06 Agosto 2024
"A teocracia xiita, que deve impor sua visão imperial a todo o Islã, e a etnocracia judaica, à qual a direita israelense sacrifica a natureza democrática do Estado, tornam a contraposição ao mesmo tempo insulsa e mortal. Elas devem travar uma guerra entre si".
O artigo é de Gad Lerner, jornalista e escritor radicado na Itália, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 04-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a nova guerra é completamente uma incógnita, mas as grandes manobras estão em pleno andamento. Israel suspendeu as licenças dos reservistas. A frota estadunidense está em alerta".
O duplo funeral com o qual Ismail Haniyeh, líder político do Hamas, foi homenageado na quinta-feira em Teerã, capital do Irã, e no dia seguinte em Doha, capital do Catar, representa um evento sem precedentes na história milenar do Islã; e deveria nos fazer refletir sobre os cenários futuros de uma nova guerra no Oriente Médio, que todos consideram iminente, mas sobre a qual nenhuma potência mundial seria capaz de controlar os desdobramentos.
Haniyeh era um expoente da Irmandade Muçulmana sunita que importou para a realidade palestina, sem hesitações teológicas, a doutrina política contrarrevolucionária elaborada pelos aiatolás xiitas após a queda do Xá da Pérsia. Digamos que é como se, para uma personalidade cristã controversa, primeiro fosse realizado um funeral com um rito cismático protestante e depois outro com um rito católico. A diferença é que a guerra religiosa entre os sunitas (85% dos muçulmanos) e os xiitas (15% dos muçulmanos) ainda está em pleno andamento. A morte do líder do Hamas uniu simbolicamente em homenagem o Guia Supremo da República Islâmica do Irã, Ali Khamenei, um defensor da teoria velayat-e faqih (tutela do jurisconsulto) que subordina as autoridades políticas à vontade do líder religioso; e o emir do Catar, um país em cujo código ainda vigora a pena de morte para os muçulmanos que se convertem a outra fé e cuja principal mesquita leva o nome do teólogo islâmico puritano Muhammad Ibn al-Wahhab.
Estamos realmente certos de que, no próximo e tão anunciado conflito entre Irã e Israel, os países árabes aliados ao Ocidente ajudarão o Estado judaico a interceptar os mísseis lançados em direção ao seu território do Líbano, Iêmen, Iraque, Síria e diretamente do Irã? Quando isso aconteceu, na noite de 13 de abril, os partidários de Netanyahu enfatizaram o renascimento de um "eixo sunita" forçado pelas circunstâncias a apoiar Israel para se contrapor à ameaça iraniana que paira sobre eles. Mas, nesse meio tempo, a Arábia Saudita começou a fazer um jogo duplo (incentivada por chineses e russos), enquanto a Turquia se alinhou abertamente ao lado do Hamas.
Por quanto tempo o Egito poderá virar a cara diante da carnificina contínua em Gaza e manter relações diplomáticas com Israel, enquanto a indignação pelo destino dos palestinos une todo o mundo árabe? Haveria ainda outro questionamento que angustia os cidadãos israelenses após as recentes e inevitáveis "falhas" reveladas pelo sistema de interceptação antimísseis Iron Dome, que está em serviço há 13 anos, mas nunca foi tão exigido como agora. Até que ponto está desgastado? Por quanto tempo aguentará? Deveria parar por aqui porque parece que, para escrever sobre política internacional, é preciso ser mais especialistas técnicos em novas armas de precisão do que estudiosos de dinâmicas sociais, políticas e religiosas.
Quanto tempo os mísseis levam para percorrer dois mil quilômetros (a distância que separa o Irã de Israel)? Mais ou menos de dez minutos? Que forma pode assumir no futuro uma guerra a longa distância entre países que não fazem fronteira entre si e que são levados ao confronto direto por motivações que nada têm a ver com a geografia, com o espaço vital de cada um, mas por outros motivos, consequências do anacronismo que paradoxalmente os une e superaquece o fanatismo de seus grupos governantes?
A teocracia xiita, que deve impor sua visão imperial a todo o Islã, e a etnocracia judaica, à qual a direita israelense sacrifica a natureza democrática do Estado, tornam a contraposição ao mesmo tempo insulsa e mortal. Elas devem travar uma guerra entre si. O Irã para se estabelecer como o principal estado de um poder islâmico alternativo ao decadente modelo ocidental, em nome do antigo império persa, e assim resistir aos muitos inimigos regionais do regime dos aiatolás. O Israel de Netanyahu porque está convencido de que a paz com os árabes é impossível, que, consequentemente, os palestinos devem ser cinicamente esmagados para induzi-los a um novo êxodo e, enfim, porque chegou o momento propício para dar um empurrão final no Irã antes que seja tarde demais.
Há anos que Netanyahu quer convencer os EUA pós-Obama de que é necessário um acerto final com os aiatolás. É por isso que viu com irritação a abertura do front ucraniano. Por temperamento e conveniência, Bibi se sentiria mais próximo de Putin do que de Biden. Mas agora, a fim de arrastar os EUA para a guerra ao seu lado, ele também estaria pronto para declarar que é uma única trincheira que une Gaza a Kiev.
A nova guerra é completamente uma incógnita, mas as grandes manobras estão em pleno andamento. Israel suspendeu as licenças dos reservistas. A frota estadunidense está em alerta. Certamente não ajudará a pacificar o mundo islâmico a prisão, em Jerusalém, do octogenário imã da Mesquita al-Aqsa, Akram Sabri, culpado de ter prometido vingança, em um sermão, pelo assassinato do líder do Hamas.
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Irã e Israel na vigília (surreal) da guerra. Artigo de Gad Lerner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU