05 Agosto 2024
O documento do Vaticano sobre o Bispo de Roma não resolve todas as tensões ecumênicas. No entanto, se perfilam ao horizonte perspectivas para uma maneira de entender o ministério pontifício que também pode ser compartilhada pelas igrejas evangélicas.
O artigo é de Heinrich Bedford-Strohm, publicado por Herder.de, 01-08-2024.
Heinrich Bedford-Strohm, nascido em 1960, é presidente do Conselho Mundial das Igrejas desde 2022. Foi presidente do Conselho da Igreja Evangélica na Alemanha (EKD) de 2014 a 2021. De 2011 a 2023, foi bispo da Igreja Evangélica Luterana na Baviera. Anteriormente, foi professor de teologia sistemática e questões teológicas contemporâneas na Universidade de Bamberg.
"O Bispo de Roma", título do novo documento vaticano sobre o ministério pontifício é, por si só, um programa. O documento respira o espírito de escuta ecumênica, que é decisivo para maiores progressos no caminho para a unidade das Igrejas. Não funcionará sem um "esvaziamento" de ampla visão. Se as forças conservadoras de todas as Igrejas temem que nos passos ecumênicos corajosos em direção ao outro, haja uma autorrenúncia à sua própria identidade confessional, então se pode lembrar, na verdade se deve, que Jesus Cristo, de quem os cristãos tomam o nome, representa como ser humano o mais alto esvaziamento de si concebível. Nele, Deus se faz homem e mergulha nos conflitos deste mundo. Por amor.
O documento de estudo publicado em meados de junho pelo Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos não se intitula "O Vigário de Cristo" ou "O Primado do Papa", mas simplesmente "O Bispo de Roma". Interpreto isso como a expressão de uma séria tentativa de responder com espírito de amor aos muitos testemunhos dos diálogos ecumênicos que trataram do ministério pontifício e, portanto, assim responderam ao pedido do Papa João Paulo II de entrar em diálogo sobre o exercício do ministério petrino descrito na encíclica Ut unum sint (1995).
O fato de o pontificado do Papa Francisco abrir novas perspectivas para um exercício sinodal do primado é explicitamente mencionado na seção introdutória como uma oportunidade para "colher os frutos" de todos os desenvolvimentos e reflexões ecumênicas sobre o Bispo de Roma, sobre o primado e sobre a sinodalidade e, assim, eventualmente, contribuir para um interesse renovado pela unidade dos cristãos (n. 8). Uma infalibilidade contextualizada
É digno de nota que a ideia de esvaziamento (kenosis) seja mencionada de forma bastante explícita e enfática como uma característica central do ministério papal. O seu parágrafo 42 afirma o seguinte sobre o ministério papal: "Sua autoridade é (...) inseparável do mistério da cruz e da kenosis de Cristo". Como afirma o grupo de Santo Irineu (grupo de diálogo ortodoxo-católico), a autoridade na Igreja "deve ser entendida como um serviço ao povo de Deus, baseado no poder da cruz", porque "qualquer uso do poder na Igreja só faz sentido se for exercido de acordo com o modelo de Cristo crucificado, como um serviço e não como um meio de dominar os outros" (cf. Mc 10,42-45; Jo 13,1-17), um serviço que inclui "o dever de prestar contas à comunidade nos diferentes níveis". Nesse sentido, o exercício da autoridade deve ser modelado no exemplo kenótico de Cristo "como um serviço que inclui a disposição de negar a si mesmo" ('kenosis', cf. Fp 2,5-11; Mt 23,8-12).
O que está escrito aqui sobre o significado e a tarefa do ministério papal não corresponde ao que é associado ao ministério papal no protestantismo, diversas vezes alimentado por algumas interpretações católicas. Como o dogma da infalibilidade do Concílio Vaticano I e a primazia da jurisdição a ele estreitamente associada, que retratam a imagem do papa como um monarca dotado de poder absoluto.
Será de grande ajuda para o debate ecumênico sobre o ministério papal se no documento o dogma da infalibilidade vier agora a ser claramente colocado no seu contexto histórico.
Revogar um dogma retrospectivamente seria contrário à autocompreensão da Igreja romano-católica. Mais forte ainda é o esforço hermenêutico empreendido no documento para superar os obstáculos que o dogma da infalibilidade ergueu para uma abordagem apreciável do ministério papal pelas outras igrejas. O dogma é entendido como uma reação a certas constelações históricas e é varrido pelo vento fresco do Concílio Vaticano II.
É explicitamente reconhecido que as definições dogmáticas do Concílio Vaticano I representam um obstáculo considerável para os outros cristãos. Alguns diálogos ecumênicos fizeram progressos promissores ao empreender uma leitura diferente ou recepção diferente da desse Concílio, o que abre novos caminhos para uma compreensão mais precisa de seu ensinamento (nº 167).
O documento faz referência explícita aos diálogos teológicos que explicaram a necessidade de integrar o ensinamento do Vaticano I sobre a jurisdição em uma eclesiologia de comunhão. No nº 68, por exemplo, cita o estudo publicado pela Conferência Episcopal Alemã e pela Igreja Evangélica Luterana Unida da Alemanha (VELKD) em 2000, intitulado Communio Sanctorum: a Igreja como comunhão de santos: "Para uma compreensão luterana, o princípio de uma 'primazia de jurisdição' é inaceitável, a menos que sua forma esteja constitutivamente incorporada na estrutura da communio da Igreja" (nº 148).
Para responder a essas questões críticas, o documento, por meio de inúmeras citações de vários diálogos ecumênicos, explora os pontos de conexão para uma interpretação consensual do ministério papal. A abordagem hermenêutica subjacente a tais pontos de conexão em relação ao Concílio Vaticano I enfatiza a importância de não interpretar as afirmações dogmáticas do Concílio isoladamente, mas à luz do Evangelho, de toda a tradição e do contexto histórico (nº 13).
A Communio Sanctorum luterano-católica alemã é citada novamente: "Um ministério eclesial universal para a unidade e a verdade da Igreja corresponde à natureza e à missão da Igreja, que é constituída em nível local, regional e universal. Tal ministério é, portanto, fundamentalmente apropriado. Representa a totalidade do cristianismo e tem uma missão pastoral para todas as Igrejas particulares" (nº 81).
E é aduzido um argumento pragmático extraído das reflexões do Groupe des Dombes ecumênico: "Cada colégio deve ser guiado para tomar uma decisão doutrinária, para elaborar um problema particular e para expressar sua unanimidade. Essa realidade profundamente humana é atestada no Novo Testamento com o papel de presidência assumido pelos apóstolos, especialmente Pedro, independentemente do que as igrejas possam ter deduzido. A autoridade da presidência pessoal geralmente representa, assume e recapitula a autoridade da congregação e do colégio de ministros" (nº 71).
Nessa linha, o documento defende uma distinção mais clara dos papéis com relação ao ministério do Bispo de Roma. Afirma que este atua simultaneamente como bispo de uma diocese local, como Primaz da Igreja ocidental ou latina e como ministro da unidade em nível universal. Explica que em alguns diálogos ecumênicos é solicitada uma distinção mais clara entre as diferentes tarefas, em particular entre o ministério patriarcal na Igreja do Ocidente e o ministério primordial da unidade na comunhão das Igrejas.
As Igrejas Orientais poderiam, efetivamente, reconhecer uma primazia honorária do Bispo de Roma. Entretanto, o documento especifica que essa primazia é, em seu entendimento, uma questão de desenvolvimento histórico. Da mesma forma, os teólogos protestantes que não rejeitavam categoricamente a primazia papal se limitavam a considerar sua instituição de iure humano (por direito humano), por não estar ancorada às Sagradas Escrituras. Até mesmo Philipp Melanchthon é chamado como testemunha aqui com sua tese de que a "superioridade do papado sobre os bispos" poderia ser concedida iure humano se o papa "permitisse o Evangelho" (nº 149).
Muitos dos diálogos ecumênico-teológicos, aos quais o documento se refere explicitamente (por exemplo, no. 85 e seguintes), fundamentalmente veem um sentido no fato de que uma voz do cristianismo seja representada em nível mundial por uma pessoa específica. Isso lhe confere peso e garante que ela seja ouvida pela opinião pública mundial. E é verdade: especialmente em vista da enorme necessidade de orientação diante dos problemas do futuro da humanidade, como a justiça econômica, a superação da violência e o cuidado com a natureza, que os cristãos consideram uma criação conjunta de Deus, é necessária uma voz que atraia a atenção das mídias e, na melhor das hipóteses, também alcance o coração das pessoas.
Isso deve ser reconhecido sem inveja: somente depois da encíclica Laudato Si', do Papa Francisco, de 2015, receberam atenção mundial os esforços de décadas de muitas igrejas protestantes, anglicanas e ortodoxas e do Conselho Mundial de Igrejas, que as representam, para promover uma transformação ecológica enraizada na fé cristã. Estudos recentes mostraram como as pessoas são importantes para comunicar o Evangelho nas mídias. Entre eles, em particular, a dissertação de Florian Höhne, de 2015, sobre A personalização nas mídias como desafio para uma teologia pública da Igreja.
Nessa linha, o estudo O Bispo de Roma cita uma série de documentos do diálogo ecumênico que consideram a possibilidade de acolher o ministério de um bispo de Roma, até mesmo pela necessidade de uma comunicação em nível mundial do testemunho cristão. Entre eles, por exemplo, a voz de um diálogo católico-luterano estadunidense: "Em uma época de crescente consciência global e de comunicação direta para além de muitas divisões, o bispo de Roma dá testemunho da mensagem cristã em todo o mundo por meio da evangelização, das relações inter-religiosas e da promoção da justiça social e da integridade da criação".
Também pelo lado anglicano, é proposto "que os anglicanos possam aceitar o ofício de Bispo de Roma, embora de forma colegiada e sinodal e respeitando a legítima diversidade, mesmo antes de as nossas igrejas estarem em plena comunhão" (nº 87). "A maioria das respostas e dos documentos de diálogo" - de acordo com o documento do Vaticano - "concorda claramente que o primado deveria ser exercido em uma Igreja autenticamente conciliar/sinodal" (nº 112).
O significado disso também é explicado por uma declaração da Comissão de Fé e a Constituição do Conselho Ecumênico de Igrejas de 1982. De acordo com essa declaração, o ministério ordenado é caracterizado por três dimensões: "deve ser exercido de maneira pessoal, colegial e comunitária" (nº 117). Em referência ao diálogo católico-ortodoxo, fala-se de sinodalidade em um sentido global como a responsabilidade de todos os crentes pela fé que professam no batismo. Nisso há uma maneira de entender a sinodalidade como a participação de todo o povo de Deus, que foi recentemente descrita como um aspecto "comunitário" (n. 115). No espírito do Papa Francisco, a sinodalidade não deve ser vista nem como um contrapeso em concorrência com o primado, nem como um aspecto meramente colegial ou comunitário da Igreja, mas como uma dinâmica que por si mesma engloba as dimensões pessoal, colegial e comunitária (n. 118).
Grande parte do documento ainda precisa ser preenchida com conteúdo concreto, especialmente no que diz respeito à sinodalidade. Mas o Bispo de Roma como chefe de honra da cristandade radicado sinodalmente aparece como uma possibilidade no horizonte.
Deve-se evitar uma restrição excessiva da sinodalidade ao nível episcopal. No entanto, a admissão de pessoas não ordenadas nos processos sinodais católicos e a consideração explícita do envolvimento de todo o povo de Deus requerido nos diálogos dão esperança de que não surgirão obstáculos intransponíveis. Além disso, o documento já sugere as questões relevantes relativas à participação dos leigos, mas também à relação entre a Igreja universal e as Igrejas locais (nº 154), e reproduz algumas tentativas de resposta dos diálogos (nº 155). Não se pode esconder o fato de que a exclusão, por princípio, das mulheres do eventual primado de honra atribuído ao Bispo de Roma, que será sempre masculino no futuro previsível, continua sendo um ponto de contestação. A ordenação das mulheres tornou-se – bastante tardiamente - parte integrante da maneira como muitas igrejas, não apenas protestantes, veem a si mesmas. Nessas igrejas, não é mais objeto de discussão. Esse ponto demonstra a necessidade de mais diálogo (com os católicos). Mas a porta foi aberta.
Durante a visita de uma delegação da Federação Luterana Mundial em 20-06-2024, alguns dias após a publicação do documento de estudo, o Papa Francisco lembrou o bispo ortodoxo John Zizioulas, um pioneiro do ecumenismo. De acordo com Francisco, ele costumava dizer que sabia a data em que os cristãos se teriam unido: o Dia do Juízo! Nesse meio tempo, disse o Papa, devemos caminhar juntos, rezar juntos e fazer obras de caridade juntos para ir juntos em direção a esse dia "superecumênico" do Juízo Final. Zizioulas, acrescentou Francisco, tinha um bom senso de humor.
"O Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos anexou ao documento uma série de propostas para ações futuras. Elas incluem uma sinodalidade, 'que promova encontros regulares entre os representantes das Igrejas em nível global, às vezes chamadas de 'comunhão conciliar'". É feita uma menção explícita à preparação e à comemoração conjunta do 1700º aniversário do Primeiro Concílio Ecumênico (Niceia, 325 d.C.). Espera-se que essa ideia seja amplamente acolhida.
A comunhão vivida como uma dimensão visível do "ecumenismo do coração", que a Assembleia do Conselho Ecumênico das Igrejas de Karlsruhe colocou no centro, nos fará avançar ecumenicamente. Ela recebe um "impulso vitamínico" de um papa como Francisco, cuja atenção não se concentra nas pretensões de poder e na correção dogmática, mas na proximidade humana, na defesa dos fracos, na humildade e no amor. Ao mesmo tempo, essa comunidade não depende primariamente de indivíduos, mas está enraizada no próprio Jesus Cristo e em seu amor. Será mais forte do que o apego humano às divisões. Para mim, essa é a motivação mais profunda para ter esperança na unidade da Igreja.