27 Junho 2018
“A cultura da medicalização tem passado para essa geração a falsa ideia que um comprimido resolve os problemas da vida, de que não existe mais solução pelo pensar, pelo ser, pelo agir, pelo diálogo, pelo afeto e pela compreensão. No mundo agitado de hoje, as pessoas são desatenciosas umas com as outras e são as crianças que acabam sendo tachadas como hiperativas”, escreve Ana Paula Abranoski, estudante de Serviço Social e integrante do Centro de Promoção de Agentes de Transformação - CEPAT.
Com o tema Em tempos de retrocesso, respiramos a esperança!, o V Seminário Estadual da Criança e do Adolescente aconteceu no último dia 17 de maio, na Faculdade Bagozzi, promovido pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná. O CEPAT foi uma das 14 instituições parceiras na realização deste evento. Diante da acentuada desigualdade social e os recorrentes cortes orçamentários nos recursos nacionais desta área, com um auditório lotado, os participantes demonstraram a urgência de iniciativas pela defesa e garantia dos direitos humanos da criança e do adolescente, em prol da vida dos mais vulneráveis. O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma legislação muito boa, cheia de promessas, cheia de direitos das crianças e de deveres do Estado. Mas, na prática, o Estado não cumpriu quase nada do que ele próprio legislou.
Na programação, ocorreram diversas oficinas temáticas que permearam todo o seminário. Uma das oficinas mais emblemáticas foi a intitulada Medicalização na infância – remédio não educa. O pedagogo Gabriel Estevo Faria e o professor da Universidade Estadual de Maringá, Fernando Wolff Mendonça, que conduzem o Projeto de Pesquisa Retrato da Medicalização da Educação no Paraná, trouxeram dados alarmantes sobre o uso abusivo e o crescente aumento do número de crianças e adolescentes que utilizam medicamentos psicoafetivos.
A busca por soluções fáceis, o diagnóstico equivocado e a incompreensão dos pais acerca da agitação natural das crianças elevaram o Brasil ao posto de segundo maior consumidor de Ritalina do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. O dado do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos é alarmante. Ritalina é o nome comercial do metilfenidato, medicação que promete tratar o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH e o Transtorno Desafiador Opositivo - TDO, e os principais consumidores da droga lícita, tarja preta, são crianças e adolescentes.
De acordo com Mendonça, o I Fórum Interinstitucional “Remédio não educa” foi o início de um trabalho, pois a ideia é formar um grupo de estudos mensal que organize ações estratégicas de avaliação e planejamento de atividades educativas e sanitárias para a compreensão do aumento da medicalização das crianças em faixa escolar. O objetivo é realizar um levantamento de dados nos municípios da região de Cianorte, no interior do Paraná, e depois promover ações junto à sociedade, orientando as famílias e capacitando professores, junto aos serviços de saúde e cuidados com a infância.
Isto não é uma realidade apenas no interior do Paraná, segundo relato das participantes da oficina de Curitiba, também estão presenciando o descontrole dos encaminhamentos e das prescrições médicas, que ocorrem muitas vezes sem o devido suporte educacional e terapêutico às famílias. Mendonça faz um questionamento não somente sobre o uso destas medicações, mas, sim, sobre as consequências dessa grande quantidade de drogas nas relações sociais do universo infantil, que muitas vezes não é levado em consideração pelo profissional da saúde e muito menos pelos educadores da escola. E percebe nos casos que estão acompanhando que a criança está se tornando refém dessa situação. Então, pensemos: qual é a implicação do uso de medicação sem reflexão, acompanhamento contínuo e pesquisa?
O pedagogo Gabriel Estevo disse que observa muitas crianças usando o remédio como justificativa para conseguir ou não realizar alguma atividade. Muitos pais, por se sentirem acuados diante dos anseios da escola e sem possibilidades de questionar, acabam concordando inicialmente com o uso do remédio. Ambos veem a medicalização como um recurso para “sossegar” a criança, sem questionar a real necessidade.
Diante deste contexto, qual o papel do educador? Quais reflexões os educadores podem ter sobre os processos educacionais e de formação de crianças e adolescentes medicados?
No Brasil, a rede voltada para a assistência aos problemas de saúde mental da criança e do adolescente é muito precária. As crianças com dificuldades de comportamento, agitadas e inquietas são vistas como doentes pelos profissionais da psiquiatria e da neurociência, e então eles receitam remédios. Como consequência, temos um número elevadíssimo de crianças recebendo medicação, mas sem se discutir se a medicação é mesmo necessária ou se é a melhor forma de cuidado. Seria necessário entender o sofrimento psíquico e os problemas de comportamento, não vendo isso como um problema, pois a maioria delas são apenas crianças agitadas. E no mundo da rapidez e do imediatismo, ironicamente, elas são diagnosticadas como doentes. Num sistema capitalista onde temos que ‘produzir e atingir metas e notas’, os pais não conseguem mais ter o ‘tempo’ para seus filhos e a medicalização da vida passou de usual para normal.
Não podemos nos esquecer dos efeitos colaterais no uso do remédio. Além de causar dependência, a Ritalina provoca muitos outros efeitos colaterais: as crianças emagrecem, têm insônia, podem ter dor de cabeça e incontinência urinária. Além disso, muitas mães que estão nessa caminhada não possuem uma experiência comprovada da eficácia do uso da medicalização psicotrópica que causa dependência química, mesmo nos casos em que ela deveria ser empregada. O trabalho de terapia, de orientação e cuidado real com a criança dá muito mais resultado.
A cultura da medicalização tem passado para essa geração a falsa ideia que um comprimido resolve os problemas da vida, de que não existe mais solução pelo pensar, pelo ser, pelo agir, pelo diálogo, pelo afeto e pela compreensão. No mundo agitado de hoje, as pessoas são desatenciosas umas com as outras e são as crianças que acabam sendo tachadas como hiperativas.
Infelizmene, a medicalização aparece como uma alternativa individualizada para resolver as inquietudes da criança. Nosso desafio é resistir à medicalização excessiva e buscar resolver de diferentes formas os problemas que surgem. Pais, responsáveis e educadores devem ter um olhar atento às indicações de reclamação das crianças e adolescentes, buscando informações do que está por trás das queixas, antes de medicar. Nós, adultos, sofremos com essa pressão e ficamos, muitas vezes, sujeitos a ela. Além disso, em muitos casos, a angústia é mais dos adultos do que da própria criança ou adolescente. Assim, a rotina das famílias, diante da medicalização, e dos educadores, diante da intolerância ao desconforto, têm reflexos nas crianças e jovens.
Dar atenção aos filhos e educandos, apoiá-los, oferecer uma vivência saudável e outras metodologias de ensino são ações que podem contribuir para uma medicalização consciente. Daí a importância do papel da escola. Dentro da sala de aula é necessário criar estratégias para trabalhar com todos os tipos de crianças e adolescentes, pois a diversidade é um valor. No ambiente escolar são vividas situações delicadas, com a incidência significativa de transtornos diversos, mas a clareza da situação aliada a um trabalho consistente, apoiado por laudos de especialistas, podem oferecer qualidade ao trabalho educacional. Existem situações em que a medicação é indicada e necessária, mas também cabe aos educadores, na sala de aula, fazer com que as crianças e jovens tenham diversos tipos de oportunidades para se concentrarem e participarem das aulas.
É possível perceber que por trás da agitação de muitas crianças há uma violência, um abuso ou uma situação psicopedagógica não adequada. Colocar tudo como sendo um problema do cérebro da criança é muito antiético, é não levar em conta sofrimentos e necessidades que ela está expressando. Além dessa medicalização excessiva, percebe-se que há uma falta de projetos terapêuticos para o sofrimento psíquico na infância, que é grande. Sem equipes treinadas, é mais fácil só dar o remédio. De acordo com o Instituto de Medicina Social, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o Brasil registrou aumento de 775% no consumo de Ritalina, em dez anos.
A alta no consumo é motivo de alerta porque o diagnóstico de TDAH e de TDO nem sempre estão acompanhados de uma investigação aprofundada das possíveis causas do comportamento incomum da criança. O diagnóstico rápido de TDAH e de TDO e o tratamento medicamentoso parecem ter se tornado a solução mais rápida e fácil de vários problemas, sem que a origem deles seja analisada a fundo. Às vezes, a inquietude da criança pode estar relacionada a alguma questão da escola ou pode ser uma resposta a algo que ela não está sabendo lidar.
Estamos diante de um retrocesso no Estatuto da Criança e do Adolescente quando não há investimentos públicos para essa situação, que pode ser considerada uma das maiores violações do direito da criança e do adolescente na saúde cometida pelo Estado. É uma violência velada e silenciosa. Não há suporte, não há investimento em educação e na formação dos educadores. Precisamos avançar, não podemos deixar que a criança seja estigmatizada e deixe de ter infância.
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Medicalização na infância. Remédio não educa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU