08 Dezembro 2022
O contexto atual me incita a não acreditar mais no “mundo futuro”. Embalar os nossos contemporâneos com promessas de um mundo futuro em que “o almoço será grátis” e viveremos uma eternidade de delícias é um engano que hoje nos faz abandonar a aurora. A eternidade já começou.
O comentário é de Guy Aurenche, advogado francês, em artigo publicado por Saintmerry-hors-les-murs.com, 28-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Faço meu esse título (“Quelques mots avant l’apocalypse”) retirado do fecundo livro de Adrien Candiard (Ed. Cerf), que acrescenta um subtítulo: “Ler o Evangelho em tempos de crise”. Precisamos justamente desse convite fraterno neste momento em que a catástrofe ecológica se torna realidade, em que a guerra, que nunca abandonou o planeta, está às nossas portas, em que na Igreja Católica descobrimos um rosto de hipocrisia e de mentira que pode nos fazer duvidar da Boa Notícia de um amor vivo e mais forte do que a morte.
Para que podem nos servir os escritos apocalípticos? Certamente não para fixar uma data para o fim do mundo, menos ainda uma receita para escapar dele. “Não devemos tratar os discursos apocalípticos como um gigantesco enigma a ser decifrado.” E menos ainda como uma mera adivinhação.
É preciso recebê-los, antes, como um desvelamento, uma revelação, uma atenção aos sinais dos tempos e também um convite: “Aceitar falar mais sobre o fim do mundo para encontrar, neste mesmo mundo, um mínimo de esperança”.
Não para nos tranquilizar com um otimismo que não tem sentido, mas para nos unir àquelas pessoas que encarnam a aurora nas noites de hoje.
O contexto atual me incita a não acreditar mais no “mundo futuro”. Aquele de que os melhores analistas nos falaram continuamente quando a Covid-19 chegou. Aquele que os políticos manifestam ao anunciar o fim da guerra na Ucrânia. Aquele que certos ecologistas nos prometem se apertarmos os cintos. Aquele que os bispos católicos se comprometiam a construir no dia seguinte ao relatório da Ciase (sobre os abusos sexuais cometidos por padres).
Embalar os nossos contemporâneos com promessas de um mundo futuro em que “o almoço será grátis” e viveremos uma eternidade de delícias é um engano que hoje nos faz abandonar a aurora. A eternidade já começou.
Eu acredito na aurora do olhar de Sônia, uma brasileira que conheci há 40 anos e que me descrevia, à porta de seu barraco com telhado de sapê, como as grandes empresas haviam destruído a sua terra a ponto de não poder mais cultivar o feijão necessário para sua sobrevivência. Ela resistia, junto com muitos outros camponeses. Sua família resiste até hoje.
Eu acredito na aurora testemunhada por tantas mulheres e homens hoje que, em um contexto hostil, acolhem o estrangeiro que luta para seguir em frente. Que agem junto às autoridades e à população para abrir os nossos olhos para um drama devastador: a recusa da hospitalidade.
As nossas convicções, os nossos recursos financeiros, os nossos títulos eleitorais e, por que não, as nossas manifestações não violentas podem encarnar uma aurora.
Eu acredito na capacidade dos artistas que, sem esconder nada da noite, tentam inserir nela um resplendor de vida. Como a cor preta luminosa do pintor Pierre Soulages ou os textos do poeta Christian Bobin. Em seu último livro, “Le muguet rouge” [O lírio vermelho] (Ed. Gallimard), ele nos ajuda a nos aproximar do invisível: “Há uma espécie de morte da qual é difícil escapar uma vez (escolhida) a necessidade inexplicada de pensar e de agir cada vez mais às pressas, de amar cada vez menos... Escrevo para que se possa novamente sentir o invisível tocando o visível aqui embaixo... para tentar um passo para o lado... Eu sou um pequeno soldado a serviço do invisível”.
A mensagem apocalíptica ressalta o dever da lucidez, da responsabilidade e do compromisso. É o apelo à confiança. A vinda de Jesus é apocalíptica no sentido de que revela o que há de melhor no coração humano (ao lado do que há de pior): o amor do Pai oferecido gratuitamente aos seres humanos.
“Não é fácil aceitar ser amado... A nossa vida é trágica porque (além das grandes provações inevitáveis) ela é atravessada pela recusa de ser amado... Você está pronto para se deixar amar?”, pergunta Adrien Candiard, que nos convida a viver plenamente essa hesitante certeza de sermos amados. Assim como a pobre viúva que dá a Deus o pouco que lhe resta, sua própria indigência.
Em meio às tempestades atuais, longe de sonhar com mundos futuros ou de nos fecharmos em resignações desesperadas, somos convidados a descobrir, por meio dos nossos defeitos e das nossas fraquezas, uma aurora que nos convida a nos reerguermos.
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Algumas palavras antes do apocalipse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU