nesse último sentido de incertezas fabricadas. Essas “verdadeiras” incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas, estão criando uma paisagem de risco global. Em todas essas novas tecnologias incertas de risco, estamos separados da possibilidade e dos resultados por um oceano de ignorância (Beck, 2022, s/p).
Não esqueçamos da palavra mágica da hora: prevenção. Spink e colegas (2002, p. 161) nos alertam: “riscos da vida cotidiana”, incluindo relatos de experiências pessoais, redundam em “análises voltadas à responsabilidade individual de prevenção e autocontrole desses riscos”. Assim, o neoliberalismo culpa os sofredores de seus sofrimentos, e requer deles o empenho empreendedor para prever sofrimentos, ou seja, evitar que estes emerjam atrapalhando o produtivismo.
Aliada e vinculada à sociedade de risco, temos o que a psicanalista Colette Soler nominou de “competição narcisista” peculiar à era capitalista, “[…] onde apenas um valor permanece: o sucesso na competição generalizada” (2021, p. 34-35). Ela diz ainda: “É impressionante que hoje seja visto como legítimo, normal, que cada sujeito seja movido pelo gosto do benefício da acumulação, e que, além do mais, possa ficar orgulhoso disso” (2021, p. 35).
Temos algumas certezas, para não cairmos no total desamparo desse mal-estar cultural; uma delas é: esgotou-se o modelo racionalista. Nossas certezas mitológicas evaporam, tais como: surgimos de Adão e Eva, reforçando a ideia exclusiva de normalidade heterossexual; ou surgimos da “evolução natural”, sustentada na competição; ou, ainda, que deus é único e encarnado em uma figura masculina assexuada; que estamos acima e separados da natureza; que, antropologicamente centrados, temos o poder de explicar tudo etc. etc. etc. Crenças tão bem racionais começaram a ruir, diante da criatividade e multiplicidade humana e não humana, sendo a metade do século XX um marco importante para isso.
O receio dos reacionários é que a multidão siga num rumo imprevisível, portanto, aberto à criatividade, consciente da ferocidade destruidora que advém do humano. Entendo que é esse movimento que traz de volta o conceito de cuidado e que desperta perguntas: qual cuidado? Cuidar de quem? Cuidar do quê? (Méllo, 2018). E aí, por fim, vem a ética do cuidado: uma ética que alie cuidado à fluidez da vida, “[…] afirmando diferenças, multiplicidades e evitando que a vida pareça estagnar em essencialismos ou fascismos diários (por isso a controvérsia deve servir como guia)” (Méllo, 2018, p. 21).
Nesse mundo hedonista-consumista sempre encontraremos propostas que nos iludem sobre evitar dores/sofrimentos, inclusive o uso de substâncias psicoativas, que vem ocupando um lugar central na vida das pessoas, tornando-se instrumento farmacológico hipnotizador. Esse efeito ilusório, o qual aposta no uso de substâncias para proporcionar gozo rápido e sempre tênue, não poucas vezes, encobre elaborações necessárias para a vida seguir com as suas dores/sofrimentos e mal-estares. Por isso, o cuidado, que havia sido ignorado com o avanço do saber biomédico que atrelou cuidado a “tratamento” baseado em preceitos do que é normal e anormal, está sendo retomado como ética:
Em resumo, o mote desta ética do cuidado de si é: “cuide de si para cuidar de outros”, ou “quem não cuida de si, não consegue cuidar de outros”. Como afirmou Foucault, o cuidado de si não é “um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social” (Foucault, 1985, p. 57). Não é um renunciar a si, mas saber de suas possibilidades e limites para também ter potência no cuidado de outros. No campo da saúde, portanto, o cuidado de si deve potencializar ações de cuidado de outros (Méllo, 2017, s/p).
Finalizo com uma pequena frase de um poema de Cecília Meireles (2001, p. 411), chamado “Reinvenção”, que nos diz sobre nossa condição humana de finitude, alegrias e dores, condição que supõem o uso de drogas, desde que não se almeje entregar a elas o rumo de nossa vida, e que o rumo não se iluda com a felicidade consumista pouco criativa. A função e motivo de existir das universidades está exatamente nessa condição de se reinventar a cada momento, contrapondo-se a mesmice que quer aprisionar o fluir vital. A poetisa nos ensina:
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
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Sofrimento na universidade: que cuidado é possível? Artigo de Ricardo Pimentel Méllo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU