19 Agosto 2024
"O povo palestino da Faixa de Gaza deseja viver em liberdade, não ser escravo de ninguém, mesmo que isso signifique entregar a própria vida", escreve Bahaa Shahira Raouf, escritor palestino, em artigo publicado por El Salto, 18-08-2024.
“Não tente adoçar a morte, ilustre Odisseu. Preferiria, como jornaleiro, servir a outro, a um homem sem fortuna, do que reinar sobre todos os mortos.”
Com essas palavras, o poeta grego Homero, em A Ilíada, através de seu herói Aquiles, expressava o conceito de vida e morte entre os gregos da época. Os gregos, profundamente apaixonados pela vida, valorizavam a existência terrena e reconheciam o horror da morte, assim como a incerteza da vida eterna. Para eles, a separação do mundo que habitavam era uma tragédia.
Se projetarmos esses conceitos sobre a realidade atual da Faixa de Gaza, que tem sofrido durante quase um ano a implacável maquinaria da morte que ataca os palestinos, vemos que as ideias gregas sobre a vida e a morte ressoam, embora com matizes diferentes, na experiência do povo de gaza. Os palestinos compreendem profundamente o significado da vida e a inevitabilidade da morte. Sabem, por seu sofrimento diário, que sua morte, embora possa parecer ordinária para o mundo, é para eles uma experiência extraordinária e dolorosa. No entanto, o povo palestino da Faixa de Gaza deseja viver em liberdade, não ser escravo de ninguém, mesmo que isso signifique entregar a própria vida.
A filosofia da morte do filósofo grego Sócrates é interessante. Frequentemente, ele baseava seu pensamento moral nela, tornando-se o fundador da primeira escola de filosofia moral do mundo. No diálogo Fedon, Sócrates fala da “morte como transformação”. Para ele, a morte não era um fim, mas um passo para um novo estado. Ele acreditava que as almas transitam para um mundo mais perfeito e sereno após a morte, libertando-se das amarras do corpo e dos problemas que isso acarreta. Segundo Sócrates, a morte permite que a mente seja livre e pense com clareza.
Essa filosofia renasce mais de dois mil anos depois na Faixa de Gaza, adaptada à realidade do povo gaza. Se falarmos da “morte como transformação”, vemos como os gazatenses revivem seus mártires de diferentes maneiras. Os mártires retornam à vida na forma de foguetes ou armas com as quais lutar, e se reencarnam em seus filhos ou nos filhos de seus familiares. A tradição palestina de batizar com nomes de antecessores transforma esses nomes em símbolos de heroísmo e resistência, transmitidos de geração em geração.
Para o povo de gaza, a crença na redenção e a luta diária são prova de sua sinceridade. Este povo não vê essa redenção como algo passageiro, nem considera a morte como um fim inevitável, tampouco acredita que a constante enxurrada de sangue careça de propósito. O povo de gaza compreende que, se a morte é inevitável, não deve ser em vão. A mortalidade que a entidade sionista tenta impor se tornará, com o tempo, uma maldição para ela, através de novas gerações que continuarão a luta.
O conceito de morte foi abordado a partir de diversas perspectivas filosóficas, religiosas e científicas ao longo dos séculos. Evoluiu com o desenvolvimento do ser humano e suas circunstâncias. No entanto, na Faixa de Gaza surgiu uma filosofia própria sobre a morte, desenvolvida ao longo dos anos. Após sua mortalidade, o povo de gaza não morre simplesmente como o resultado dos acontecimentos. Em sua rebelião contra a ocupação, as pessoas í criaram a ideia de que a vida não tem sentido fora de sua luta. Essa visão única deriva de suas experiências cotidianas, no meio dos conflitos que as cercam.
Essa dolorosa realidade não fez com que o povo de gaza perdesse o amor pela vida. Pelo contrário, transformou sua visão em uma que exige uma vida digna e justa para eles como palestinos. Essa perspectiva se tornou uma característica distintiva dos habitantes de Gaza, "herdada como uma língua". No fim, os palestinos da Faixa de Gaza criaram seu próprio conceito de vida, construindo sua escola moral sobre as bases das escolas que os precederam, de uma maneira única e especial. O importante é que os moradores de gaza compreendem a anormalidade da morte e, apesar dos esforços do mundo para normalizá-la como uma condição natural de seu ciclo vital, os palestinos continuam a chamar a vida pelo seu nome: Vida.
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Morrer pela vida é vida. Artigo de Bahaa Shahira Raouf - Instituto Humanitas Unisinos - IHU