25 Junho 2024
O capuz de uma jaqueta azul puxado sobre os óculos, uma espessa barba branca. Quatro anos atrás apareceu nas redes sociais a imagem "roubada" de um Carlo Maria Viganò irreconhecível, numa manifestação ultraconservadora em Munique. Ele havia sumido de circulação há algum tempo, dizia-se que temia por sua vida como se estivesse sendo caçado por pistoleiros ou fosse um fugitivo, ninguém sabia exatamente onde ele estava e poucos, na verdade, se perguntavam. O assunto não foi notícia. A sua estrela, que aliás nunca foi particularmente luminosa, já havia esmaecido.
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada por Corriere della Sera, 21-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Núncio em Nova York até sua aposentadoria em 2016, teve seu momento de glória em 2018, enquanto Francisco fazia uma viagem muito delicada à Irlanda depois das investigações do governo sobre a pedofilia no clero. Em 26 de agosto, durante a leitura do solene “ato penitencial” do Papa, nas caixas de e-mail dos jornalistas e numa rede de sites e blogs ultraconservadores aparece um texto de onze páginas, traduzido em vários idiomas, que acusa Francisco de ter encoberto o cardeal estadunidense Theodore McCarrick, abusador de seminaristas. O “dossiê Viganò” não se sustenta, como será demonstrado, mas é apoiado por algum tempo pela galáxia tradicionalista e de extrema-direita que tem o seu próprio epicentro nos Estados Unidos.
Os meses passam e Viganò desaparece de circulação, se manifestando apenas por comunicados na internet e toma um rumo que o leva a acusar Francisco de estar “do lado do Inimigo”, ou seja, Satanás, e liderar com um “falso magistério” uma Igreja que quer ser o “braço espiritual da Nova Ordem Mundial e defensora da Religião Universal" para tornar concreto "o plano da Maçonaria e a preparação para o advento do Anticristo”. Mesmo durante a pandemia, apoiará as ideias conspiratórias no vax e a teoria do "Great Reset" propagandeadas pelo grupo de extrema-direita QAnon: a “psicopandemia” e a vacinação vistas como etapas da “ditadura da saúde” urdida pela "elite" mundial, os inevitáveis George Soros, Bill Gates e companhia. A invasão da Ucrânia é também um reflexo da "armadilha" armada pelo deep state contra Putin que “está certo” e “agiu bem”.
Até dezembro, quando o Vaticano tem uma abertura para a possibilidade de abençoar casais homossexuais, Viganò ataca “os falsos pastores, os servos de Satanás, a começar pelo usurpador que está sentado no trono de Pedro". Conta-se que ele até se fez “reconsagrar bispo" por Richard Williamson, o lefebvriano que inviabilizou a recomposição do cisma oferecida por Bento XVI porque se descobriu que era um negacionista antissemita do Holocausto e afirmava publicamente que as câmaras de gás nunca existiram, alguém que acabou sendo expulso também pelos lefebvrianos.
Não que o “grande acusador” tenha alguma vez tido um caráter fácil. Nascido em Varese há 83 anos, teria um currículo bastante respeitável: sacerdote desde 1968, núncio desde 1992 (na Nigéria), o trabalho na Secretaria de Estado, a nomeação como secretário-geral e, depois, número dois no governadorato do Vaticano. Quando Bento XVI por fim o escolheu como embaixador nos Estados Unidos em 2011, fica desapontado. O núncio escreve a Ratzinger “com profunda dor e amargura” dizendo que a sua nomeação “será vista por todos como uma punição”. No Vaticano fala-se que ele aspirava liderar o governadorato, um cargo cardinalício. Cinco anos depois ele se aposenta e o ressentimento aumenta.
Depois começam as acusações, as conspirações, um crescendo que o isola. Mesmo na oposição mais conservadora contra Bergoglio, começa-se a olhar para ele com desconfiança. Por último, Viganò fundou a associação Exsurge Domine e instalou-se na ermida de Palanzana, um mosteiro perto de Viterbo, com o objetivo de torná-lo um seminário tradicionalista denominado Collegium Traditionis para acolher “clérigos e religiosos que foram objeto dos expurgos bergoglianos”. Ele lança uma arrecadação de fundos para a sua reforma, é seu projeto mais recente, mas o projeto não deslancha. A acusação de cisma trouxe-o de volta aos holofotes quando, talvez, ele já não esperasse mais.
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Do dossiê sobre a pedofilia à propaganda no vax. Agora está cada vez mais isolado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU