26 Outubro 2024
A reportagem é de Aníbal Pastor N., publicada por Religión Digital, 24-10-2024.
Numa emocionante cerimônia de despedida, com a participação de mais de mil pessoas presencialmente e virtualmente, o Arcebispo de Lima, Carlos Castillo, celebrou a missa fúnebre em homenagem ao Padre Gustavo Gutiérrez, teólogo peruano e fundador da Teologia da Libertação. A homilia foi marcada por profundas reflexões sobre a vida e o legado de alguém que foi um defensor incansável dos pobres, um homem que, como destacou o Papa Francisco, “soube calar, sofrer e levar adiante o Evangelho”.
O Papa, numa mensagem gravada, destacou a grandeza de Gutiérrez, reconhecendo a sua capacidade de permanecer firme na sua missão cristã, mesmo no meio das dificuldades. Estas palavras ressoaram como eco na homilia do Arcebispo Carlos Castillo, que recordou os anos de serviço de Gutiérrez, marcados pelo seu compromisso com os mais desfavorecidos.
De fato, do Vaticano, o Papa Francisco compartilhou uma mensagem sincera sobre a partida do Padre Gustavo Gutiérrez, a quem lembrou como um “homem da Igreja” que “soube levar adiante tantos frutos apostólicos e tanta teologia rica”.
Em plena segunda sessão do Sínodo da Sinodalidade, Francisco fez uma pausa nas suas atividades para recordar o sacerdote peruano e incansável defensor da opção preferencial pelos pobres. Ele disse: “Hoje penso em Gustavo, Gustavo Gutiérrez, um grande homem, um homem da Igreja que soube calar quando tinha que calar, soube sofrer quando teve que sofrer, soube levar adiante tanto fruto apostólico e tanta teologia rica.
A figura do teólogo foi apresentada como um modelo de fé enraizado na opção preferencial pelos pobres, ensinamento que deixou uma marca profunda na Igreja latino-americana e mundial.
Castillo destacou que ser cristão, para Gustavo Gutiérrez, significava acolher o dom gratuito do amor de Deus e reconhecê-lo na vida dos outros, especialmente daqueles que sofrem. Nas suas palavras, “se não somos amados gratuitamente, a vida não tem sentido”, evidenciando assim a centralidade da gratuidade do amor divino na teologia e na vida do falecido sacerdote. Esta mensagem de amor incondicional, segundo o arcebispo, foi uma das principais lições que Gutiérrez transmitiu a todos que o conheceram.
A homilia também evocou momentos pessoais da vida do teólogo. Castillo contou a história de como um acidente na juventude, que lhe causou uma doença óssea, o levou a passar longos períodos na cama, onde seus colegas faziam anotações para ele. Apesar das limitações físicas, Gustavo Gutiérrez encontrou uma forma de seguir em frente, desenvolvendo uma aguda capacidade de sintetizar ideias e aprofundar a reflexão teológica, algo que o caracterizou ao longo de sua vida.
O arcebispo, que em breve será nomeado cardeal pelo Papa Francisco, destacou também que a opção preferencial pelos pobres, tão presente na vida de Gutiérrez, foi mais do que uma posição ideológica ou teológica. Para ele, esta opção significou humanizar a humanidade com os sentimentos de Cristo, enfrentando a injustiça e a miséria com espírito de diálogo e compreensão para com os mais vulneráveis. Neste sentido, Castillo lembrou que a teologia, para Gustavo, era antes de tudo um “instrumento de caridade”, uma ponte entre a fé e o compromisso social.
Ao longo da homilia também foi feita referência às dificuldades que Gutiérrez enfrentou pelas suas convicções, com ataques que o rotularam como comunista ou marxista. No entanto, Castillo afirmou que sua mensagem era o “Evangelho Puro”, uma teologia enraizada na vida dos pobres e na compreensão do amor gratuito de Deus. Apesar das críticas, Gutiérrez continuou o seu caminho com humildade e coragem, um testemunho que deixou um legado profundo na Igreja e na sociedade.
No final da sua intervenção, Dom Castillo recordou uma frase-chave de Gutiérrez: “Como estaríamos bem se não fosse a realidade”, uma reflexão sobre como a realidade nos chama a deixar o conforto para enfrentar os desafios do mundo. Este convite a encarar a injustiça e agir a partir da fé foi, sem dúvida, um dos grandes ensinamentos deixados pelo Padre Gustavo Gutiérrez, o teólogo que dedicou a sua vida à construção de uma Igreja mais justa e mais próxima dos pobres.
No final da missa, dois leigos e o provincial da Ordem dos Pregadores deram testemunho.
Ela descreveu Gustavo Gutiérrez como um “homem de esperança ativa”, destacando que seu ensinamento sempre foi motivar as pessoas a construir esperança nos lugares onde estavam. Díaz destacou que Gustavo marcou a vida de muitas pessoas, ensinando-as a observar a realidade “com os olhos da fé”, mesmo nos momentos de dificuldade ou adversidade, incentivando-as a ver oportunidades no meio das trevas.
Yolanda Díaz destacou que Gustavo sempre exortou os leigos, tanto mulheres como homens, a viver com “um pé na Igreja, na escuta de Deus que nos chama do seu povo”, e outro pé “na realidade”, estando imersos no compromisso social para a comunidade. Esta dualidade entre espiritualidade e realidade social foi fundamental na formação que Díaz e outros receberam de Gustavo.
Em sua fala, Yolanda também mencionou como Gustavo não permitia que a reclamação fosse a única resposta ao estresse da vida. Em vez disso, ensinou a “construir e olhar além, olhar longe”, sempre a partir do compromisso e da ação. Para Díaz, esta abordagem foi essencial para continuar a construir comunidades e promover um sentido de justiça no mundo.
Por fim, expressou sua profunda gratidão pela vida e legado de Gustavo, destacando que nas diversas regiões do Peru onde influenciou, seu legado continua vivo. “Recebemos o seu legado”, concluiu Díaz, comprometendo-se a continuar a missão de buscar a libertação das pessoas, com foco no serviço a Deus e no anúncio do Evangelho na realidade social atual.
Juan expressou o misto de tristeza e alegria que sente pela saída de Gustavo, destacando o privilégio de ter compartilhado com ele. Ele contou uma anedota da juventude de Gustavo, quando por causa da osteomielite ele não podia participar de jogos de futebol com as outras crianças e assistia pela janela. No entanto, sua honestidade e respeito eram tantos que as crianças recorriam a ele como árbitro para resolver disputas. “Ele era um juiz de janela... eles acreditaram nele porque ele era honesto”, disse Acevedo, destacando a integridade de Gustavo desde cedo.
Acevedo também mencionou como, após superar a doença, Gustavo viveu com uma “paixão de viver” que transmitia em tudo o que fazia. Esta paixão, aliada a um apurado sentido de humor, fazia parte da sua essência. Acevedo destacou que Gustavo “combinou seriedade com humor”, dualidade que lhe ensinou que “para ter senso de humor é preciso ter senso de seriedade”. Essa mistura de profundidade e leveza foi parte do que tornou Gustavo tão influente e querido.
Padre Rómulo agradeceu ao Arcebispo Carlos Castillo por presidir a missa e estendeu sua gratidão a todos os presentes, incluindo bispos, sacerdotes e a família dominicana, que se reuniram para se despedir de Gustavo Gutiérrez. Destacou que Gustavo, como membro da ordem dominicana, manteve-se sempre próximo da sua comunidade religiosa, visitando o convento e partilhando momentos de fraternidade com os seus irmãos.
Vásquez também transmitiu as saudações dos frades da província francesa a que pertencia Gustavo, que, embora não pudessem estar presentes, expressaram seu reconhecimento e gratidão pelo legado de Gustavo. “Estamos reunidos para rezar e dizer-lhe que agora é a sua vez de nos apoiar desde a Casa do Pai”, concluiu Vásquez, reconhecendo o papel que Gustavo continua a desempenhar na vida espiritual da comunidade, mesmo depois da sua partida.
Após a missa fúnebre, os restos mortais foram levados para a Paróquia Cristo Redentor de Rimac, onde Gustavo era pároco. Aqui, segundo testemunhas, o fervor popular foi magnificamente expresso enquanto o Padre Andrés Gallego, que o substituiu nesta comunidade, presidiu uma oração fúnebre.
Abaixo segue o texto completo da homilia do Arcebispo de Lima e Cardeal eleito, Carlos Castillo. A transcrição, título e legendas são de nossa responsabilidade:
Gratidão pela vida e fé de Gustavo Gutiérrez/Mons.
Queridos irmãos e irmãs,
Aqui estamos como testemunhas de uma história concreta que em nossas vidas foi atravessada pela cruz do Senhor e pela sua ressurreição, graças à palavra, ao incentivo, à companhia, ao testemunho e ao ministério do nosso querido Gustavo. Seria estranho se estivéssemos aqui pessoas que não foram tocadas pela força da sua palavra, porque é a palavra do Senhor. Gustavo, pela experiência humana que viveu, sempre soube com grande espírito de disponibilidade diante do Senhor, desde muito jovem, deixar-se questionar, como dizia, ser desafiado por aquela palavra, que sempre colocou no coração da vida dos seres humanos.
Aqui somos pessoas de comunidades cristãs, sacerdotes, religiosos, bispos, mas também temos um povo fiel e amigo de Gustavo que não está necessariamente num horizonte estritamente eclesial. Gustavo, desde muito jovem, sempre se relacionou com pessoas de diferentes horizontes e soube dialogar com elas, reconhecendo em tudo o que é humano uma presença do divino. Hoje viemos todos, cristãos, amigos da Igreja e até alguns que talvez não partilhem da nossa fé, mas que sentiram a santa humanidade de Gustavo passar pelas suas vidas. Viemos agradecer a Deus e à vida pela sua vida. Sabemos que quando alguém marca nossas vidas, a única coisa que nos resta é agradecer e viver em gratidão. Isto é ter fé, não tanto acreditar em Deus, mas confiar que Ele acredita em nós e, através do seu dom gratuito de amor, nos permite ser conduzidos no Espírito ao serviço do significado profundo que esse dom nos dá.
Ser cristão é acolher o dom, não é criar imagens de Deus que mais tarde se tornam práticas e imaginações, das quais mais tarde confessamos. Ser cristão é acolher o dom misericordioso de Deus na nossa vida, representado fundamentalmente pela doação generosa de Jesus como dom do Pai. É deixar-se levar pelo que Gustavo chamou de gratuidade do amor de Deus, o que hoje o Papa Francisco, ao assinar a sua encíclica sobre o Coração de Jesus, também chama de dom gratuito. Se não somos amados livremente, a vida não tem sentido. O que Gustavo nos ensinou foi aceitar o dom da revelação e, se não fosse explícito, muitos de nós que nos tornamos ministros como ele sentimos a sua presença como um presente.
No Evangelho que lemos, Jesus, cheio da alegria do Espírito Santo, agradece ao Pai por ter revelado estas coisas aos pequenos e não aos sábios e entendidos. Este é o fundamento da opção preferencial pelos pobres, que Gustavo tomou como caminho num mundo marcado pela injustiça, pela miséria, pela marginalização, pela ditadura e pelo desprezo. Temos o dever de humanizar a humanidade com os sentimentos de Cristo. A opção pelos pequenos, “nepioi” (νηπιοι) em grego, significa aqueles que não falam. Quando Deus lhes revela o seu amor, eles aprendem a falar, a ser críticos e a abrir horizontes na história.
Gustavo, com sua experiência humana, soube acessar a todos, principalmente aos que mais sofrem. Bruno Mauri, seu amigo marista, disse que Gustavo foi goleiro na juventude e que, assim como Mariátegui, uma bola na perna revelou uma osteomielite que mudou sua vida. Durante seus anos escolares, ele passou muito tempo na cama, e seus colegas trouxeram-lhe anotações que ele leu e resumiu para eles. Essa capacidade de sintetizar experiências e transformá-las em sabedoria prática foi fundamental em sua vida. Gustavo entendeu que a teologia é um instrumento de caridade e solidariedade.
O Papa Francisco tem insistido numa Igreja sinodal, que caminha ao lado dos sujeitos históricos, especialmente dos pobres. Não basta caminhar juntos; Devemos fazê-lo diante do outro, diante dos sofrimentos e dos desafios da história. Gustavo nos ensinou a caminhar em ziguezague, como Jesus, mudando de acordo com as circunstâncias e problemas de cada pessoa. A Igreja não deve ser um movimento linear, mas sim um movimento que vai e vem, enfrentando as complexidades com imaginação e inspiração divina.
Devemos ao Gustavo frases que nos ajudaram a entender como conviver com as pessoas. Uma delas é: “Como seríamos bons se não fosse a realidade”. Esta frase é desconcertante e nos lembra que a realidade nos chama constantemente. A fé cristã não pode ser pregada como uma religião que só nós entendemos, mas como uma linguagem viva que se conecta com as experiências humanas.
O amor gratuito de Deus, que Gustavo nos ensinou, nos lembra que todo ser humano é filho de Deus, mesmo que não saiba disso. Temos que reconhecer Deus nas ambigüidades e nas riquezas de cada pessoa. Gustavo, com sua delicadeza e humanidade, levou a opção preferencial pelos pobres a uma dimensão universal, embora isso lhe tenha custado muitos ataques. No entanto, a sua mensagem era “Evangelho Puro”, uma teologia enraizada na vida dos pobres e numa compreensão do amor gratuito de Deus. Apesar das críticas, Gutiérrez continuou o seu caminho com humildade e coragem, um testemunho que deixou um legado profundo na Igreja e na sociedade.
Devemos ao Gustavo frases que nos ajudaram a entender como conviver com as pessoas. Uma delas é: “Como seríamos bons se não fosse a realidade”. Esta frase é desconcertante e nos lembra que a realidade nos chama constantemente. A fé cristã não pode ser pregada como uma religião que só nós entendemos, mas como uma linguagem viva que se conecta com as experiências humanas.
O amor gratuito de Deus, que Gustavo nos ensinou, nos lembra que todo ser humano é filho de Deus, mesmo que não saiba disso. Temos que reconhecer Deus nas ambigüidades e nas riquezas de cada pessoa. Gustavo, com sua delicadeza e humanidade, levou a opção preferencial pelos pobres a uma dimensão universal, embora isso lhe tenha custado muitos ataques. Contudo, o seu legado é encher o mundo de gratuidade, e isto, como a cruz do Senhor, também nos custará. Mas lembramos que Jesus levou a cruz não pela força dos pregos, mas pela sua infinita misericórdia.
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Gustavo Gutiérrez: “Um grande homem, um homem da Igreja”. Foi assim que o Papa Francisco se despediu dele de Roma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU