04 Setembro 2024
A posição do Brasil já gera suspeitas entre os seus parceiros do BRICS, grupo do qual a Venezuela poderá ser futuro membro, após ser convidada pela Rússia.
O artigo é de Zainer Pimentel, jurista brasileiro, em artigo publicado por El Salto, 04-09-2024.
Em 28-07-2024, foram realizadas eleições presidenciais na Venezuela. O resultado, segundo o órgão oficial responsável pela apuração, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), posteriormente confirmado em 22 de agosto pelo Supremo Tribunal de Justiça (TSJ), declarou o atual presidente Nicolás Maduro vencedor por 51,97%. PSUV) em comparação com os 43,18% dos votos do candidato da oposição, o ex-diplomata Edmundo González (MUD).
A líder da oposição, María Corina Machado, tutora de González, contestou imediatamente o resultado das urnas, alegando irregularidades. Embora a oposição não tenha fornecido provas definitivas de fraude, esta tese de fraude eleitoral espalhou-se internacionalmente. A OEA, o Carter Center e até as Nações Unidas corroboraram a alegada falta de transparência e imparcialidade no processo, mas também não apresentaram provas conclusivas da referida fraude. No exterior, apesar do total desconhecimento do sistema eleitoral venezuelano, intelectuais, informantes e partidos políticos de todas as cores, incluindo uma parte importante da esquerda, aceitam as acusações de fraude levantadas por Corina Machado e Edmundo González.
Para mergulhar no conflito, com excessiva arrogância e atribuindo poderes que correspondem apenas ao CNE venezuelano, os EUA e alguns países latino-americanos como Argentina, Equador, Peru e Uruguai reconheceram a vitória de Edmundo González, e presidentes ideologicamente aparentemente tão díspares como o argentino Javier Milei e o chileno Gabriel Boric emitiram duras declarações contra o presidente da Venezuela. Por seu lado, a China, a Rússia e o Irão optaram por reconhecer imediatamente a vitória de Maduro, deixando claro que o conflito está inserido na geopolítica dos blocos. Por sua vez, outros países da região como o Brasil, o México e a Colômbia, na tentativa de salvaguardar a sua posição de neutralidade, que lhes fornece uma base para mediar entre as partes, inicialmente não reconheceram a vitória do presidente Maduro nem corroboraram as teses. da oposição à fraude eleitoral.
Atualmente, e com o conflito já servido, a mediação dos presidentes da Colômbia, Brasil e México propôs condicionar o reconhecimento da vitória de Nicolás Maduro à apresentação dos registos eleitorais. Isto é algo muito polêmico, pois impõe a um Estado soberano a humilhação diante de seus pares de submeter a qualidade democrática de suas instituições aos critérios de nações estrangeiras, ainda mais quando não existe um tribunal internacional que exija esta condição para resolver esse tipo de conflito.
Imaginemos o que teria acontecido se o governo venezuelano tivesse colocado a mesma condição ao Tribunal Superior Eleitoral do Brasil (TSE), para reconhecer a estreita vitória eleitoral do presidente Lula da Silva, com 50,83%, sobre seu rival Jair Bolsonaro (49,17%). Certamente o juiz do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, o maior responsável pelo processo eleitoral, teria que dar mais de uma explicação aos seguidores da extrema-direita Jair Bolsonaro, que nunca reconheceu o resultado obtido no eletrônico urnas em seu país. A extrema-direita no Brasil não só considerou o resultado fraudulento, como até tentou um golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, logo após a posse do presidente eleito Lula da Silva. A demanda inadequada do Brasil e da Colômbia não parece condizer com os rituais de respeito mútuo nas relações internacionais entre países amigos. Parece mais uma interferência externa nos assuntos internos de uma nação soberana.
A posição brasileira sobre esse tema é incômoda e teve suas idas e vindas, principalmente nas declarações do assessor especial de relações exteriores da Presidência da República, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Já no dia seguinte às eleições, ficou clara a aparente fragilidade da argumentação do deputado brasileiro. O governo venezuelano já tinha aceitado, com alguma relutância, a presença do diplomata durante as eleições como observador eleitoral. Ainda em Caracas, horas depois do encerramento dos locais de votação, Amorim declarou que as eleições decorreram normalmente. Chegou a dizer mais de uma vez que não confiava nos dados manuseados pela oposição. O processo eleitoral na Venezuela não parecia estar sob suspeita. Porém, ao chegar ao Brasil dias depois, começou a modular seu discurso de maneira curiosamente cética. Em entrevista à RedeTV no dia 1º de agosto, ele defendeu a extravagante tese de que no caso venezuelano o ônus da prova das fraudes no processo eleitoral não deveria recair sobre a oposição, que ele acusa de cutucar, mas sobre o governo. A próxima ocorrência do governo brasileiro foi aconselhar que Maduro aceitasse um governo de coalizão com políticos da oposição para iniciar um processo de pacificação. Tal modulação do discurso gerou confusão dentro do próprio partido governista, o Partido dos Trabalhadores, que parabenizou o presidente venezuelano pela vitória nas urnas em um “dia pacífico, democrático e soberano”.
No passado, o Brasil desempenhou um papel fundamental na normalização do ex-presidente Hugo Chávez perante seus inimigos estrangeiros. Após a fracassada tentativa de golpe contra ele, entre 2002 e 2003, o governo anterior do PT criou o “grupo de países amigos da Venezuela”, aceito com relutância até pelos EUA. Mais recentemente, o Brasil se ofereceu como mediador no conflito entre Venezuela e Guiana sobre a província de Ezequibo, reivindicada pelo governo da Venezuela. A tendência sempre foi promover a estabilidade da região e evitar banhos de sangue no país vizinho, com o qual faz fronteira de 2.199 quilômetros. No entanto, agora a mediação não parece estar a correr muito bem, principalmente quando se soube que um dos responsáveis pela arbitragem tripartida, o presidente do México López Obrador, se distanciou do grupo. Numa nova demonstração de criatividade, o governo brasileiro junto com a Colômbia, além de continuar insistindo na solicitação da apresentação dos registros eleitorais, algo inusitado pelas características do sistema eleitoral venezuelano, abandonou a absurda tese da repetição eleitoral, rejeitado nesse caso até pelos seguidores de María Corina Machado.
A posição do Brasil já gera suspeitas entre os seus parceiros do BRICS, grupo do qual a Venezuela poderá ser futuro membro, após ser convidada pela Rússia, com quem mantém excelentes relações de cooperação. A Venezuela há muito se posiciona na esfera de influência desse clube. Por outro lado, parece contraproducente provocar atritos com um aliado progressista histórico na região e um colaborador ativo nos processos de integração latino-americanos.
Contudo, o que mais surpreende em toda esta confusão é a abordagem anómala do governo progressista brasileiro às extravagantes teses de Corina Machado, uma das signatárias da Carta de Madrid, assinada entre outros por Javier Milei, Jair Bolsonaro e Giorgia Meloni. Esta líder política entre 2018 e 2020 não corou por promover uma campanha inusitada que pedia a intervenção de tropas dos Estados Unidos no seu país para dar um golpe de Estado contra o presidente Maduro. Na mesma linha, o seu discípulo Edmundo González não compareceu ao mais alto órgão de justiça da Venezuela (TSJ) para contestar o resultado oficial, como fizeram os outros candidatos da oposição, embora tenha imediatamente instado as Forças Armadas a se levantarem contra Maduro. Muitos setores da esquerda que lutam ferozmente contra a extrema-direita no Brasil agora não têm escrúpulos em agradar os extremistas na Venezuela. Recordemos que assinaram o acordo de Barbados, que previa garantias eleitorais, e face a uma derrota inesperada, agora não aceitam o resultado. É curioso que a medida do perigo que representa o avanço da extrema-direita no Brasil não seja válida para avaliar o mesmo fenômeno no país vizinho.
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A posição ambígua do governo brasileiro em relação às eleições presidenciais na Venezuela. Artigo de Zainer Pimentel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU