27 Setembro 2023
Neste mês, os Caracóis e as Juntas de Bom Governo completam 20 anos de existência, mas em vez de comemorações houve silêncio. O que fará o zapatismo frente ao recrudescimento da ofensiva contra as comunidades?
A reportagem é de Pablo Solana, publicada por Jacobin Brasil. A tradução é de Ana Paula Morel.
San Cristóbal de las Casas, sede municipal tomada pelos indígenas de Chiapas em 1º de janeiro de 1994, guarda poucos vestígios desse acontecimento determinante da história contemporânea. Atualmente voltada para receber turistas, a cidade ainda preserva da identidade zapatista alguns centros sociais e culturais que funcionam como redes de apoio; lá são vendidos produtos cooperativos e alguns cartões postais que propagandeiam a causa insurgente.
Os espaços também funcionam como locais de encontro e auto-organização urbana. É preciso sair do centro histórico para encontrar um mural ou cartaz que reivindique o Exército Zapatista de Libertação Nacional, o EZLN, esse exército bastante particular que decidiu continuar existindo com a condição de deixar de lado as suas armas. Não há muito mais que nos lembre a insurreição indígena numa cidade sustentada pelo trabalho daqueles que, há quase 30 anos, pegaram em espingardas e paus e se rebelaram.
No último dia 8 de agosto, completaram-se 20 anos da fundação dos Caracóis e das Juntas de Bom Governo. Nos próximos meses, confluem outras comemorações significativas: em 17 de novembro, completarão 40 anos que a insurgência clandestina começou a ser organizada no sudeste mexicano e, em 1º de janeiro do próximo ano, serão 30 anos do levante que criou fissuras na hegemonia do movimento neoliberal e sacudiu consciências adormecidas em todo o mundo. A cultura zapatista é muito propensa a símbolos e ao uso de datas: os Caracóis nasceram no aniversário de Emiliano Zapata; o EZLN tornou-se conhecido pela resistência à entrada no Acordo de Livre Comércio (e em sintonia com o aniversário da Revolução Cubana); quarenta e três é a soma dos Caracóis e dos municípios autônomos formados ao longo destes 20 anos e o número, explicam os zapatistas, busca reivindicar a memória dxs 43 jovens normalistas desaparecidxs em Ayotzinapa.
Porém, este ano, o aniversário de Zapata e a comemoração redonda das duas décadas dos Caracóis passaram despercebidos. Em Chiapas explicam esse silêncio com mais silêncio. Em meio a um contexto de violências contra as comunidades que se agravou nos últimos meses, ninguém arrisca dar pistas sobre as futuras decisões do zapatismo.
Um Caracol é uma comunidade auto-organizada e autogovernada. Em 1996, após a traição dos acordos de paz de San Andrés por parte do Estado Mexicano, os povos zapatistas decidiram criar a sua própria organização através das Juntas de Bom Governo, em confronto ideológico direto com o neoliberalismo e fora de qualquer interferência do Estado. Estas instâncias possibilitaram, ainda, receber solidariedade nacional e internacional e difundir a voz das comunidades além-fronteiras. Nas palavras do então Subcomandante Marcos, cada Caracol procurava ser “uma pequena parte desse mundo a que aspiramos feito de muitos mundos. Serão como portas para entrar nas comunidades e para que as comunidades saiam; como janelas para que nos vejam por dentro e para que vejamos o lado de fora; como um alto-falante para levar para longe a nossa palavra e para ouvir a de quem está longe”.
“Não sei se se comemoram 20 anos, ou se teriam comemorado”, diz, com certo mistério digno da enigmática filosofia zapatista, um membro das redes de apoio em San Cristóbal. Somente à medida que a conversa avança é que compreendemos o que ele quer dizer. Atualmente, os Caracóis estão fechados. As comunidades já não tornam pública a existência das Juntas de Bom Governo, que são aquelas instâncias deliberativas e rotativas onde quem desempenha funções o faz sem receber qualquer remuneração e, sobretudo, honrando a máxima do governo zapatista, o “mandar-obedecendo”.
Até recentemente, quem quisesse entrar em contato com as comunidades – geralmente membros das redes de apoio ao zapatismo do México ou de outros lugares do planeta – poderia vir a San Cristóbal e, após os procedimentos indicados, ser recebido em algum Caracol. Mas agora isso não é mais possível. “Há um processo de remilitarização por meio das novas quadrilhas criminosas que nos atacam”, explicam.
Diana Iztu Luna nos recebe em Sendas, um espaço cultural no centro de San Cristóbal “para aquelas pessoas que caminham em busca de justiça e que se inspiram nas lutas dos povos indígenas”. Lá, se combina a arte indígena com a comercialização de produtos cooperativos das comunidades. Diana participa de diferentes espaços organizativos que aderem à Sexta Declaração da Selva Lacandona, como a Rede de Resistência e Rebeldia e o Movimento de Mulheres em Defesa da Mãe Terra e do Território.
“A violência já não vem apenas do Estado, agora o crime organizado nos coloca um novo desafio. Antes, falávamos sobre a guerra total e o desgaste do Estado com as comunidades autônomas; agora o que estamos assistindo é uma guerra também propiciada pelos grupos poderosos, mas levada a cabo por pessoas comuns, o que nos coloca numa dinâmica onde, se antes falávamos de mau governo, agora falamos de desgoverno”, explica Diana.
A poucos quarteirões do espaço cultural Sendas fica a sede do Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de las Casas, o Frayba, fundado em 1989 pelo lendário bispo católico Dom Samuel Ruiz, amigo das comunidades indígenas antes mesmo do levante. Dali partem as Brigadas Civis de Observação que procuram, com a sua presença em territórios de conflito, prevenir e documentar ataques às comunidades. “O governo federal é cúmplice da violência”, dizem membros do Frayba, e apontam sem eufemismos para o presidente mexicano. Andrés Manuel López Obrador, AMLO, é visto na América Latina como pertencente aos governos progressistas que se propõem a construir alternativas ao mesmo neoliberalismo que os zapatistas sempre procuraram combater. No entanto, as comunidades e o governo se chocam e não há pontos de contato, muito pelo contrário. Zapatistas e defensorxs dos direitos humanos afirmam que “o presidente da República mente e incentiva a violência em Chiapas”. Acusam AMLO de difamar organizações da sociedade civil em Chiapas “em meio à violência profunda que se agravou nos últimos anos”.
A partir de 2019, diferentes grupos paramilitares atacaram as comunidades em mais de 110 ocasiões, conforme documentado por Frayba. Os ataques se estendem por todo o sudeste mexicano: as principais vítimas foram as regiões zapatistas de Moisés e Gandhi, as Juntas de Bom Governo Novo Amanhecer em Resistência e Rebeldia pela Vida e a Humanidade, o Caracol 10 Florescendo a Semente Rebelde, a área de Patria Nueva e o município oficial de Ocosingo, em Chiapas. Os ataques incluíram incêndios em escolas e armazéns de café, sequestros, tortura e ferimentos causados por armas de fogo.
A esta violência paramilitar, o Estado mexicano adicionou a criminalização das vítimas: nos últimos anos Manuel Gómez Vázquez e José Díaz, membros das bases de apoio do EZLN, foram presos, e outras quatro pessoas das comunidades em resistência têm mandados de prisão por acusações que “não têm fundamento e são uma forma de intimidação e assédio à nossa autonomia”, denunciam os zapatistas.
No relatório “Chiapas, um desastre. Entre a violência criminal e a cumplicidade do Estado”, o Frayba sistematiza suas investigações sobre as consequências da remilitarização e o impacto da contra-insurgência em Chiapas, o punitivismo e a continuidade da tortura como prática sistemática.
“No dia 21 de maio deste ano um grupo paramilitar entrou numa comunidade autônoma zapatista e entrou atirando. Feriram quase mortalmente um promotor de saúde, o camarada Jorge, um jovem de 22 anos, que recebeu uma bala que lhe atingiu as costas e perfurou o pulmão. Eles vêm para matar”, diz Diana, que acompanha as comunidades nos seus processos de resistência. “É por isso que neste momento as companheiras e companheiros zapatistas estão “voltados para dentro”; esses grupos utilizam armas exclusivas do exército, estão uniformizados. Diante disso, Andrés Manuel López Obrador finge que não vê nada, que não escuta nada. Recentemente declarou que o que estava acontecendo em Chiapas não era grave, que eram conflitos intercomunitários… Esse foi o discurso feito pelo PRI e posteriormente pela extrema direita. A guerra total e de desgaste continua, mas com este desgoverno o que está por vir é uma guerra civil”, conclui.
Membros do Conselho Nacional Indígena do México concordam: "Chiapas está à beira de uma guerra civil com paramilitares e assassinos dos vários cartéis que disputam espaço com grupos de autodefesa, com a cumplicidade ativa ou passiva dos governos de Rutilio Escandón Cadenas [atual governador de Chiapas] e Andrés Manuel López Obrador”, declararam em junho deste ano.
Acusam o governo AMLO de fechar os olhos diante da violência sofrida pelas comunidades, mas não param por aí. O zapatismo questionou desde o primeiro momento o que considera estar por trás desta cumplicidade com os ataques às suas comunidades: os megaprojetos em que se baseia o plano de governo de López Obrador, a “quarta transformação” que tem como um dos seus emblemas a construção do Trem Maya. Quando o anúncio foi feito, o subcomandante Moisés criticou duramente o presidente mexicano: “ele não falou sobre todas as desgraças que esses megaprojetos trazem para as pessoas e para a natureza”, “ele despreza os povos originários”, e alertou que os zapatistas defenderão a Mãe Terra “até à morte, se necessário”.
A 20 minutos de San Cristóbal, na Colônia Nueva Maravilla, está um dos Centros de Resistência Autônoma e Rebelião Zapatista. Ali funcionam a Universidade da Terra e o Cideci, Centro Indígena de Formação Integral. Em 2019, este complexo comunitário e educativo passou a fazer parte dos Caracóis Zapatistas: nesse ano foram 11 novas comunidades que aderiram à rede de auto-organização e autogoverno proposta pelo EZLN em 2003. Embora hoje mantenha a placa na entrada que o identifica como “Caracol 7 - Jacinto Canek”, a comunidade neste caso adotou as mesmas medidas de segurança de todas as outras: a Junta do Bom Governo já não está acessível.
Ninguém na comunidade fala sobre o tema. As respostas são respeitosas, mas evasivas. O silêncio zapatista, recurso digno e eficaz de autodefesa e demonstração de humildade, acompanha os olhares compassivos que nos dirigem quando fazemos perguntas.
O Cideci é um espaço educativo fundado em 1989. Assim como o Frayba, são projetos que nasceram antes que o EZLN ficasse conhecido através da insurreição de 1994. O criador desta iniciativa de formação integral dirigida a meninos, meninas e jovens das comunidades indígenas de Chiapas é Raymundo Sánchez Barraza, a quem todos se referem como “Dr. Raymundo” ou simplesmente “el doc”. Um homem na casa dos sessenta e tantos anos, talvez setenta, que está rodeado de uma certa aura de mistério e reverência.
Raymundo nos recebeu na sede do Cideci. O encontro correspondeu à expectativa que gera sua lenda. O local que rodeia a modesta habitação onde “el doc” recebe quem o procura é cuidadosamente decorado com plantas, flores, pinturas e murais. A espera é tingida de música clássica, que “el doc” seleciona e espalha por diversos setores do território através de um sistema de alto-falantes externo.
A sala onde nos recebe é luminosa e, entre os objetos que a decoram, destacam-se outras plantas, livros e bandeiras de movimentos indígenas ou de libertação de diversos lugares do planeta, da Colômbia ao Curdistão. Ele nos cumprimenta com gentileza, fala com voz lenta. A música clássica tem um volume que compete com sua própria voz, o que exige uma maior concentração para escutá-lo; pergunta sobre o nosso interesse na visita, demonstra estar informado sobre quem o visita e, por fim, oferece uma visita guiada por todo território onde funcionam as oficinas, salas de estudo e espaços comunitários.
Perguntamos sobre a situação de violência sofrida pelas comunidades e o futuro dos Caracóis. Ele nos responde com a gentileza e a parcimônia que mantém durante todo o encontro, embora seja conclusivo na resposta: “Não, isso não é aqui, não somos nós que devemos tomar a palavra… muito menos eu”. Sabíamos que Raymundo não dá entrevistas nem expressa as posições do zapatismo, mas, de todo modo, tínhamos que tentar.
Santiago é o jovem que nos acompanha no passeio pelo único Caracol que, embora não esteja atualmente “aberto”, pode ser visitado. Ele chegou ao Cideci aos 12 anos, formou-se em diversos ofícios, aprendeu música e hoje é um dos professores dessa disciplina. O jovem combina o espanhol fluente, com que fala conosco, com as frases da língua originária, com as quais se dirige aos demais jovens da comunidade. Também tentamos dialogar com ele sobre a situação atual dos Caracóis, mas o seu silêncio é inabalável: com algumas evasivas simples ele deixa claro que não pode falar sobre o assunto.
“Em vez de investirmos o nosso esforço na guerra, o investimos na construção de hospitais, escolas e governos autônomos”, explicam as bases zapatistas. Mas agora eles sabem que estão sendo perseguidos. Até que o EZLN e as comunidades decidam que é hora de anunciar os passos a seguir, os Caracóis e as Juntas de Bom Governo continuarão recolhidas.
No 1º de janeiro deste ano, as comunidades zapatistas se reuniram para deliberar em cada Caracol, neste momento as reuniões foram realizadas a portas fechadas. Eles divulgaram apenas uma mensagem: “Aqui seguimos, aqui estamos”. Nas comunidades do sudeste do México, continuarão existindo. Em silêncio, por enquanto. Mas seria um erro confundir recolhimento com passividade. Lembremos, neste momento, que a rebelião armada, que está prestes a comemorar o seu 30º aniversário, foi o resultado de uma longa década anterior de acumulação de forças na mais estrita clandestinidade. É se de esperar que, como então, novas rebeliões emerjam destes silêncios.
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México. O silêncio dos Caracóis e o risco de uma nova guerra em Chiapas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU