27 Julho 2024
"Não sabemos o método e os tempos de discussão do Instrumentum laboris, nem por quem e como foi escrito. As considerações partem da leitura do documento, indicando o efeito que produziu naqueles que, de longe e envolvidos na Igreja como clérigos, leram o que foi escrito. Não é um estudo teológico. Nenhuma análise teológica foi oferecida, mas a doutrina atual sobre questões relativas à vida da Igreja foi exposta", escreve Vinício Albanesi, professor do Instituto Teológico Marchigiano, presidente da Comunidade de Capodarco desde 1994 e fundador da agência jornalística Redattore Sociale junto do padre Luigi Ciotti, da Coordenação Nacional das Comunidades de Acolhida - CNCA, da Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 27-07-2024.
Lendo o texto do Instrumentum laboris para a segunda sessão do Sínodo, publicado em 09-07-2024, ficamos impressionados com o estilo, o conteúdo, a linguagem que este texto utilizou, apesar ou, talvez por causa disso, elaborado por muitas reuniões preparatórias (5 grupos formados pela Secretaria do Sínodo, mais um grupo de especialistas que leem os materiais vindos de todo o mundo e os frutos do encontro internacional “Os Párocos no Mundo”).
O propósito do Instrumentum laboris é anunciado nas entrelinhas en passant: “explorar o fundamento teológico de alguns conteúdos”. Daí a explicação da linguagem vagamente teológica, nem mesmo bíblica, longe de qualquer inspiração profética, quase como que para oferecer uma lição correta e pacífica sobre o compromisso com a sinodalidade e a missão que envolve a Igreja universal.
Daí o esquema adotado. Após uma parte inicial sobre os fundamentos da compreensão da sinodalidade, seguem-se três capítulos específicos: a perspectiva das relações, a perspectiva dos caminhos e a perspectiva dos lugares.
A parte introdutória está dividida em capítulos, assinalados por números (de 1 a 21) que podem ser descritos como resumos de um manual: a partir do batismo, constituindo um povo, estendido a todo o mundo, com Cristo, luz do povo (n. 1-4).
Para o significado de sinodalidade, relata-se a definição retirada da primeira sessão do Sínodo: "a sinodalidade é o caminho dos cristãos juntos com Cristo e rumo ao Reino, em união com toda a humanidade; orientada para a missão, envolve a reunião em assembleia nos diferentes níveis da vida eclesial, a escuta mútua, o diálogo, o discernimento comunitário, a criação de consensos como expressão da presença de Cristo vivo no Espírito e a tomada de decisão de forma corresponsabilidade diferenciada” (Número 5).
Com o devido respeito, muitas das considerações apresentadas ao Sínodo são necessárias para qualquer gestão de grupos, congregações, comunidades, empresas e sociedades anônimas: a invocação do Espírito, citada 68 vezes no documento, suscita a dúvida que apela para além do humano, para não enfrentar os limites humanos da vida grupal e da liderança na Igreja. O Espírito tem uma dignidade que não pode ser explorada apenas pela invocação.
Novamente na introdução, as diferenças são abordadas como harmonia, invocando a participação. Sugere-se a atualização da capacidade de anúncio, a renovação da vida litúrgica e sacramental e, por fim, explicita-se a tristeza de quem não participa (n. 10-12).
Também aqui as referências permanecem doutrinárias.
No capítulo sobre a questão da mulher na Igreja (n. 13-18), as referências teológicas sugeridas são o batismo, o ser povo, os dons do Espírito, princípios que indicam maior participação e corresponsabilidade, com atenção às mulheres na vida da Igreja (n. 16), assim como para os homens (n. 18).
No diaconato feminino está claramente escrito que o tema não será tratado pelo Sínodo (n. 17).
No fim da introdução, faz-se um apelo à conversão. A referência aos problemas sociais é recordada no n. 20:
"Numa época marcada por desigualdades cada vez mais acentuadas, por uma desilusão crescente com os modelos tradicionais de governo, pelo desencanto com o funcionamento da democracia e pelo predomínio do modelo de mercado nas relações inter-humanas, pela tentação de resolver os conflitos pela força e não com o diálogo, a sinodalidade poderá oferecer inspiração para o futuro das nossas sociedades. Seu atrativo vem do fato de não ser uma estratégia de gestão, mas uma prática a ser vivida e celebrada com gratidão. O modo sinodal de viver as relações é um testemunho social que responde à profunda necessidade humana de ser acolhido e de se sentir reconhecido numa comunidade concreta. É um desafio ao crescente isolamento das pessoas e ao individualismo cultural, que a Igreja muitas vezes absorveu, e nos chama ao cuidado mútuo, à interdependência e à corresponsabilidade pelo bem comum”.
A descrição das tragédias humanas é sugerida com distanciamento, de forma livresca, por aqueles que não viveram nem se preocupam com as misérias humanas. Uma invocação à conversão livre de análises e compromissos.
Após a introdução, começa a 1ª parte do Instrumentum dedicada às relações com o Senhor, entre homens e mulheres, na família, na comunidade, entre grupos sociais.
O começo é a referência à iniciação cristã (n. 22) e depois passa à dimensão comunitária. Ele apela à Trindade para ilustrar os relacionamentos fundamentais na Igreja. Foi escolhida a escola teológica das relações da Trindade, que explica o mistério trinitário nas relações do Pai e do Filho com o Espírito.
Talvez, no contexto de hoje, fosse mais útil apelar à economia da salvação com as reflexões de K. Rahner que colocam a vinda e a morte do Senhor no centro do mistério trinitário. O apelo à Eucaristia é mais necessário do que invocado, como consequência natural da iniciação batismal (nº 26).
Para os carismas e ministérios, o Espírito ainda é invocado, esquecendo-se dos acontecimentos da Igreja, que teve muita dificuldade em reconhecer os carismas. Os ministérios batismais são listados, sublinhando que são diferentes daqueles ligados ao sacramento da ordem. Os ministérios dos leitores e acólitos são mencionados (n. 30).
Um aceno ao encorajamento positivo para garantir que a Igreja seja percebida como “casa e família” (n. 33). Menciona-se uma “porta aberta” oferecida pela Igreja: sem reformas pessoais e estruturais é difícil imaginar.
Se a doutrina, a liturgia, a hierarquia, as organizações participativas permanecerem iguais às do Concílio de Trento, reverterem a tendência percebida como fechamento tetragonal, o milagre não acontecerá. A liturgia do batismo não pode reservar aos pais o desejo exclusivo de batizar o filho; o casamento cristão não pode utilizar a fórmula do consentimento contratual de origem romana; a homilia não é a única oportunidade para interpretar as leituras bíblicas.
O texto continua com os problemas ligados aos ministérios ordenados (n. 35-41). O apelo é refletir sobre as relações, estruturas e processos presentes na Igreja. A articulação entre episcopado, presbiterado e diaconato é imediatamente esclarecida (n. 37), para depois passar às funções do bispo, chefe da Igreja local (n. 38), dos presbíteros (n. 38-39), dos diáconos (n. 40), relembrando funções e participações já estabelecidas na prática atual, sem qualquer indicação de mudança.
Indicações maiores são sugeridas na relação entre as Igrejas no mundo (nn. 42-50). Atenção à reciprocidade entre as Igrejas locais em relação às riquezas espirituais, aos trabalhadores apostólicos, às ajudas materiais (n. 43), esperando superar as disparidades nas riquezas materiais (n. 44), aos dons espirituais, litúrgicos e teológicos (n. 45), com atenção aos emigrantes populações (n. 47). Deve-se apoiar as Igrejas perseguidas (n. 48) e os contextos culturais e sociais dos diversos países (n. 50).
Na parte 2 do documento os caminhos são examinados (n. 51-79). Esta parte dá a impressão de que se trata de sociologia religiosa, com alguma menção à conversão e ao Espírito. Como premissa está escrito:
"Centra-se em quatro áreas distintas, mas profundamente interligadas na vida da Igreja sinodal missionária: a formação, especialmente na escuta (da Palavra de Deus, dos irmãos e das irmãs, e da voz do Espírito) e ao discernimento, que leva ao desenvolvimento de métodos participativos de tomada de decisão no que diz respeito aos diferentes papéis, com uma circularidade que leva à transparência, a uma contabilização das responsabilidades recebidas e a uma avaliação que relança o discernimento para a missão”.
A maior atenção é dada à formação integral e partilhada, colocando em primeiro lugar a escuta (n. 54), valorizando testemunhos capazes de expressar o seguimento de Cristo na vida concreta (n. 55). Daí uma educação para a vida que não seja apenas teórica, sem esquecer os desenvolvimentos do conhecimento, incluindo a cultura digital (n. 56); uma formação que surge da participação de todos os membros da Igreja (n. 57).
O tema do discernimento é confiado à graça da palavra de Deus. Indicamos a vida de oração, a escuta da palavra de Deus, a escuta mútua, a busca do consenso, a restituição dela (n. 63-66). Os riscos, as contradições e as dificuldades nunca foram indicados. Tudo se torna exortação, apelo ao sobrenatural. Esquecemos que toda intervenção divina está localizada na alma humana, nas culturas e, porque não, nas emoções.
Nos processos de tomada de decisão são indicados os passos: rezar, ouvir, analisar, dialogar, discernir, aconselhar (n. 67-72). Tudo isto sem abordar o esquema hierárquico que reduz todas as decisões ao bispo e ao colégio episcopal. O único foco é o apelo ao acesso à informação para poder dar a sua opinião.
Mas o Código de Direito Canónico (cân. 212 §3) já proclama o direito e o dever de expressar a sua opinião aos pastores, salvaguardando a integridade da fé e dos costumes, com atenção ao respeito pelos pastores, pelo bem comum e pela dignidade das pessoas: o problema é como fazer com que este direito reconhecido seja corrente na vida da Igreja. Com quais métodos, horários, habilidades, verificações não estão escritas em lugar nenhum.
O problema torna-se dramático quando se trata de transparência, relatórios e avaliação (n. 73-78). Se o esquema hierárquico confia ao bispo plenos poderes legislativos, executivos e judiciais, esta abordagem precisa de ser explorada teológica e canonicamente. Se for entendida a proteção da fé e do ensino, esta pode ser confiada ao bispo que garante a continuidade da membresia na Igreja, os restantes poderes são a doutrina eclesiástica. Os instrumentos existentes (Conselho Presbiteral, Conselho Pastoral Diocesano, nem sequer obrigatório, Colégio de Consultores) são mais aparência do que substância.
Se a decisão final cabe ao bispo, o resto é ouvir as decisões já tomadas. Um exemplo esclarecedor é a atribuição de funções aos presbíteros: não há indicação de qualquer participação partilhada nas decisões tomadas. Não é um assunto legalmente regulamentado. Confiamos no “caráter” mais ou menos dialogante de cada bispo. Imagine o relatório e a avaliação.
Sem o apoio de uma organização eclesial diferente, o esquema hierárquico único no mundo permanecerá intacto: na escolha de cada pastor pelo Pontífice, até às decisões pastorais, sociais e económicas de cada bispo.
O Instrumentum laboris assim concebido reduz-se a uma piedosa exortação à conversão, com a ajuda do Espírito Santo.
Na 3ª parte do Instrumentum falamos de lugares. Na introdução, com ampla margem de benevolência, está escrito: "Esta Parte III convida-nos a superar uma visão estática dos lugares, que os ordena por níveis ou graus sucessivos (freguesia, área, diocese ou eparquia, província eclesiástica, episcopal conferência ou estrutura hierárquica oriental, Igreja universal), segundo um modelo piramidal.
Na realidade não é assim: a rede de relações e de troca de dons entre as Igrejas sempre teve uma forma reticular e não linear, em cujo vínculo de unidade o Romano Pontífice é princípio e fundamento perpétuo e visível, e o a catolicidade da Igreja nunca coincidiu com um universalismo abstrato.
Além disso, no contexto de uma concepção de espaço em rápida mudança, forçar a ação da Igreja dentro de limites puramente espaciais a aprisionaria numa imobilidade fatal e numa repetitividade pastoral preocupante, incapaz de interceptar a parte mais dinâmica da população, em particular os jovens.
Os lugares devem antes ser colocados numa perspectiva de interioridade mútua, a concretizar-se também nas relações entre as Igrejas e nos seus agrupamentos dotados de uma unidade de sentido. O serviço à unidade que compete ao bispo de Roma e ao colégio dos bispos em comunhão com ele deve também medir-se face a este cenário, desenvolvendo as formas institucionais adequadas ao seu exercício.
Quem escreve distorce deliberadamente a realidade: toda inspiração precisa de indicações vinculativas. Bastaria pensar na rigidez da investigação matrimonial. De nada adianta a sugestão se não for acompanhada também de uma corajosa revisão dos locais.
Na Itália existem problemas não resolvidos tanto para as dioceses como para as paróquias. Até agora tem-se seguido o esquema “clerical”: esperar a morte do antecessor para fundir uma pequena diocese ou fundir pequenas paróquias com um único presbítero que, entre sábado e domingo, celebra até cinco missas.
O afluxo de padres estrangeiros produziu pouco mais do que celebrações dominicais. A abundância de igrejas vazias nem sequer é suportada pela oferta de donativos, rejeitada até pelos municípios. Apela-se a uma teia de relações e a uma cultura com uma ancoragem territorial mais dinâmica, indicando as razões da mudança (n. 81-87) para terminar com a certeza da teologia hierárquica vigente.
Um capítulo inteiro (n. 89-94) é dedicado à participação de todas as componentes agregativas que constituem a Igreja: paróquias, associações, conselhos, convidando a uma maior atenção na composição dos respetivos membros.
No penúltimo capítulo são ilustradas as relações entre as conferências episcopais, esperando o seu reconhecimento como sujeitos dotados de autoridade doutrinal, invocando a valorização das províncias eclesiásticas, de modo a reconhecer capacidades peculiares para áreas individuais (n. 97-99).
Insta-se a descentralização da Cúria Romana, citando documentos do Papa Francisco (n. 102). Quanto à autoridade, especifica-se "Mesmo que [a autoridade] seja a única a gozar de todas as prerrogativas para legislar, ao fazê-lo poderia e deveria agir com um método sinodal". O que e quão obrigatório seria esse método? Não é certo. Um parágrafo é dedicado ao mundo do ecumenismo que exige um estudo mais aprofundado (n. 107-108).
A conclusão é dedicada às relações entre a fé e o mundo (n. 109-112). Com grande otimismo certificamos “uma presença que transcende a alma, conduzindo o mundo ao encontro com Deus” (n. 109). O texto conclui com as palavras de Isaías: "Este é o Senhor em quem esperamos; regozijemo-nos e regozijemo-nos na sua salvação" (n. 112).
Não sabemos o método e os tempos de discussão do Instrumentum laboris, nem por quem e como foi escrito. As considerações partem da leitura do documento, indicando o efeito que produziu naqueles que, de longe e envolvidos na Igreja como clérigos, leram o que foi escrito. Não é um estudo teológico. Nenhuma análise teológica foi oferecida, mas a doutrina atual sobre questões relativas à vida da Igreja foi exposta. O Sínodo tem três questões principais a abordar:
Se estas questões não forem abordadas, repetir obsessivamente o método sinodal, invocando a conversão e a obra do Espírito, significa não ter a coragem de ler a realidade eclesial e mundana.
Que a teologia não se alinhe com as exigências da mudança no mundo, das culturas predominantes, do pensamento moderno único é um gravíssimo pecado de omissão. A fé é colocada no coração das pessoas e em seus sentimentos. Apelar genericamente à Palavra sagrada, sem examiná-la em profundidade para os dias de hoje, não adianta.
Entre a conversão e a reforma. O texto insiste muito na conversão, indicando práticas, movimentos e tempos. Não tendo ferramentas para ler o processo espiritual, referimo-nos à sociologia religiosa. Sem explicações e esclarecimentos a dupla relevância (sagrado e profano) só cria confusão.
Entre o dito e o esperado. O texto, nas diversas partes, propõe novos horizontes: muita cautela na figura do batizado; mais atento à organização da Igreja local; finalmente, explícito para a Igreja universal. Surge a dúvida fundada de que, referindo-se às intervenções do Pontífice Romano neste último capítulo, os redatores se sentiram autorizados a ser mais explícitos.
Dizer e não dizer. Por último, notamos uma dificuldade estrutural na escrita: esperar pelos resultados do trabalho dos dez grupos de estudo, criados pela Secretaria Geral do Sínodo e não estar autorizado a antecipar nada, criou um curto-circuito de 'genericidade' e, infelizmente, ineficácia.
A esperança é que o debate na Assembleia Geral traga clareza e também coragem.
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O Sínodo e seu 'Instrumentum laboris'. Artigo de Vinício Albanesi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU