21 Mai 2024
"Sempre suspeitamos que devemos fazer algo para merecer não só o amor de Deus, mas até mesmo o amor dos outros, Adrien Candiard desmascara essa moral cega e mostra que o amor dos Deus é pura graça, dada a todos sem condições", escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Stampa - Tuttolibri, 18-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há tempo tem sido observado que na pregação da igreja têm se tornado cada vez mais raros e às vezes até mesmo desapareceram temas centrais do cristianismo, como a morte, a vida eterna e o juízo. Mas há outro tema que no passado tanto empolgou o Ocidente cristão com séculos de debates apaixonados, de trágicas divisões e mútuas acusações de heresias, mas que agora parece ter perdido o interesse do passado: a graça.
Relegada ao estudo especializado da história das doutrinas, muito pouco se fala da graça na catequese, nas homilias, no ensinamento dos bispos. É provavelmente a reação aos tratados de que foi objeto, que tinham os piores defeitos que poderiam ser censurados à teologia. Os teólogos multiplicaram os conceitos, chegando a dividir a graça em categorias: graça preveniente, graça antecedente e graça consequente, graça eficaz e graça suficiente, graça santificadora e graça atual, graça curativa e graça elevante, sem esquecer a graça gratuita. Talvez tenhamos ficado tão cansado de ouvir falar da graça, que foi relegada às prateleiras das bibliotecas, considerando-a um tema para especialistas, um tema hoje obsoleto e pouco eloquente.
Mas excluir a graça do cristianismo significa comprometer não um detalhe, mas o cerne da mensagem cristã: o amor de Deus nunca é merecido. O amor de Deus é gratuito e não depende das capacidades e dos méritos do homem. O jovem teólogo Adrien Candiard dedica à graça um pequeno texto que é um baú de sabedoria espiritual. Candiard depois de se dedicar à política, em 2006 ingressou na ordem dominicana e depois mudou-se para o Cairo como membro do Instituto Dominicano de Estudos Orientais. Especialista em Islã, é considerado um dos autores de espiritualidades mais conceituados na Europa. Por seus livros ganhou vários prêmios na França.
O que é a graça de Deus e para que servem os mandamentos? Para responder a essa pergunta o autor comenta o mais importante dos discursos proferidos por Jesus nos evangelhos, o chamado Sermão da montanha em que ele se distancia da Torá de Moisés. Repetindo várias vezes a fórmula que nenhum rabino até então atrevera-se a usar, afirma: “Vocês ouviram que foi dito ... Mas eu vos digo." “Ouviste que foi dito. Aos antigos. Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela." E o mesmo vale para outros quatro mandamentos: homicídio, perjúrio, lei do talião, amor ao inimigo. Jesus entrega aos seus discípulos uma nova lei que é o cumprimento daquela mosaica, que não é abolida, mas completada. A lei do Sermão da Montanha, contudo, não é menos exigente que a de Moisés, aliás é mais exigente: “se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus", sentecia. Claro, Jesus lutou contra o legalismo, mas ao mesmo tempo interpreta para seus discípulos a Lei de forma radical, com exigências bastante claras a serem vividas a cada dia como regras para a vida cristã: “Amais vossos inimigos e orais por aqueles que vos perseguem”. Daí a pergunta: se Deus ama gratuitamente por que os mandamentos?
O Sermão da Montanha não deve ser aplicado literalmente nas suas precisas indicações de vida cotidiana: “se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra”, "se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas." Seria demasiado simples e redutivo, porque não é uma linguagem legislativa, mas anedótica. Se o homicídio, o adultério, o perjúrio são objeto de prescrições legais a serem respeitadas ou transgredidas, olhar para uma mulher com desejo ou dar a outra face não é fixar uma regra da mesma ordem, mas sim indicar um caminho. A ética evangélica não se limita à capacidade de permanecer dentro dos limites, do lado certo daquela barreira estritamente binária entre a transgressão ou o respeito traçada pelas regras legais, mas é a abertura de um caminho, é a possibilidade de progredir mais ainda numa direção precisa. “Ao indicar a direção e não o caminho a seguir, observa Candiard, Jesus deixa todo o espaço para a consciência humana e, portanto, para a nossa responsabilidade. A vida moral do cristão não consiste em obedecer mecanicamente a regras, mas na avaliação das situações e na tomada de cada decisão conscientemente."
Portanto, os mandamentos não são a condição para ser amado por Deus, mas indicam uma direção de vida que se abre a um espaço infinito de progresso. O amor de Deus é dado sem requisitos, não é merecido, mas é sempre imerecido. O amor de Deus não é meritocrático, isto é, não é um sentimento, uma ação de Deus que atinge os seres humanos a partir de seus méritos; não se adquire, não pode ser conquistado, mas apenas ser acolhido: é gratuito e, portanto, seu o nome também é "graça" (chen, cháris, gratia). Deus dá graça em sua liberdade infinita e em seu infinito amor, e ninguém pode pretender prêmios, muito menos privilégios, por eleição ou vocação.
Nos evangelhos há uma parábola com a qual Jesus anuncia muito claramente que o amor de Deus não deve ser merecido: a chamada parábola dos trabalhadores da última hora. No final de jornada de trabalho, os trabalhadores que trabalharam desde a manhã recebem tanto quanto aqueles que trabalharam apenas uma hora. Para o patrão os primeiros e os últimos são todos iguais, mas aos olhos dos trabalhadores da primeira hora isso aparece como uma injustiça, uma atitude cega, que não vê e não reconhece os méritos. Consequentemente, o patrão é considerado injusto por eles, portanto detestável. "A justiça em primeiro lugar!", diz o bom senso humano, nem sequer tocado pelo pensamento de que a nossa justiça possa ser limitada e que possam haver outros critérios de justiça. Na parábola o patrão lembra aos trabalhadores da primeira hora que ele respeitou a remuneração acordada, portanto não lhes fez nenhum agravo, não foi injusto. Mas depois continua, com a intenção de sublinhar não a desaprovação para com aqueles que o criticam, mas deslocar a ênfase sobre a gratuidade e a bondade: “Eu quero dar a esse último tanto quanto a você: não posso fazer o que quiser com o que é meu?
Certamente respeita a justiça e, portanto, o acordo estabelecido, mas também quer dar mais para aquele a que caberia menos, para que possa levar para casa o salário necessário para ele e para a sua família. O patrão da vinha quer dar o que tem, o que ele possui, a quem não tem o necessário para viver: a homens desempregados, mas não preguiçosos. Ele, portanto, mostra uma justiça diferente daquela concebida e implementada pelos homens: uma justiça não retributiva nem meritocrática.
Ainda hoje esse conceito de justiça, que Jesus atribui a Deus, escandaliza e desconcerta os devotos que se esforçam para contar as suas ações para poder conhecer os números e as forças dos seus méritos.
Sempre suspeitamos que devemos fazer algo para merecer não só o amor de Deus, mas até mesmo o amor dos outros, Adrien Candiard desmascara essa moral cega e mostra que o amor dos Deus é pura graça, dada a todos sem condições.
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Não justiça, mas graça, porque o amor de Deus não é meritocrático. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU