22 Junho 2021
No dia 22 de fevereiro de 1899, aniversário de George Washington, o Papa Leão XIII publicou a sua carta encíclica Testem benevolentiae, condenando a heresia do “americanismo”.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado em National Catholic Reporter, 21-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O documento era equilibrado, e a linguagem era muitas vezes indireta. Ele distinguia entre aquilo que chamava de “americanismo político”, aquelas características e traços nacionais do povo estadunidense, o que ele elogiava, e o “americanismo religioso”, a ideia de que as normas democráticas dos Estados Unidos eram para exportação, inclusive para as estruturas eclesiais, o que ele condenava.
O cardeal James Gibbons, o único cardeal estadunidense na época que era primaz em tudo exceto no título, escreveu para agradecer ao papa pela sua carta, mas também para lhe assegurar que ninguém nos EUA realmente sustentava a “extravagante e absurda doutrina”. De acordo com Gibbons, toda a controvérsia era o resultado de interpretações errôneas do catolicismo estadunidense na França, o que, em grande parte, era verdade.
Alguns arcebispos repercutiram a postura de Gibbons, agradecendo ao papa pela encíclica, mas lhe assegurando que ninguém acreditava nas proposições condenadas. Outros escreveram para agradecer ao papa, mas não disseram, de uma forma ou de outra, se a heresia realmente existia. Outros ainda não disseram nada.
O arcebispo Michael Corrigan, de Nova York, sempre em desacordo com Gibbons, agradeceu profusamente a Leão pela sua oportuna e necessária condenação.
No entanto, foi a resposta do arcebispo Frederick Katzer, de Milwaukee, e de seus sufragâneos que causou a maior ruptura na história da hierarquia dos EUA. Katzer não apenas elogiou Leão e afirmou que a heresia existia, mas também expressou especificamente a sua indignação com aqueles que:
“não hesitaram em proclamar várias vezes, à maneira jansenista, que dificilmente havia algum americano que tenha sustentado [as doutrinas condenadas] e que a Santa Sé, enganada por relatos falsos, havia batido no ar e perseguido uma sombra, para usar uma expressão popular. Não pode escapar de nenhum católico leal como é injuriosa para a Sé Infalível e como é estranha para a fé ortodoxa tal conduta, já que aquelas opiniões errôneas foram mais segura e evidentemente proclamadas entre nós oralmente e por escrito, embora talvez nem sempre tão abertamente; e nenhum verdadeiro católico pode negar que o magistério da Igreja se estende não apenas à verdade revelada, mas também aos fatos ligados com o dogma, e que pertence a este ofício magisterial julgar infalivelmente o sentido objetivo de qualquer doutrina e da existência das falsas doutrinas.”
Por trás da elegante linguagem eclesial do fim do século XIX, Katzer estava chamando Gibbons de mentiroso.
Em meus muitos anos de estudo da história da Igreja Católica nos EUA, eu sempre considerei os ataques contra Gibbons como o ponto alto da desunião episcopal. Eles não apenas discordavam sobre os méritos de diferir em relação a abordagens e argumentos: Katzer contestava a integridade de Gibbons. Foi o momento mais baixo da história das relações intra-hierárquicas nos EUA.
Até agora.
O que testemunhamos na semana passada na reunião de primavera da Conferência dos Bispos dos EUA foi ultrajante. Como mencionei em minha última coluna [disponível em inglês aqui], os bispos questionaram os motivos uns dos outros sem qualquer objeção da presidência. Os bispos argumentaram que esse impulso para redigir um documento sobre a Eucaristia não era motivado pela política, mas depois tiveram que reconhecer que a ideia veio de um grupo de trabalho formado para lidar com o governo Biden.
E, naquilo que seria engraçado se não fosse tão trágico, cada vez que os responsáveis pelo esforço de redigir o documento explicavam que não estavam motivados pela política, que esse esforço não se dirigia a nenhum indivíduo, um dos “guerreiros culturais” se levantava e mencionava o nome do presidente Joe Biden.
A votação final – a proposta foi aprovada por 168 a 55, com seis abstenções – poderia ter ocorrido de outra forma, e os motivos para o desânimo permaneceriam. A Conferência é um desastre.
Dom Jeffrey D. Burrill, secretário-geral da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, lê os resultados da votação do dia 18 de junho sobre uma proposta de que a Comissão de Doutrina da Conferência redija uma declaração formal sobre “o significado da Eucaristia na vida da Igreja”. Apresentado durante a sua reunião online de primavera, entre os dias 16 a 18 de junho, os bispos dos Estados Unidos a aprovaram por 168 votos a 55, com seis abstenções (Imagem: CNS/NCR)
Se o presidente da Conferência, o arcebispo José Gomez, tivesse talento para a liderança, ele teria convocado um grupo de trabalho há duas semanas para chegar a um acordo. “Isso é liderança básica”, disse um experiente observador da Igreja. Infelizmente, Gomez não tem tal talento.
Na verdade, é pior do que apenas falta de liderança. Gomez mostrou o grau em que estava disposto a tentar manipular o debate quando abriu a reunião na segunda-feira lendo uma carta do arcebispo J. Augustine DiNoia, secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé. Gomez parecia estar sugerindo que a carta pretendia apoiar o esforço de redação do documento, embora o prefeito da Congregação, o cardeal Luis Ladaria, tivesse escrito uma carta exortando os bispos a desacelerarem e a manterem um “diálogo extenso e sereno” antes de redigir qualquer texto.
Enquanto Gomez lia a carta, ela parecia uma carta formal e com certeza o era. DiNoia disse a Cindy Wooden, do Catholic News Service: “A carta continha uma frase branda que recebeu muita atenção imerecida na imprensa: a Congregação ‘espera a revisão informal do eventual rascunho de uma declaração formal sobre o significado da Eucaristia na vida da Igreja’. Seria útil se você explicasse o caráter absolutamente rotineiro de tais comunicações”.
DiNoia acrescentou: “Nunca uma carta de tão pouca importância recebeu tal nível de atenção imerecida. Quando ouvimos sobre o furor, procuramos por toda a parte uma carta com a minha assinatura que poderia ter criado tanto alarido. Finalmente, percebemos que eles estavam falando de uma ‘accusa di ricevuto’, que, depois, localizamos no arquivo apropriado”.
Assim, ou Gomez deturpou a carta de DiNoia intencionalmente, ou ele pensou que uma “accusa di ricevuto” (“confirmação de recebimento”) era algo de grande significado. Qualquer uma dessas opções exigia que Gomez não pensasse em sugerir que DiNoia estava se distanciando do prefeito a quem ele se reporta, uma sugestão que é risível. Qualquer uma dessas opções mostra os limites da capacidade de Gomez de liderar a Conferência Episcopal neste momento importante.
O tempo não é importante apenas por causa dessa péssima proposta de encontrar um modo de negar a Comunhão a Biden. É importante porque o Santo Padre chamou a Igreja universal a se engajar em um processo sinodal. Como Gomez será capaz de gerir um processo sinodal?
Há dois anos, o Sínodo Amazônico votou para pedir que o Papa Francisco permitisse a ordenação de homens mais velhos e castos como padres, os viri probati, com uma margem de 128 votos a 41, e para apoiar uma maior discussão sobre a ordenação de diáconas por 137 votos a 30. O Papa Francisco não autorizou a ordenação dos viri probati ou das diáconas no seu documento pós-sinodal “Querida Amazônia”.
Como relatou o padre jesuíta Antonio Spadaro na revista La Civiltà Cattolica, o Santo Padre entende que 128 bispos podem estar errados ou, em outras palavras, que um sínodo deve discernir, não apenas decidir por maioria ou mesmo por uma votação supermajoritária. Ele disse a Spadaro:
“Houve uma discussão [no Sínodo de 2019] (...) uma discussão rica (...) uma discussão bem fundamentada, mas nenhum discernimento, que é algo diferente de chegar a um bom e justificado consenso ou a maiorias relativas (…). Devemos entender que o Sínodo é mais do que um Parlamento; e, neste caso específico, não podia fugir dessa dinâmica. Sobre esse assunto, ele foi um Parlamento rico, produtivo e até necessário; mas não mais do que isso. Para mim, isso foi decisivo no discernimento final, quando pensei em como fazer a Exortação [‘Querida Amazônia’].”
A liderança da Conferência dos Bispos dos EUA entende que não houve nenhuma sinodalidade na sua reunião da semana passada? Nenhum discernimento do Espírito Santo? A reunião, ao invés disso, parecia uma sociedade de debates de uma escola secundária. É deprimente demais. E não é provável que isso mude tão cedo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O colapso da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU