22 Julho 2021
Como qualquer outra pessoa, os pecados do Mons. Burrill são um assunto entre ele e Deus. Como qualquer outro padre, podemos dizer que o bispo dele também tem um papel nessa conversa. Mas eu tenho certeza de que os pecados dele não são da minha conta, assim como os meus pecados não são da sua conta.
O comentário é de Steven P. Millies, professor de Teologia Pública e diretor do Centro Bernardin, da União Teológica Católica, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Religion News Service, 21-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mesmo durante um período em que bombas caem sobre os católicos estadunidenses com uma frequência crescente e cada vez mais destrutiva, a publicação de uma “investigação” sobre o Mons. Jeffrey Burrill, o agora ex-secretário geral da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, explode e gera uma cratera que merece passar por uma análise forense.
Há razões para pensar que isso anuncia uma era nova e ainda mais feia no catolicismo estadunidense.
Enquanto os católicos ainda estavam se recuperando da revogação, por parte do Papa Francisco, no dia 16 de julho, da orientação do seu antecessor sobre a missa tradicional em latim, o motu proprio Summorum pontificum (de fato, enquanto este autor se esforçava para terminar um artigo sobre esse fato), a revista The Pillar, uma publicação católica, divulgou aquilo que chamou de “investigação”, na qual dados que identificavam o celular de Burrill pareciam indicar que ele costumava usar o Grindr, um aplicativo de namoro popular na comunidade gay, e deixava rastros de geolocalização em bares gays.
Isso é tudo o que realmente ficamos sabendo com a “investigação” da The Pillar. E aqui está um momento importante para fazer uma pausa.
Eu sou um pecador. Você também. O Mons. Jeffrey Burrill também. Nenhum de nós tem uma vida pessoal que resistiria a esse tipo de escrutínio que a The Pillar aplicou a Burrill. Cada um de nós passou por algum momento vergonhoso do qual lamentamos, e eu suspeito que a maioria de nós se envolve em ciclos de pecaminosidade que repetimos não tanto porque queremos, mas porque somos pecadores e não podemos deixar de ser pecadores.
Como qualquer outra pessoa, os pecados de Burrill são um assunto entre ele e Deus. Como qualquer outro padre, podemos dizer que o bispo dele também tem um papel nessa conversa. Mas, a menos que haja alguma razão para pensar que ele prejudicou outra pessoa, eu tenho certeza de que os pecados dele não são da minha conta, assim como os meus pecados não são da sua conta. Como católico, sou obrigado a acreditar em tudo isso.
Não tenho certeza em que os investigadores da The Pillar acreditam. Tenho a confortável certeza de que, antes de embarcarem em sua “investigação”, eles não devem ter pensado no Código de Direito Canônico, que afirma: “Ninguém tem o direito de lesar ilegitimamente a boa fama de que outrem goza, nem de violar o direito de cada pessoa a defender a própria intimidade” [can. 220].
Eles também não devem ter pensado no Catecismo da Igreja Católica, que diz: “Cada um procurará interpretar em sentido favorável, tanto quanto possível, os pensamentos, as palavras e os atos do seu próximo”, porque “a maledicência e a calúnia destroem a reputação e a honra do próximo” [nn. 2.478-2.479]. Posso ver claramente que eles não deram atenção a São Paulo, que apontava o dedo contra si mesmo como pecador (1Timóteo 1,15) antes de apontar para os outros.
O que quer que possamos dizer da sua prática do catolicismo, os investigadores da The Pillar deram pouca atenção também aos cânones da ética jornalística. Como eles conseguiram essa história? O Código de Ética da Sociedade de Jornalistas Profissionais dos Estados Unidos incentiva os jornalistas a “evitarem o uso de disfarces ou outros métodos sub-reptícios de coleta de informações” e adverte que “a busca de notícias não é uma licença para (...) a intromissão indevida”. Que história eles conseguiram aqui? Que Burrill pode ter quebrado seu voto de castidade e (consensualmente) usado outras pessoas para praticar o sexo impessoal?
O Código de Ética também diz aos jornalistas que “evitem satisfazer a curiosidade lúgubre, mesmo que outros o façam”. E, talvez o mais importante, ele diz: “Evite estereótipos”. Também precisamos prestar atenção nisso.
A The Pillar não conseguiu uma história factual, mas publicou uma insinuação. E a insinuação deveria nos preocupar. A The Pillar escreve que os dados que obteve do celular de Burrill “sugerem que ele estava (...) envolvido em atividades sexuais em série e ilícitas”, ao mesmo tempo em que ele coordenava as respostas à crise dos abusos sexuais em nome da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos.
Embora a The Pillar reconheça que “não há nenhuma evidência para sugerir que Burrill estava em contato com menores ao usar o Grindr”, a reportagem continua dizendo, no mesmo parágrafo, que o seu uso do aplicativo apresenta um conflito de interesses com o seu papel na resposta aos abusos sexuais, porque tais aplicativos às vezes são usados para solicitar ou traficar menores.
Alguns parágrafos antes, o texto cita outro padre que parece dar um salto semelhante em relação ao comportamento de Burrill: que o fato de “falhar regular e flagrantemente em viver a continência” pode ficar “a apenas um passo da predação sexual”.
Essa equivalência é a parte mais feia – igualando um comportamento sexual consensual (se é que Burrill fazia isso, o que não sabemos) com o abuso sexual. Esse é o gancho sobre o qual a “história” se sustenta, um vínculo há muito tempo desacreditado entre abuso sexual e homossexualidade. É difícil chamar isso de outra coisa senão de calúnia e pecado contra a comunidade LGBTQ+.
Sem falar que as alegações da reportagem, se verdadeiras, expuseram a sexualidade de Burrill sem o seu consentimento – uma prática amplamente condenada.
E tudo isso é um pouco demais para aguentar. Mas eu temo que, de fato, haja algo pior.
Eu concordo com o que Dom Kevin Irwin escreveu no National Catholic Reporter que o Papa Francisco, na semana passada, desmascarou “o cisma silencioso que existia e continua existindo na Igreja Católica estadunidense”. Nós, católicos, estivemos brigando uns com os outros há décadas, principalmente em silêncio e com algum verniz de contenção. A fachada está caindo, e aqueles dias podem ter acabado. Agora, a The Pillar abriu ainda mais o caminho com essa exposição sem barreiras.
Eu não digo isso à toa. Depois de poucas horas, os comentários no tuíte da The Pilar sobre essa história já mostravam pessoas entusiasmadas em ir atrás de “bispos (...) envolvidos em atividades questionáveis” e perguntando “o que os leigos deveriam fazer para iluminar todos esses cantos escuros”.
Séculos atrás, vimos como os cristãos – sentindo-se aliviados pelo seu próprio cristianismo – podem se comportar em seus conflitos com outros cristãos. Eu temo que estejamos vendo isso novamente. É isso o que o cisma traz. É aí que o espírito de divisão conduz.
O Papa Francisco não estava errado ao desmascarar aquilo que já está em curso, mas a The Pillar está errada ao fomentar esse espírito de divisão ainda mais, por meio daquilo que eu só posso chamar de o pior tipo de jornalismo tabloide e fofoqueiro. E eu temo que ainda não vimos o pior.
Uma longa e feia temporada aguarda os católicos estadunidenses. Ninguém está a salvo, e – ao que parece – tudo está permitido.
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EUA. Secretário geral da Conferência dos Bispos renuncia após investigação jornalística: “Uma insinuação antiética e homofóbica” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU