25 Novembro 2024
Acabaram as palavras necessárias para descrever a dimensão da catástrofe humanitária que está se desenrolando em Gaza, no Sudão, na Ucrânia, desde que o novo regime de guerra suplantou a grande narrativa do desenvolvimento sustentável. Sentimos a impotência aguda das palavras diante da violência redundante, com fim em si mesma, que caracteriza essa página da história contemporânea, trespassada pela impotência do direito internacional.
A reportagem é de Nicoletta Dentico, publicada por Avvenire, 23-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um dos aspectos menos conhecidos dos conflitos atuais, e apenas recentemente estudado com atenção, diz respeito ao fato de que bactérias, fungos e outros patógenos levam vantagem quando o comércio de armas toma conta, e que hoje aflige 2,4 bilhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com estimativas recentes da ONU. As guerras são, portanto, um dos veículos mais poderosos da resistência antimicrobiana (Amr), ou seja, a disseminação descontrolada de bactérias, fungos e parasitas que evoluem para desenvolver imunidade a todos os medicamentos existentes, inclusive os antibióticos, para prevenir e tratar as infecções.
A destruição humana e ambiental causada pela guerra - bombardeios indiscriminados, demolição de casas e edifícios, de instalações industriais e estruturas de esgoto, de infraestrutura sanitárias, juntamente com a fuga forçada e em massa de populações em condições de extrema precariedade - transforma-se numa bioincubadora implacável de resistência antimicrobiana. A transferência de genes e bactérias é um processo biológico absolutamente natural e necessário entre humanos e animais que convivem nos mesmos ecossistemas. O problema é que esse fenômeno saiu literalmente do controle, alterado por uma infinidade de intervenções antropogênicas ligadas ao delirante modelo de desenvolvimento da globalização. Infelizmente, os conflitos armados são um componente orgânico desse sistema.
A resistência antimicrobiana destaca-se como um dos cenários mais desafiadores para a saúde pública global.
Trata-se de uma pandemia silenciosa, diante da qual a própria emergência do Covid se configura como uma crise, considerando tudo, gerenciável. Como Margaret Chan, então diretora da Organização Mundial da Saúde (OMS), disse em 2015, a resistência antimicrobiana corre o risco de “marcar o fim da medicina moderna como a conhecemos hoje”. De acordo com o The Lancet, se não revertermos o curso, a humanidade poderia se encontrar em uma era pré-penicilina. A dimensão sistêmica do problema continua sendo amplamente subestimada. A narrativa é distorcida por interpretações altamente reducionistas, subservientes aos interesses financeiros em jogo, relutantes em mudar de rumo, embora estejam envolvidos nas políticas globais para enfrentar o problema.
Mas voltemos aos conflitos armados. Pela primeira vez, a ciência traçou a conexão entre guerras e Amr ao observar os impactos da devastação no Iraque. A bactéria multirresistente do complexo Acinetobacter baumanii foi identificada com coerente relevância entre o pessoal militar estadunidense e britânico que retornou das missões no Iraque e, depois, no Afeganistão. Militares e civis transferidos da Líbia para a Alemanha apresentaram o mesmo fenômeno. Pesquisas sobre cenários de guerra revelam que os metais pesados usados para a cápsula de bombas e balas, mísseis e veículos militares - principalmente zinco, chumbo, mercúrio, cromo, mas também antimônio e bário -, bem como aqueles liberados pela destruição dos edifícios, são fáceis indutores de resistência antimicrobiana.
Pode-se dizer que a própria natureza e a disseminação de doenças infecciosas foram radicalmente transformadas pela existência dos recentes conflitos armados, que têm como alvo principalmente civis em áreas densamente povoadas, o que leva a movimentos maciços de pessoas. Os ataques sistemáticos a instalações e agentes sanitários nesses contextos impossibilitam a gestão dos pacientes e sua estabilização. Eles recebem alta com feridas abertas, obrigados a dar lugar a outras ondas de vítimas que sobreviveram aos ataques de drones e mísseis.
Após 11 meses de bombardeios, e com a população impossibilitada de sair da faixa, Gaza se tornou um foco mortal de bactérias intratáveis, com restos humanos e carcaças de animais nas ruas, o cheiro fermentado do ar, a forte contaminação ambiental e a ausência imposta de água e alimentos. Há uma completa falta de laboratórios para identificação dos microrganismos resistentes, sem falar nos antibióticos. Muitas das amputações, especialmente entre as crianças, estão relacionadas ao fenômeno crescente da resistência bacteriana.
Os microrganismos, afinal, não conhecem fronteiras geopolíticas, não fazem distinção entre quem está certo e quem está errado na guerra; aliás, no caos bélico, aumentam sua capacidade de se espalhar, até mesmo para países vizinhos aos locais de combate. Não há tecnologia de exército que possa detê-los. A propagação da resistência hoje diz respeito a Israel, Jordânia e Líbano. Na Ucrânia, os dados sobre a resistência antimicrobiana relacionada ao conflito nunca foram publicados, mas o problema já era sério bem antes da invasão russa em 2022, devido aos combates nas regiões orientais desde 2014.
A invasão russa reduziu o país a um vasto reservatório de infecções Gram-negativas multirresistentes.
Não podemos excluir que a escalada da guerra não tenha repercussões sanitárias na própria Rússia, ao longo das fronteiras do Cáucaso, nos países europeus fronteiriços. Talvez a disseminação já tenha começado, comenta em voz baixa Hanan Balkly, especialista da OMS.
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Com as guerras também as bactérias saem vencedoras. Uma crise sanitária que ninguém conta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU