22 Novembro 2024
A questão sobre a possibilidade de candidatos à Ordem Sacra poderem prosseguir e ser ordenados sacerdotes, “apesar” de sua orientação homossexual, ainda é crítica em nossos dias.
O artigo é de Chiara D'Urbano, publicado por Settimanna News, 20-11-2024.
Chiara D'Urbano é psicóloga e psicoterapeuta; há muitos anos acompanha, na área clínica e formativa, os processos vocacionais de seminaristas, sacerdotes, religiosos e religiosas. É consultora do Dicastério para o Clero, perita da Rota Romana, do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano e do Vicariato de Roma. Colabora com seminários e institutos religiosos.
Os casos dramáticos de abusos na Igreja, numerosas saídas do ministério, escândalos vários sobre sacerdotes com comportamentos incongruentes com a vocação, curiosamente ligaram a questão da homossexualidade, criando um vínculo direto entre homossexualidade e incapacidade de contenção, de seriedade de vida, de relação sadia, e esse vínculo deveria surpreender, e não pouco, qualquer um que pare para pensar. Basta, de fato, superar o “ouvi dizer”, a pátina de grande superficialidade que alimenta os lugares-comuns e uma série de associações que não são apenas indevidas, mas completamente errôneas e violentas para os diretamente envolvidos, para entender que a situação é diferente.
Uso propositalmente o termo forte “violência”, porque é disso que se trata toda afirmação desprovida de fundamento científico, ou pelo menos razoável, que atinge os outros - obviamente não apenas os homossexuais - caracterizando-os negativamente, como sujeitos com problemas, que seriam como bombas-relógio.
Impedir ou colocar o ponto de interrogação sobre o acesso de pessoas homoafetivas à ordenação sacerdotal ou à consagração religiosa (amplio a reflexão para a vida consagrada) está ligado a esta convicção tácita, profundamente enraizada: a atração afetiva, romântica e sexual de um homem por outro homem, de uma mulher por outra mulher, é um indício de mal-estar psicoevolutivo. Ponto final.
E então o mal-estar, com o passar do tempo - com essa premissa de disfuncionalidade -, acaba se voltando contra a qualidade de vida da pessoa, a menos que ela admita ter um problema e fique quieta, à margem, tentando não causar nenhum dano e limitando ao máximo os empenhos ligados à esfera social.
Aqueles que realmente amam a Igreja e frequentam padres e religiosos/as veem várias incongruências e, da mesma forma, os sacerdotes veem uma série de coisas que não estão certas em nós, leigos.
Mas será que a análise das incongruências realmente leva à orientação homossexual? Será que a capacidade de amar, de doar o coração e a vida, de acreditar e buscar um ideal realmente são prejudicadas pelo tipo de atração que se vive?
Os casais passam por dificuldades e traem, se separam, seguem trajetórias para curar as feridas e, às vezes, a Providência permite que eles formem novos casais. Aqueles que não acompanham histórias reais, também nesse caso procedem por lugares-comuns, julgando os fracassos ou lamentando que a Igreja conceda nulidades e novas uniões, como se dar uma segunda chance fosse um sinal de fraqueza e de corrupção. Em vez disso, bastaria acompanhar de perto as pessoas que passaram por decepções matrimoniais e depois, com uma nova consciência, encontram a pessoa “certa” com quem poder compartilhar a vida, para desmontar os preconceitos, baixar os tons e perceber que nem todas as histórias são iguais e que não se pode proceder apenas de acordo com esquemas teóricos e com visões em preto e branco.
Não vou citar a Amoris laetitia, que também é grande sobre esses pontos!
Trago o exemplo dos casais nos processos de nulidade matrimonial porque me parece que determinadas leituras distorcidas são propostas de forma semelhante também quando se fala de homossexualidade que intercepta a vocação. Faltam estudo, conhecimento real, encontro pessoal.
A pessoa com orientação homoafetiva certamente terá suas tensões em ambientes homogêneos em termos de gênero sexual. O seminarista nos anos de seminário em contato próximo com outros jovens, uma mulher vivendo em comunidade com outras mulheres, terão de aprender a conhecer seu próprio potencial de atração como sujeito e objeto de atração.
Mas não é exatamente isso que todo sacerdote, religiosa ou leigo e leiga devem aprender a conhecer e administrar no contato diário com os outros? Terminados os anos mais estruturados de formação, o padre heterossexual terá muito a fazer a respeito de si mesmo com todas as mulheres que gravitam em torno da paróquia. Eu realmente não gostaria de entrar em tais exemplos porque seria muito aviltante. Tudo isso é evidente, não há necessidade de aprofundamentos.
Se, por outro lado, quiséssemos a sério entender aquilo que estamos vivendo na época atual, então conseguiríamos ampliar a perspectiva e sair do funil da orientação sexual. Observando nós mesmos e o tempo em que vivemos, devemos reconhecer o quanto a vida se tornou complexa e articulada, em muitos aspectos muito mais do que há algumas décadas, e o quanto seja “trabalhoso” permanecer estável e fiel às próprias escolhas. Que, aliás, não é suficiente sobreviver às escolhas feitas: aqui o bom jesuíta Padre Rulla diria que se pode permanecer e se aninhar em algumas situações da vida, o que não é o mesmo que perseverar em sentido progressivo.
A análise então se amplia para o mundo dos valores nos quais ainda acreditamos, para a necessidade que temos de nos sentirmos significativos para alguém e para o quanto somos capazes e, ao mesmo tempo, fracos para sair de nós mesmos. Precisamos dos outros e da fraternidade, mas depois somos fracos demais para vivê-la, concentrados em nossas reivindicações afetivas e necessidades não resolvidas.
Ser sacerdotes ou religioso/as hoje intercepta muitas perguntas de sentido - qual é o papel do padre, da religiosa, a que “serve” - e perguntas sobre como a comunidade cristã entende essas escolhas vocacionais.
Acredito que precisamos redescobrir o essencial no qual investir verdadeiramente as nossas vidas, e precisamos ser ajudados a buscá-lo.
Padres e religiosos/as apoiam os jovens, os casais e as famílias. As famílias apoiam ou deveriam apoiar padres e religiosos/as para que não se sintam sozinhos nem sobrecarregados com fardos que não deveriam carregar.
Como já dizia no artigo anterior, os comportamentos barulhentos, histriônicos, excêntricos e promíscuos são próprios da pessoa e de seu funcionamento geral, mas certamente não são exclusividade do mundo gay. Sinto muito ter que repetir isso, peço desculpas a irmãos, irmãs, amigos e amigas, mas faço isso por questão de clareza.
Os grupos fechados, os lobbies, além de estarem presentes em todos os contextos humanos, étnicos, políticos e esportivos, muitas vezes são favorecidos por ambientes que não permitem uma expressão serena e autêntica da pessoa e forçam a comportamentos por baixo dos panos.
A orientação homoafetiva não dispõe, por si só, a procurar os pares, não mais do quanto dispõe a heteroafetiva. Não dispõe a se descompensar, não mais do quanto dispõe a heteroafetiva. Não torna incapazes de uma capacidade de relação saudável com homens e mulheres (com base em ‘que’ haveria esse déficit?).
Não anula ou prejudica a vida comunitária, a pregação, o ministério, porque o sacerdote homossexual assume o magistério e se coloca na Igreja e na vocação como seus outros coirmãos.
O elemento decisivo é o quão bem a pessoa está em seu lugar, o quanto ela consegue desenvolver seus talentos naquele percurso de vida, ou o quanto se encolhe porque se sente presa e não consegue valorizar quem ela é.
Mas é evidente que a questão aqui é outra: vocação e não atração afetiva, romântica ou sexual.
A consciência pessoal, que também a ciência, em suas próprias palavras, reconhece como um dos níveis motivacionais mais evoluídos, faz com que, se bem desenvolvida e acompanhada, possa orientar o instinto e, assim, propiciar reflexão sobre as emoções, a fim de decidir se e a quais se entregar.
Até onde levar uma amizade, um forte laço afetivo, para que não se torne exclusivo demais e, assim, se intrometa na relação de Amor, são reflexões que os textos científicos oferecem à atenção da pessoa afetivamente adulta, embora eu esteja parafraseando os termos que esses textos utilizam.
Portanto, prestemos todos atenção para não simplificar as coisas, reduzindo tudo a uma filosofia sobre orientação sexual, pois seríamos realmente pouco honestos.
Padres, religiosos e religiosas homoafetivos podem amar livremente, incondicionalmente e corresponder magnificamente à sua vocação.
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Orientação homoafetiva e vocação. Parte 2. Artigo de Chiara D'Urbano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU