17 Mai 2024
"Não é uma questão que diz respeito apenas aos que vivem no Médio Oriente. Pela sua relevância e peso em muitos estados, a diáspora judaica também pode dar a sua contribuição. Decidirá por pressionar por uma virada? Deixará por inércia liberdade de ação a Netanyahu e aos extremistas do seu governo?", escreve Marco Politi, jornalista e escritor italiano, especializado em notícias e política do Vaticano, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 14-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há momentos em que o Anjo da História passa entre as casas e olha nos batentes das portas se há sinais de mentes e corações abertos ou de almas fechadas em si mesmas. Em todas as culturas se encontram imagens semelhantes que revelam uma passagem crucial. Thomas Friedman, colunista do New York Times, descreveu essa temporada de maneira precisa: “Acho perturbador e deprimente que hoje não exista nenhum líder israelense de relevo na coalizão de governo, na oposição ou nas forças armadas que ajude coerentemente os israelenses a entender esta alternativa – tornar-se párias globais ou ser parceiros no Médio Oriente – nem que explique por que razão deveriam escolher a segunda opção”.
A alternativa é precisamente essa. Não se trata de ignorar os atos bárbaros cometidos em 7 de outubro durante o ataque do Hamas – são indeléveis – mas se trata de uma questão de compreender que nada, realmente nada justifica a brutal carnificina que está em curso em Gaza há meses por obra do governo e do exército israelense. O ódio ao Hamas, o papel do Irã, os eixos do mal, as histórias sobre os escudos humanos, o chamado à autodefesa... tudo, absolutamente tudo desvanece diante dos cadáveres de doze mil crianças, do incrível número de trinta e quatro mil mortos (24 mil identificados, os demais ainda sem nome), dos hospitais bombardeados, da fome imposta sistematicamente à população de Gaza, do corte de fornecimentos de medicamentos.
No Médio Oriente, aqueles que, com a memória, remontam os passos da história, recordam um único exemplo comparável ao massacre em Gaza, com os palestinos empurrados de um canto a outro como um rebanho de animais para o abate: o massacre dos mongóis em Bagdá em 1258.
O voto esmagador com que a assembleia da ONU apoiou o reconhecimento do estado da Palestina e a miserável patrulha que se alinhou ao veto estadunidense realçam o problema crucial. Não faz sentido desenrolar o novelo dos últimos setenta anos, as culpas recíprocas, a tragédia das vítimas de ambos os lados, oportunidades perdidas ou sabotadas.
Só faz sentido começar a curar a ferida cancerosa, representada pela não resolvida questão israelense-palestina. E a cura só tem um nome: o nascimento do estado da Palestina numa relação de paz e colaboração com Israel. Tenazmente o Papa Francisco exorta continuamente as nações para “ajudar israelenses e palestinos a viver em dois estados, lado a lado, em segurança”.
Por sua vez, o Cardeal Pizzaballa, Patriarca dos Latinos de Jerusalém, identificou justamente como fator negativo o congelamento das relações entre as comunidades religiosas na Terra Santa:
“Tem-se a impressão de que cada um se expressa exclusivamente dentro da perspectiva da própria comunidade".
Num discurso recente, o escritor israelense David Grossman evocou a metáfora dos Acordos de Abraão, envolvendo a Palestina. Acrescentou com lucidez que não é possível nem concebível “subjugar” os palestinos. Os duzentos fanáticos supremacistas pró-Israel que há alguns dias atacaram durante a noite o acampamento dos pacíficos manifestantes pela Palestina na universidade da Califórnia, gritando “Esta é a nova Nakba” (a “catástrofe”, a limpeza étnica realizada em relação à população palestina em 1948), não representam a riqueza intelectual, o sentido de cultura e o apego à democracia do judaísmo estadunidenses como um todo.
Mas representam, juntamente com os colonos racistas que há meses sujeitam os palestinos a um pogrom na Cisjordânia – juntamente com uma parte notável da classe de governo e uma parte não indiferente do eleitorado israelense - uma massa de opinião que entende o futuro de Israel baseado unicamente no domínio.
É aqui que se impõe a escolha de hoje. O católico Mattarella, Presidente da República italiana, disse isso sem ambiguidade: “Aqueles que sofreram a torpe tentativa (com o Holocausto) de cancelar o próprio povo da terra, sabem que não pode ser negado a outro povo o direito a um Estado". Somente sobre essa base poderá ser construído um futuro reconciliado. O resto faz parte da rixa da propaganda política. Reconciliar-se significa reconhecer e compartilhar a dor, os traumas, os medos, as feridas alheias. Reconciliar-se significa reconhecer-se como irmãos e irmãs na tragédia. É o caminho escolhido pela África do Sul na época. Mas foi possível porque o trabalho de reconciliação começou no momento em que o apartheid foi abolido.
Não foi traçado nenhum roteiro para abolir o apartheid, não foram abertas “perspectivas”... Virou-se a página e ponto. O que para o pós-Gaza significa cessar-fogo, libertação de reféns israelenses e prisioneiros palestinos, eleições livres nos territórios ocupados e nascimento de um novo governo palestino que proclame o Estado da Palestina.
Não é uma questão que diz respeito apenas aos que vivem no Médio Oriente. Pela sua relevância e peso em muitos estados, a diáspora judaica também pode dar a sua contribuição. Decidirá por pressionar por uma virada? Deixará por inércia liberdade de ação a Netanyahu e aos extremistas do seu governo?
Seria um sinal importante se o judaísmo organizado italiano retomasse e relançasse o apelo assinado em março por Liliana Segre e pelo bispo Vincenzo Paglia junto com outras personalidades: “O nosso apelo é pelo fim de um massacre, que junto com milhares de corpos apaga a esperança para uma convivência possível de dois povos em dois Estados... o nosso apelo é pela defesa da civilidade”.
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Gaza, nada justifica a carnificina. Existe uma alternativa para o judaísmo e se chama reconciliação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU