05 Julho 2024
Sheinbaum concorreu às eleições presidenciais com a promessa de defender estas conquistas e apresentou-as como um referendo sobre a continuação do processo de transformação política ou o regresso ao neoliberalismo, escreve Edwin F. Ackerman, professor de Sociologia na Universidade de Siracusa, em artigo publicado por Sidecar, e republicado por Outras Palavras, 02-07-2024. A tradução é de Antonio Martins.
Claudia Sheinbaum obteve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais mexicanas em 2 de junho. Ao alcançar 60%, a magnitude da sua vitória superou a alcançada por Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO) em 2018. Seu partido, o Morena, formado há apenas uma década, garantiu uma maioria de dois terços no Congresso e só precisa de dois representantes para alcançá-la também no Senado. Os partidos rivais, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), o Partido da Ação Nacional (PAN) e o Partido da Revolução Democrática (PRD), que concorreram às eleições presidenciais mexicanas com candidatura unitária, obtiveram cerca de 27% dos votos, o que representa uma diminuição significativa diante das eleições anteriores. Três coisas são especialmente impressionantes neste contexto. Em primeiro lugar, a clareza do mandato, que constitui uma anomalia nas democracias ocidentais, cujas disputas eleitorais normalmente não produzem resultados conclusivos e caminham para situações de estagnação política. Em segundo lugar, as particularidades do eleitorado do Morena: um bloco de eleitores ancorado nas classes trabalhadoras, mas capaz de agregar determinados setores das camadas médias. Por fim, a sensação de que pode estar emergindo um novo regime político, fundado num pacto social pós-neoliberal.
O principal concorrente de Cláudia foi Xóchitl Gálvez, que liderou a coligação composta pelo PRI, o PAN e o PRD. Gálvez estrelou uma campanha errática representando os interesses de grandes empresas, salpicadas de liberalismo social discreto. Incapaz de apresentar uma agenda abertamente neoliberal, porque o termo se tornou tóxico no México, ela optou por políticas de identidade: no discurso de abertura de campanha, destacou suas raízes indígenas e origens humildes, enquanto no encerramento optou por lançar ataques ao não catolicismo de Sheinbaum. Seu programa carecia de definição e não conseguia concentrar o ataque no aspecto que é provavelmente o ponto mais fraco do governo de AMLO: os altíssimos níveis de violência associada à proibição das drogas, que prevalecem no país. O Morena herdou-os do PAN e do PRI e os combateu com determinação.
O esgotamento da direita mexicana tem sido evidente na natureza contraditória das suas mensagens eleitorais. Assim, Gálvez, forçada a defender os programas populares de transferência monetária implementados por AMLO e obrigada, por outro lado, a criticá-los como esbanjadores e clientelistas, oscilou, por exemplo, entre exigir a sua expansão e exigir a sua contração, impondo limites temporais à sua fruição e introduzindo mecanismos de controle dos recursos de seus beneficiários. Um dos seus slogans de campanha, “Os programas ficam, Morena vai”, não ressoou junto de um eleitorado que tinha visto o seu partido, o PAN, votar contra eles apenas alguns anos antes.
Gálvez, uma política de carreira que ocupou vários cargos em governos anteriores e foi eleita durante décadas, tentou, no entanto, apresentar-se como uma cidadã comum, distanciando-se publicamente dos partidos desacreditados que a propuseram como candidata e que dirigiram sua campanha. A opinocracia, como é chamada no México a classe de comentaristas e colunistas de opinião, que dominam os principais meios de comunicação e, portanto, alimentam grande parte da imprensa estrangeira, descreveu a votação como uma escolha entre a “democracia”, na mão de Gálvez, e “autoritarismo”, representado por Claudia Sheinbaum. Mas esta estratégia nasceu morta. Enquanto isso, o candidato da “terceira via”, Jorge Álvarez Máynez, do Movimento Cidadão, uma formação sem substância cujo único objetivo era recolher os votos não captados pelos dois principais candidatos, denunciou “as velhas formas” de fazer política sem especificar os novos. Acabou por obter 10% dos votos, mas o partido demonstrou que pode ser dotado de sentido estratégico suficiente para se tornar o possível substituto a longo prazo do PRI-PAN-PRD.
Uma recente pesquisa Gallup sugere que a maioria dos mexicanos está, de fato, profundamente envolvida no processo político. AMLO não apenas desfruta de um índice de aprovação de 80%, mas também há uma crescente “confiança no governo nacional”, que saltou de 29% para 61% durante o mandato do Morena, atingindo o ponto mais alto desde que o instituto incluiu a pergunta em suas pesquisas. há vinte anos. Em 2023, 73% consideravam que seu padrão de vida “estava melhorando” e 57% diziam o mesmo em relação à economia local. Antes de AMLO chegar ao poder, a “confiança na honestidade das eleições mexicanas” era de cerca de 19%; Nos últimos seis anos, aumentou para 44%. Da mesma forma, o Pew Research Center mostrou que “a satisfação dos mexicanos com a sua democracia” cresceu 42 pontos percentuais desde 2017. O número de pessoas que se identificam como apoiantes do partido Morena cresceu 10 pontos desde 2018, atingindo agora 34%, em comparação com os 8% registados tanto pelo PRI como pelo PAN. O poder organizacional do Morena tornou-se evidente em 2022, quando convocou mais de três milhões de pessoas para eleger delegados ao Congresso Nacional do partido. Numa época de insatisfação generalizada com a forma partidária e de esvaziamento da política de massas, o efeito exercido por AMLO na cultura política nacional é impressionante.
Sheinbaum, climatologista e ex-prefeita da Cidade do México, obteve uma vantagem de dois dígitos desde o início da campanha. No entanto, o âmbito do seu apoio, abrangendo múltiplas regiões e grupos demográficos, continua a ser digno de nota. O Morena venceu em 31 dos 32 estados mexicanos. Em dezessete deles obteve mais de 60% dos votos e nos estados do sul – Oaxaca, Chiapas, Tabasco, Guerrero e Quintana Roo a sua percentagem ultrapassou os 70%. Venceu entre homens e mulheres, bem como em todas as faixas etárias e em quase todos os níveis de escolaridade e de rendimento. Também teve uma votação forte em círculos eleitorais tradicionalmente menos inclinados a conceder-lhe o voto e continuou a ganhar terreno a nível local pelo sexto ano consecutivo, vencendo ou mantendo vários governos, incluindo o da Cidade do México, alcançado por Clara Brugada Molina. E espera-se que obtenha os votos adicionais necessários para aprovar as reformas constitucionais que propõe.
Uma análise mais detalhada dos dados eleitorais revela alguns padrões interessantes. A Bloomberg-El Financiero relata que 74% dos eleitores com educação primária e 71% na faixa de renda mais baixa apoiaram Sheinbaum, em comparação com 48% com formação universitária e 49% por cento na faixa de rendimento mais elevado. A Parametrica, empresa de pesquisa estratégica e análise de opinião e mercado, mostra uma diferença semelhante de 20 pontos entre os grupos de renda mais baixa e mais alta, concluindo que enquanto 65% dos eleitores com ensino fundamental apoiaram o Morena, assim como 49% com diploma universitário, apenas 17% daqueles com mestrado ou doutorado o fizeram. As sondagens de boca de urna indicam que o maior apoio de Sheinbaum, cerca de 60%, veio dos trabalhadores do setor privado, agricultores, professores, trabalhadores independentes e donas de casa, enquanto ele teve o menor apoio de profissionais (46%) e empresários (39%). A candidata teve um melhor desempenho nos estados historicamente marginalizados do Sul, enquanto as áreas mais ricas, incluindo muitas das capitais dos estados, eram mais propensas a apoiar a direita. A popularidade do Morena, portanto, gira em torno de 60% a 70% entre as classes populares. Entre as classes altas, a popularidade é menor, embora ainda esteja em torno de 40%, o que é um número significativo.
Isto indica a emergência de uma coligação eleitoral multiclasse, ancorada nas classes trabalhadoras. Surpreendentemente, o Morena não tentou conquistar a classe média movendo-se para a direita. O atual governo aprovou uma série de reformas a favor dos trabalhadores e intensificou os seus esforços para relegitimar o Estado como ator social, incluindo a implementação de um pacote significativo de despesas em infraestruturas e a reestruturação da produção de energia a favor do setor público. Os salários reais aumentaram cerca de 30% durante o mandato de AMLO. Dados da Comissão Nacional do Salário Mínimo indicam que a participação do trabalho no rendimento nacional cresceu 8 pontos percentuais após um longo período de estagnação. Os 10% por cento que ganham menos aumentaram o seu rendimento em 98,8%. O coeficiente de Gini do país diminuiu e a pobreza global foi reduzida em 5%, o que beneficiou mais de cinco milhões de pessoas, a maior diminuição em 22 anos. O desemprego é o mais baixo da região, o que inclui uma ligeira redução no trabalho informal. E tudo isto no meio de uma pandemia global e de uma inflação em alta.
Sheinbaum concorreu às eleições presidenciais com a promessa de defender estas conquistas e apresentou-as como um referendo sobre a continuação do processo de transformação política ou o regresso ao neoliberalismo. O seu programa incluiu a expansão dos programas sociais, a redução da idade de aposentadoria das mulheres de 65 para 60 anos e a concessão de diferentes tipos de ajudas sociais aos estudantes. Ao mesmo tempo, promoveu assistência de saúde pública universal. No meio de uma crise hídrica que afeta todo o país, o novo governo comprometeu-se a acabar com a privatização da água e a impor regras mais rigorosas sobre a sua utilização pelas grandes empresas. Da mesma forma, a nova presidente pretende satisfazer cada vez mais a geração de eletricidade a partir de fontes limpas como a eólica, solar, hidroelétrica e geotérmica. O apoio do Morena entre as classes médias não é um sinal de cooptação do partido – deriva da melhora geral dos padrões de vida, bem como da retórica política cautelosa de Sheinbaum.
O governo AMLO descreve o seu papel como o desenvolvimento e implementação da “quarta transformação”. Tal como aconteceu com a declaração de independência de 1810, com as reformas liberais do Estado da década de 1850 e com a Revolução Mexicana do início do século XX, a vitória de 2018 estaria destinada a marcar não apenas uma mudança de governo, mas uma mudança de regime. Quando se trata do sistema partidário, isso é verdade. A coalizão que nomeou Gálvez é formada por partidos que competiram ferozmente entre si até a presidência de AMLO. O PRI foi o herdeiro da Revolução, que governou durante a maior parte do século passado. O PAN, que remonta à década de 1930, foi a oposição histórica ao PRI à sua direita durante este período, enquanto o PRD foi formado na década de 1980 como uma divisão de esquerda do PRI. Estes três partidos continuaram a dominar a política eleitoral mexicana ao longo da era neoliberal, definindo o chamado regime de transição, que tomou forma após a primeira derrota presidencial do PRI em 2000.
Esta ordem agora está interrompida. O PRI e o PRD e, em menor medida, o PAN são assolados por crises internas. O PRI foi atingido por uma série de deserções de alto nível. O PRD – que além de ser o antigo partido de AMLO, já cooperou com o Partido Comunista Mexicano mas desde 2012 moveu-se claramente para o centro – enfrenta a irrelevância depois de ter perdido o seu registo como partido ao não conseguir obter 3% dos votos nacionais. As tensões existentes entre os partidos da oposição já tinham eclodido no início deste ano, quando o presidente do PAN denunciou publicamente que o PRI não tinha procedido à distribuição de cargos após a conquista do governo do estado de Coahuila. Agora, depois da derrota de 2 de Junho, a coligação está à beira do colapso. O sistema partidário mexicano nunca mais será o mesmo. O Morena beneficiou-se até agora dessa ruptura, mas deve evitar a autocomplacência. A menos que desenvolva mecanismos institucionais para resolver divergências internas, também poderá ser vulnerável a divisões no futuro.
As eleições foram realizadas após uma série de reveses legislativos para o governo. Grandes reformas constitucionais numa vasta gama de temas – energia, segurança pública, direito eleitoral – foram frustradas por uma oposição obstrucionista. O “Plano A” de AMLO consistia em ratificar as medidas propostas modificá-las. Quando este plano fracassou, o “Plano B” admitiu ajustes para garantir a sua aprovação. Mas um Supremo Tribunal hostil bloqueou as alterações, mesmo depois de o Congresso as ter aprovado. O “Plano C”, pelo qual terminou optando, foi aguardar as eleições e esperar obter maioria absoluta na Câmara dos Deputados e no Senado, o que permitiria ao Morena aprovar dezoito dispositivos constitucionais, incluindo as reformas do sistema judiciário, o que permitiria a eleição de juízes. É uma tentativa de transformar um dos pilares institucionais da era neoliberal. Atualmente, o Supremo Tribunal tem pouca independência de grupos de interesses privados. Os magistrados mais antigos recusaram-se a aceitar um corte salarial obrigatório constitucionalmente como parte do esforço de AMLO para construir uma burocracia mais austera. E revelou-se recentemente que Norma Piña, a presidente do Tribunal Constitucional, organizou uma reunião secreta com o chefe do PRI, por razões que permanecem obscuras. A tentativa do governo, de que estas atores prestem contas de seu poder, revelou-se extremamente controversa.
Mudanças importantes também estão ocorrendo na esfera ideológica. No final da década de 1990, o bloco neoliberal monopolizou a retórica da “democracia”. O anti-PRIismo do PAN rapidamente se transformou em antiestatismo. A sua crítica ao sistema de partido único foi também um ataque ao bem-estar social e ao setor público. A chamada “transição democrática”, inspirada nos conceitos orientadores de “sociedade civil” e “cidadania”, e a sua conceitualização da política como a procura de soluções tecnocráticas, proporcionaram a cobertura perfeita para o avanço do capital. Os comentaristas que elaboraram esta narrativa gostavam de se apresentar como apartidários, como guardiões apolíticos da democracia e como críticos de um poder estatal habituado a ser irresponsável. Contudo, depois de AMLO ter chegado ao poder, foram forçados a abandonar esta pretensão de imparcialidade e a se alinharem com a oposição. Nos últimos seis anos, estes analistas têm defendido a narrativa de que, ao desafiar o neoliberalismo e reconceitualizar a política como um processo de negociação entre interesses opostos, o presidente representa uma regressão à autocracia. Os resultados do último 2 de junho revelaram a incapacidade desses analistas de se conectarem com assuntos e realidades situadas além da câmara de eco midiática em que atuam. Pouco depois da votação, uma das principais colunistas do país, Denise Dresser, lamentou que os mexicanos “tivessem colocado de volta as correntes que nós [a classe dos especialistas] tínhamos tirado deles”.
A ordem social emergente no México, baseada no aumento dos padrões de vida e num maior bem-estar social, é o resultado do capitalismo nacional-desenvolvimentista liderado pelo Estado, concebido por AMLO. Tais avanços foram alcançados em circunstâncias econômicas adversas, ao contrário do cenário de boom global dos preços das matérias-primas que financiou as revoluções bolivarianas. No entanto, ainda existem desafios importantes pela frente. O crime organizado goza de uma posição predominante no México. O governo cedeu em grande parte às exigências dos EUA para controlar o fluxo de requerentes de asilo através da fronteira. E até agora evitou um confronto arriscado sobre a reforma tributária, que pode ser necessária nos próximos anos. No entanto, há indícios que sustentam o argumento de que estamos testemunhando a já mencionada “quarta transformação”. Todas as transformações anteriores coincidiram com a introdução de uma mudança de paradigma econômico em escala mundial: o fim do mercantilismo comercial, no caso da Independência; a expansão capitalista global, no caso da Reforma Liberal, a era do Estado de Bem Estar, após a Revolução Mexicana. A atual, com todas as suas possibilidades e limitações, ocorre no contexto da fratura do consenso neoliberal. Sheinbaum recebeu agora um mandato importante para consolidá-la.
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México de novo rebelde? Artigo de Edwin F. Ackerman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU