22 Fevereiro 2019
“Em que medida o diagnóstico de transtornos por déficit de atenção e hiperatividade, ou por ansiedade e depressão, não fazem a não ser rotular como disfunções as reações automáticas de adaptação ao meio? São realmente desequilíbrios neuroquímicos e não respostas selecionadas por milênios de evolução? A que responde a expansão – até o grau de epidemia – dos chamados transtornos mentais comuns?”, escreve Enric Llopis, jornalista, em artigo publicado por Rebelión, 02-02-2019. A tradução é de Cepat.
Na Argentina, 15% da população entre 12 e 65 anos – cerca de três milhões de pessoas – consumiram tranquilizantes ou ansiolíticos alguma vez na vida, com ou sem receita médica, segundo o estudo sobre o consumo de psicofármacos, publicado em 2017 pela Secretaria de Políticas Integrais sobre Drogas da Nação Argentina (SEDRONAR). A maioria destes tranquilizantes se inscrevem no grupo das benzodiazepinas. A pesquisa aponta que 1,3% da população (mais de 24.000 pessoas) consumiu estimulantes ou antidepressivos, principalmente do grupo dos Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS). Nos Estados Unidos, 12,7% da população maior de 12 anos, em maior porcentagem mulheres, tomaram medicação antidepressiva entre 2011 e 2014 no último mês, informou o Centro Nacional de Estatísticas da Saúde (2017).
A depressão afeta mais de 300 milhões de pessoas no planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O organismo das Nações Unidas ressalta que no período 1990-2013 as pessoas com depressão ou ansiedade aumentaram em 50%, de 416 milhões para 615 milhões. Em março de 2016, a OMS informou sobre um estudo dirigido pela organização, no qual também se media o impacto econômico e sobre a produtividade trabalhista: “Cada dólar investido na ampliação do tratamento da depressão e a ansiedade rende quatro dólares em melhora na saúde e capacidade de trabalho”.
O psiquiatra e ex-presidente da Associação Espanhola de Neuropsiquiatria, Alberto Fernández Liria, é uma das vozes críticas ao modelo imperante de Psiquiatria e “saúde mental”. Em seu blog, detalha que participa desde os anos 1980 nos movimentos de transformação da assistência psiquiátrica. Atualmente, faz parte da direção da Área de Gestão Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Príncipe de Asturias, em Alcalá de Henares. É coautor, entre outros livros, de Intervención en crisis (2002), Violencia y salud mental (2009) e Terapia narrativa basada en atención plena para la depresión (2012), os dois últimos junto com Beatriz Rodríguez Vega. Suas reflexões podem ser lidas na Revista da Associação Espanhola de Neuropsiquiatria (AEN) e em Átopos (Saúde Mental, Comunidade e Cultura), entre outras publicações.
Há alternativa?, questiona-se Fernández Liria no artigo intitulado La enfermedad mental como respuesta psíquica al fallo social (Átopos, n. 4). Uma das possibilidades, aponta, é “devolver à vida íntima e ao mundo das relações interpessoais boa parte do terreno conquistado nas últimas décadas pela “doença”. Como exemplo das formulações críticas, menciona no texto ao psiquiatra estadunidense Allen Frances, apesar de em seu momento ter participado da construção do Manual Diagnóstico e Estatístico dos transtornos mentais (DSM, na sigla inglesa) da Associação Americana de Psiquiatria, best seller da ideologia oficial (“A Espanha tem um grande problema, quase todo mundo toma algum comprimido”, afirmou Frances em uma entrevista a Jot Down).
O texto da Átopos destaca o interesse que as teorias da “indicação de não-tratamento” – com contribuições como a do psiquiatra Alberto Ortiz Lobo - ganham, e também da Divisão de Psicologia Clínica da Associação Britânica de Psicologia, que questiona as classificações do DSM. A psiquiatria crítica se opõe ao modelo biomédico vigente, em cujo eixo se situa o diagnóstico e os tratamentos para o que se considera doenças mentais por alterações bioquímicas. Alberto Fernández Liria contrapõe a esta ideia as palavras de Harry Stack Sullivan, em 1953: “Dizia que um psiquiatra é um especialista em relações pessoais”.
Fernández Liria apresentou no Centre La Nau, da Universidade de Valência, seu último ensaio: Loucura de la Psiquiatría. Apuntes para una crítica de la Psiquiatría e la ‘salud mental (Declée, 2018), em um ato organizado pela Escola Europeia de Pensamento Lluis Vives. O ponto de partida está em que a Psiquiatria não é uma ciência – sim, a Biologia ou as Matemáticas são –, mas, ao contrário, uma tecnologia – como a arquitetura ou a medicina -, que tem como finalidade a produção de um bem social. Uma das teses centrais do livro é que as sociedades definem, em cada período histórico, o objetivo da Psiquiatria. Assim, “o conceito de doença mental adquire sua importância a partir do momento em que os médicos são chamados a se tornar responsáveis pelos hospitais psiquiátricos – herdados do Antigo Regime –, em fins do século XVIII e inícios do XIX”, explica o autor.
Atualmente, em um contexto de crise e ofensiva neoliberal contra a saúde pública, a Psiquiatria enfrenta questões centrais como a autonomia. Por um lado, este princípio foi reivindicado frente ao “encarniçamento terapêutico”, o paternalismo na atenção médica e o poder dos especialistas, que podem tomar decisões a partir de critérios arcanos – inclusive logaritmos – que ultrapassam o controle do paciente. No entanto, pondera Fernández Liria, “a defesa da autonomia foi utilizada pelos partidários do neoliberalismo”. Um exemplo é a Lei 6/2009 de Liberdade de Escolha na Saúde da Comunidade de Madri, aprovada durante o mandato de Esperanza Aguirre (PP) e que – afirma no preâmbulo – “fortalece a capacidade dos cidadãos em participar realmente na tomada de decisões relacionadas a sua saúde”.
Algumas aplicações durante os últimos anos caminharam pelo cálculo de custos e benefícios. Assim, o Governo da Grã-Bretanha impulsionou, em 2008, a iniciativa Melhorando o Acesso aos Tratamentos Psicológicos (IAPT, na sigla inglesa), com a finalidade de ampliar a terapia em atenção primária. Sobre a intenção deste programa, Alberto Fernández Liria destaca que, em 2006, a London School of Economics havia advertido sobre o custo econômico que as baixas trabalhistas por depressão e ansiedade estavam causando à seguridade social.
Nos anos 1950, aparecem os psicofármacos. Em meados dos anos 1980, a multinacional estadunidense Lilly começa a comercializar a fluoxetina com a marca “Prozac”. O que aconteceu com estes antidepressivos do grupo ISRS? “Impulsionados por uma campanha de marketing sem precedentes, para a qual contribuíram Lilly, GSK, Pfizer, Lundbeck e outras grandes companhias, o uso dos ISRS se estendeu por todo o mundo”, afirma o autor de Locura de la Psiquiatría (uma demonstração do poder atual da indústria farmacêutica e a saúde é que, durante 2018, fechou compras em um valor aproximado de meio bilhão de dólares, 31% a mais que no ano anterior, segundo dados da plataforma Dealogic, citados pelo jornal Expansión).
O comércio dos fármacos contra a depressão foi se ampliando, com o suporte de ensaios clínicos em ocasiões duvidosas. Há pouco tempo, acrescenta o psiquiatra, o tratamento com os ISRS se estendeu para os transtornos de ansiedade, obsessivo-compulsivo e do comportamento alimentar; também à fobia social, o tabaquismo, a insônia, o estresse pós-traumático e a dor crônica. Mas, se dá a circunstância de que nem os antidepressivos ISRS, nem os tranquilizantes benzodianos são inócuos. Alguns discursos da OMS contribuíram para alimentar a maquinaria farmacológica, por exemplo, a previsão – reiterada em múltiplas ocasiões – de que a depressão seria, em 2030, a principal causa de morbidade no planeta; em 2011, o organismo da ONU atribuía aos transtornos mentais não tratados 13% da “carga de morbidade mundial”.
Enquanto isso, a preponderância dos especialistas e o reducionismo biomédico “se desfez do empecilho das escolas que se baseavam na exploração de significados pessoais ou no contexto, como a Psicanálise, a Fenomenologia ou a Psicologia Comunitária”, explica o coautor de La práctica de la psicoterapia: la construción de narrativas terapéuticas (2001).
Em que medida o diagnóstico de transtornos por déficit de atenção e hiperatividade, ou por ansiedade e depressão, não fazem a não ser rotular como disfunções as reações automáticas de adaptação ao meio? São realmente desequilíbrios neuroquímicos e não respostas selecionadas por milênios de evolução? A que responde a expansão – até o grau de epidemia – dos chamados transtornos mentais comuns? Alberto Fernández Liria aponta uma possível explicação para além da clínica e os comprimidos: “Certamente, estamos diante de exigências para as quais nossos organismos estão pouco preparados, além da ausência dos mecanismos de apoio mútuo com os quais a espécie humana enfrentou a adversidade”. Neste ponto irrompe a política.
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“É necessária uma psiquiatria crítica que contribua para um processo de libertação” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU