25 Outubro 2024
"Com Gustavo Gutiérrez, a teologia dos países emergentes diz ‘adeus’ à teologia baseada em pressupostos longamente cultivados na Europa e na América do Norte", escreve Eduardo Hoornaert, historiador e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Gustavo Gutiérrez sacode o jugo da ‘leitura grega’, que até hoje pesa sobre o cristianismo ocidental, e vai resoluto a Jesus de Nazaré que, após deixar João Batista penitencial, volta à sua terra natal e se compromete a fundo com o povo pobre.
O projeto de Jesus tem grande capacidade de congregar pessoas, pois atinge o povo que se encontra nos bairros populares das cidades, nos sítios onde vivem os camponeses, no cais do porto, no mercado, nas ruas e praças, mas principalmente no interior dos pátios habitacionais, onde diversas famílias moram juntas atrás de um mesmo portão de entrada. Na hora da comida em comum, as pessoas atualizam seus conhecimentos, ouvem falar de outros grupos, comentam os problemas, comem e bebem juntos, cantam hinos, ritualizam um encontro de fraternidade. É a comensalidade, a eucaristia: Damos graças a Deus, porque nossa casa dispõe de pão para todos e ainda sobra para uma eventual visita. Aqui não há famintos. Nossa solidariedade elimina a fome.
Em geral, não se alcança essa comensalidade, essa eucaristia, tal qual aparece, de modo um tanto eufórico, nos Atos dos Apóstolos. O resultado permanece bem mais modesto. Mas existem, por exemplo, indícios de que as comunidades ajudaram a pagar os impostos, na época um peso enorme sobre os ombros das pessoas. Desse modo, a ‘comensalidade’ pode ter uma dimensão financeira: colaboração no pagamento de dívidas.
Para muitos, a comensalidade (e eventualmente a ‘comunhão de bens’) é exigente demais. Abordado por um jovem rico que quer segui-lo na missão, Jesus diz: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e os distribui entre os pobres: terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me (Mt 19, 21; Mc 10, 21). Ao ouvir essas palavras, o jovem rico vai embora. E Jesus pondera: o projeto é quase impossível a ser posto em prática. Falta quem queira colaborar. Mesmo assim, para Deus tudo é possível (Mt 19, 26; Mc 10, 27). É dentro desse contexto que aparece o famoso dito de Jesus: É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.
Gustavo não vai direto à comensalidade, pois o mundo atual tem uma complexidade própria e ela precisa ser destrinchada. Mas ele pode ser chamado de comunista, no sentido próprio do termo. Sei que, hoje, o termo costuma remeter ao Manifesto Comunista, publicado por Marx e Engels em 1848. Mas vale recordar uma lição básica dos linguistas: palavras atuam em diversos contextos e, nisso, assumem diversos significados. ‘Comunismo’, ‘comum’, ‘comunhão’, ‘comunidade’, ‘comungar’, ‘comunicação’, ‘comunicar’, ‘comunicativo’, etc., são termos impregnados de espírito cristão. O comunismo ‘bem entendido’ pertence, decerto, ao âmago do cristianismo, embora tenhamos de reconhecer que, ao longo da história, a experiência de uma convivência ‘comensal’ ou ‘comunista’ apenas vingou em ambientes restritos e de modo limitado.
Na primeira frase deste breve texto, falei em ‘leitura grega’ do evangelho. O que se entende por essa expressão? Trata-se de uma reinterpretação do cristianismo a partir de parâmetros neoplatônicos. Aqui não é o lugar de aprofundar esse tema. Basta dizer que a leitura neoplatônica dos evangelhos passa a influenciar o pensar e o agir cristão a partir do século III e resulta numa espiritualização da vida cristã e num esquecimento do teor social da mensagem de Jesus. O tema é importante, pois a ‘leitura grega’ incide diretamente na fé até hoje praticada pelo povo cristão, mais que as questões organizatórias, devedoras de situações concretas e, portanto, de caráter passageiro, que costumam ganhar tanto espaço nas costumeiras apresentações do cristianismo. As questões organizatórias não devem ser dramatizadas.
Nem a ruptura entre a igreja ocidental, centralizada em Roma, e a ortodoxia grega, centrada em Constantinopla, no decorrer do século XI, nem a quebra de braços entre catolicismo e luteranismo, no século XVI, nem a subida do pentecostalismo em nossos dias. Pois essas movimentações são todas decorrentes de situações e geografias particulares. Muita coisa pode mudar sem que isso afete, de modo decisivo, a vivência do evangelho por parte de cristãos ‘anônimos’, que professam uma religião secularmente vivida sem registro nem fronteira nem nome, uma religião universal que as instituições teimam em não reconhecer. Milhões e milhões de pessoas vivem sua religião dentro de quadros familiares, em todos os quadrantes do mundo, dentro ou fora das mais variadas institucionalizações. Essas populações costumam ser influenciadas pela ‘leitura grega’, embora, em geral, nem conheçam a expressão.
Interessante observar que, indiretamente, a questão da ‘leitura grega’ foi abordada, no Concílio Vaticano II, por ocasião de discussões em torno do documento conciliar Gaudium et Spes. Nessas discussões, é possível detectar nitidamente uma diferença de posicionamentos entre ‘neoagostinianos (espiritualistas), como Daniélou, de Lubac, Ratzinger e von Balthasar, que basicamente (e sem o mencionar) se apoiam na ‘leitura grega’, e, do outro lado, ‘neotomistas’ (‘realistas’), como Chenu, Congar, Rahner, Lohergan e Schilllebeeckx, que se distanciam da ‘leitura grega’ [1]. Mas essa diferenciação não impediu que uma ‘sombra grega’ continuasse pairando sobre a teologia praticada na Europa até hoje.
É dentro desse quadro que se perfila a figura de Gustavo Gutiérrez que, sem participar do Concílio Vaticano II, respira um ar totalmente diferente em sua Teología de la Liberación (Lima: Editora CEP, 1972). Só encontrei, no referido livro, uma nota de pé de página em que Gutiérrez cita Agostinho, paraninfo do cristianismo espiritualizado, para discretamente tomar distância diante de seus posicionamentos (nota na p. 59) e, com isso, da ‘leitura grega’ em geral.
Podemos dizer que, com Gustavo Gutiérrez, a teologia dos países emergentes diz ‘adeus’ à teologia baseada em pressupostos longamente cultivados na Europa e na América do Norte. Gustavo nos aponta o futuro.
[1] FAGGIOLI, Massimo. Leituras e releituras do Vaticano II. In: Décio; Sanchez, Dicionário do Concílio Vaticano II, São Paulo: Paulus, p. 536-539.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Gustavo Gutiérrez 1928-2024. Artigo de Eduardo Hoornaert - Instituto Humanitas Unisinos - IHU