14 Junho 2024
O episódio desta semana do podcast De Poa recebe o professor Rualdo Menegat, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, lançado em 1998. Em conversa com Luís Eduardo Gomes, ele fala sobre a gestão ambiental da cidade, antecedentes à tragédia que atingiu o RS em maio e o que deve ser feito a partir de agora.
A entrevista é de Luís Gomes, publicada por Sul21, 13-06-2024.
Resultado de uma parceria iniciada em 1994 entre a UFRGS — sob coordenação de Menegat –, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, o Atlas Ambiental de Porto Alegre traz um mapeamento de todo o ambiente natural e construído da Capital gaúcha, incluindo o sistema de proteção contra inundações. A obra, pioneira no mundo (disponível aqui), inspirou mais de 60 publicações similares no Brasil e no mundo. É a partir dessa experiência que o professor observou o desastre ambiental que atingiu o Rio Grande do Sul e Porto Alegre no mês de maio. E deixa claro: era possível imaginar.
“Eu imaginei isso em 2004. Em 2022, eu fiz uma conferência, na Conferência Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre, em que eu mostrei exatamente a criticidade do nosso território em termos de dois fenômenos importantes que aconteceram agora. Um, o da convergência das águas fluviais que convergem para o Delta do Jacuí, estou falando do Rio Jacuí, que recebe o Antas-Taquari, o Rio dos Sinos, o Rio Caí e o Gravataí, e que eles poderiam, no caso de uma grande chuva, convergir com muita água pro Delta do Jacuí, que, por sua vez, encontra uma bacia, o Guaíba, que está conectada com a Laguna dos Patos e o Oceano Atlântico, e que pode, devido a uma maré de tempestade em Rio Grande, não ter escoamento. Eu mostrei isso na conferência”, diz o professor.
Ele também destaca que, durante o período de elaboração do Atlas, em 1996, um dos primeiros especialistas em mudanças climáticas do mundo, o professor Vittorio Canuto, do Goddard Institute, da Nasa, em Nova York, veio a Porto Alegre para uma conferência que reuniu mais de mil pessoas.
“A gente já vinha trabalhando, com segurança, sobre informações do aquecimento global. No ano de 2004, se abateu no Rio Grande do Sul o primeiro furacão do Atlântico Sul, o furacão chamado Catarina, que aterrissou no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, na região de Torres, e sul de Santa Catarina. Quando eu medi por imagens de satélite o diâmetro do Catarina e vi que ele tinha 600 km, pensei que, se ele desviasse a sua rota — o furacão é como um peão no solo, tem uma certa ergodicidade, pode variar levemente seu caminho –, poderia ter vindo um pouco mais para o sul, 60 km, então ele teria aterrissado exatamente em Porto Alegre e na região metropolitana. Ali eu me deparei com a possibilidade de catástrofes extremas, de desastres produzidos por tempos severos em Porto Alegre”, afirma.
O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
Professor, como coordenador desse esforço de fazer um mapeamento completo da cidade do ponto de vista ambiental, como é que o senhor avalia o que aconteceu em Porto Alegre em maio?
Bom, uma tristeza imensa. Em primeiro lugar, não há como fugir da tristeza, porque grande parte do que aconteceu era, de certa maneira, previsível. E também porque nós portalegrense e a Região Metropolitana sabemos o quanto é sensível a nossa região a inundações. Quer dizer, temos como notória a inundação de 1941, mas temos também é de 1984. Temos as mais recentes também, em 2015.
O ano passado.
O ano passado. Não é novidade inundar e, não por acaso, os nossos ancestrais de 41 e dos anos que se seguiram nos legaram um impressionante sistema de proteção contra inundações e contra alagamentos. Esse sistema, então, ele se demonstrou razoável para essa inundação que aconteceu agora em 2024. Ou seja, ele não foi sobrepassado, a água ficou no nível inferior ao dos diques externos, que é de 6 metros. Então, ele teria resistido. Em geral, teria evitado que, pelo menos, de 70% a 80% da cidade fosse atingida. E não aconteceu isso. Então, isso é muito dolorido, porque muitas coisas a gente não consegue prever na natureza, mas aprendemos com os eventos que passaram e isso é fundamental para continuar com resiliência num lugar sensível como Porto Alegre. Isso sim foi muito dramático para poder, digamos, acomodar do ponto de vista técnico, nós somos técnicos.
Professor, a gente conversava antes de começar o programa que o senhor teve um alerta de que poderia acontecer algo dessa magnitude há cerca de 20 anos. Eu queria que contasse para nós quando começou a perceber que uma enchente dessa proporção poderia, de fato, acontecer em Porto Alegre, não só em modelos hipotéticos?
Isso é muito interessante porque, quando fizemos o Atlas em 1998, trouxemos para Porto Alegre um primeiro expert internacional sobre mudanças climáticas, que era o professor Vittorio Canuto, do Goddard Institute, da Nasa, em Nova York. Ele fez a primeira conferência pública sobre esse tema ali na auditório da PUC, reunimos mil pessoas em 1996 para discutir mudança do clima. O Vittorio Canuto é um especialista, publicou nada menos do que 34 papers na Nature, um cara desse nível. Então, a gente já vinha trabalhando, com segurança, sobre informações do aquecimento global. No ano de 2004, se abateu no Rio Grande do Sul o primeiro furacão do Atlântico Sul, o furacão chamado Catarina, que aterrissou no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, na região de Torres, e sul de Santa Catarina.
Quando eu medi por imagens de satélite o diâmetro do Catarina e vi que ele tinha 600 km, pensei que, se ele desviasse a sua rota — o furacão é como um peão no solo, tem uma certa ergodicidade, pode variar levemente seu caminho –, poderia ter vindo um pouco mais para o sul, 60 km, então ele teria aterrissado exatamente em Porto Alegre e na região metropolitana. Ali eu me deparei com a possibilidade de catástrofes extremas, de desastres produzidos por tempos severos em Porto Alegre.
Eu procurei então avaliar os riscos da nossa Capital, os riscos não só produzidos pelo vento, mas, como nós sabemos também, um furacão é como uma mangueira muito grossa, de 10 km a 15 km de espessura, jorrando água numa região, borrifando uma região de água. Logo ali eu vi aqui o maior problema seria um alagamento interno da cidade e também uma inundação ao seu redor. Avaliei as possibilidades de evacuação da cidade previamente à vinda de um furacão, com as previsões. Tudo isso avaliei e avaliei como era frágil a nossa infraestrutura em termos de evacuação.
Eu percebi ali que a nossa infraestrutura estava muito concentrada no Humaitá e Navegantes, onde temos a ponte, temos o entroncamento da Freeway com a BR-116 e com a 386. É um entroncamento muito delicado, concentramos demasiadamente a nossa infraestrutura. Até depois foi colocado uma segunda ponte sobre o Delta do Jacuí e também um estádio de futebol imenso. Então, isso tudo mostrou que somos muito vulneráveis. Nós construímos uma infraestrutura vulnerável em relação à sensibilidade do território, seja agora com o aquecimento global, com um furacão, ou também com grandes enchentes. Essa inundação mostrou como Porto Alegre é facilmente isolável do ponto de vista infra estrutural, nós ficamos isolados, o que dificulta abastecimento, dificulta a própria capacidade de responder à emergência que se cria.
Com a sua trajetória de estudar o tema, quando a gente vê, em maio de 2024, colunas de jornais dizendo ninguém poderia imaginar o que iria acontecer. O que passa pela sua cabeça?
Ah, me passa que há falta de informação. Eu imaginei isso em 2004. Em 2022, eu fiz uma conferência, na Conferência Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre, em que eu mostrei exatamente a criticidade do nosso território em termos de dois fenômenos importantes que aconteceram agora. Um, o da convergência das águas fluviais que convergem para o Delta do Jacuí, estou falando do Rio Jacuí, que recebe o Antas-Taquari, o Rio dos Sinos, o Rio Caí e o Gravataí, e que eles poderiam, no caso de uma grande chuva, convergir com muita água pro Delta do Jacuí, que, por sua vez, encontra uma bacia, o Guaíba, que está conectado com a Laguna dos Patos e o Oceano Atlântico, e que pode, devido a uma maré de tempestade em Rio Grande, não ter escoamento. Eu mostrei isso na conferência.
Conferência com a participação da Prefeitura?
Claro, quem fez a abertura da conferência foi o prefeito Sebastião Melo. Ele estava lá fazendo a abertura da conferência. Estavam lá os técnicos da Prefeitura todos. Também foi conversado sobre a elevação do nível do mar nos próximos 100 anos e como Porto Alegre, é um tema que a gente não realiza muito do ponto de vista cultural, está no nível do mar. O Guaíba é parte do sistema costeiro interior, que nós chamamos também de mar de dentro, em que o Guaíba é parte do sistema de lagos e lagoas. Incluindo a Lagoa do Casamento, a Laguna dos Patos e a Lagoa Mirim. É um sistema fantástico de vasos comunicantes, ele é muito crítico também porque você não faz modelos fáceis sobre isso. Tem que incluir uma série de dados, variáveis e etc. O que torna um lugar muito bonito, é um lugar fantástico do mundo esse que nós habitamos na área, porque temos essa patrimônio hidrológico.
Mas, ao mesmo tempo, muito sensível. Isso representa uma oportunidade e também um perigo. Então, nós não soubemos administrar, gerir e culturalizar esse perigo. Dizer ao portoalegrense que nós pertencemos à região costeira e, portanto, estamos no nível do mar, e que se sobe o nível do mar, como está previsto para o presente século em até 60 centímetros, alguns mais pessimistas falam em 1 metro, nós teremos problemas em Porto Alegre. Como sabemos, toda cidade demora muito para se capacitar pra esses fenômenos, então nós temos que prever agora, para nossos netos lá na frente poderem ter resolvidas essas questões básicas, pela demora que a cidade tem natural. É complexo todo o sistema de gestão para responder isso. Veja que os ancestrais lá de 1941 demoraram 40 anos para construir todo o sistema de diques, que ainda não foi concluso. Ainda tem coisas sempre para ir melhorando o sistema. Falta proteger a zona sul, tem uma parte aqui na zona norte faltando melhor definir com casa de bombas. Enfim, isso é um sistema que tem que estar sempre melhorando. Para mim, não se coloca essa ideia de que não sabíamos, que é surpreendente. Nada surpreendente, ao contrário.
Qual foi a resposta do poder público para todos esses avisos que o senhor deu ao longo das últimas décadas?
Bom, isso é uma coisa importante, porque nós podemos dividir um desastre como esse em duas partes nítidas. Uma parte é o perigo. Quando se diz que pode haver uma precipitação de 800 milímetros numa região, isso representa um perigo, não necessariamente um risco. Veja se 800 milímetros de água caírem no Oceano Atlântico, não causa riscos, exceto se tiver uma embarcação ou plataformas de petróleo ali, mas, não tendo, às vezes nem ficamos sabendo, só os meteorologistas. Agora 800 milímetros de água caem no Planalto Meridional, ali no nordeste do Rio Grande do Sul, isso representa então uma grande ameaça para toda aquela região e também para os moradores da bacia hidrográfica.
Aí então nós vamos analisar um segundo aspecto, que é o risco. O risco é calculado em termos da vulnerabilidade, ou seja, quanto uma população, uma infraestrutura, uma lavoura, equipamentos, podem ser avariados, danificados, até levar a fatalidades, diante desse perigo. Então, nós analisamos a vulnerabilidade do sistema humano frente ao perigo, e isso então resulta no cálculo do risco. O risco é calculável, o risco é um número. Esse número é dado em termos econômicos, é o tamanho da perda e o tamanho da probabilidade de ter fatalidades.
Bom, para então enfrentar o risco, nós temos a capacidade de responder. O que que é a capacidade? São infraestruturas. Por exemplo, um dique de proteção contra inundação melhora a nossa capacidade de diminuir o risco. Nós diminuímos o risco. Sem o dique nós temos um risco elevadíssimo, de 80% em caso de uma precipitação dessas de haver uma inundação terrível, com o dique o nosso risco quase fica reduzido a 10%, a 5%. Outra função importante para diminuir o risco é também a gestão ambiental. Por quê? Porque os serviços ecossistêmicos são naturalmente elementos que diminuem a velocidade das águas, como matas ripárias, banhados. Eles também diminuem o volume das águas, à medida que facilitam a infiltração. Então, políticas e programas fortes de gestão ambiental são fundamentais para diminuir o risco.
E como te parece que está a nossa cidade e também a região metropolitana quanto a isso?
Nós vamos ver que, do ponto de vista da gestão ambiental, há um apagão em Porto Alegre. Um apagão assustador. Esse apagão é muito fácil de ser visto quando nós vamos visitar as comunidades, por exemplo, dos morros de Porto Alegre. Os arroios de Porto Alegre estão atulhados de resíduos, de uma maneira tão indigna, tão indigna, porque, além da deterioração ambiental, há também a deterioração social, a produção de doenças, é um aspecto. São pessoas que estão morando ali, é como se estivessem confinadas no porão de um navio. Nós não olhamos isso, a gente só olha o Arroio Dilúvio e não se fala dos outros arroios porque estão em grande parte, aqui no Centro, todos soterrados de alguma maneira. Mas, a gestão ambiental de Porto Alegre não tem gestão dos arroios, não tem gestão correta dos resíduos, não tem gestão do ar que respiramos. Nós nem sabemos o grau da contaminação do ar, porque não há simplesmente medição.
Então, essa situação de não gestão do território leva ao caos do território. E, diante então de um evento como esse que a gente enfrentou, esse caos do território faz-se observar. Por quê? Os bueiros ficaram totalmente entupidos por quantidade de resíduos, os resíduos todos foram trazidos pela chuva para se concentrarem no meio da água, no meio da inundação. Essa água da inundação ficou completamente contaminada. Nós já vamos ter trabalhos científicos avaliando essa contaminação. As lamas que vieram junto com as águas também são contaminadas. Então, veja como que a falência da gestão ambiental, o apagão da gestão ambiental, faz agora durante uma crise uma inundação desse tipo aumentar enormemente a exposição a poluentes que vão trazer grandes problemas para a saúde da população exposta, etc, etc. Então, a gestão ambiental é o tema de casa número um para enfrentar as mudanças climáticas.
E quais são as medidas que tem que começar agora, já, do ponto de vista da gestão ambiental, que não dá para esperar o mês que vem, não dá para esperar o ano que vem. O que dá para começar agora?
Agora, já, é arroios e resíduos. Porto Alegre já foi referência internacional na gestão de resíduos. Aqui se começou, com a Marli Medeiros, na década de 80, que morava aqui na Bom Jesus, ela começou a fazer reciclagem para trazer renda para a população da comunidade dela. E com ela essa cidade aprendeu a fazer reciclagem, que em seguida se tornaram programas pioneiros da Prefeitura de Porto Alegre no início dos anos 1990. Depois só cresceu e depois Curitiba foi fazer programa de reciclagem, depois de Porto Alegre. E Porto Alegre agora começou essa reciclagem de resíduos, para onde são destinados? Por que que não temos programas de compostagem para resíduos orgânicos? Enfim, perdemos totalmente a mão nessa questão da gestão de resíduos, os arroios estão assoreados por resíduos. É por ali que tem que começar, porque essa questão trará dignidade também para as pessoas. As pessoas devem querer também melhorar o seu ambiente, elas fazem parte da gestão.
O segundo aspecto é a educação ambiental. Todo programa de gestão ambiental tem que ser participativo. Não existe a gestão ambiental de gabinete. Essa ideia de que vamos resolver aqui, contratar uma consultoria ali, terceirizar. Não se terceiriza a gestão ambiental, porque ela precisa do cidadão e da cidadã. Se cada um de nós não tem consciência da sensibilidade do lugar em que mora, nós moramos em um lugar sensível, um lugar que tem muitos riscos e um lugar que tem que estar sempre pronto em termos de facilitar o escoamento d’água, ter os sistemas funcionando, isso depende de cada um de nós. Eu acho que essa ideia de uma Prefeitura mínima, uma Prefeitura que já não faz mais nada, a Secretaria de Meio Ambiente foi incorporada junto com outra Secretaria de Urbanismo. São incompatíveis, porque uma secretaria tem um papel de criticar certas práticas urbanísticas, faz parte do procedimento técnico. Nós técnicos trabalhamos com críticas.
E hoje é uma secretaria de licenciamento.
Exatamente. Tu vê, a gestão das nossas praças e é só uma gestão de capina, poda indiscriminada. A praça ali perto da minha casa foi podada de tal maneira, com morte de pássaros. Então, não há sensibilidade ambiental ali. A educação ambiental, portanto, é fundamental. Nós tínhamos um programa de educação ambiental fantástico em Porto Alegre, que derivou do Atlas Ambiental. Logo que concluímos o Atlas Ambiental, em 1998, nós começamos um poderoso programa de educação ambiental. Lá na universidade, nós fizemos cursos para uso do Atlas em sala de aula. Nós formamos 600 professores municipais, em edições anuais, cursos anuais, para uso do Atlas em sala de aula, para ensinar as crianças de Porto Alegre o belíssimo lugar em que vivemos, como cuidar. E tu sabe que o Atlas tem ali, por exemplo, todo o sistema de proteção contra inundações.
Na época, eram dezenove casas de bomba, hoje são 23, mas todas as casas de bomba estão ali nominadas, mapeadas, localizadas. Então, é uma obra fantástica para você introduzir todo o temário que estamos discutindo aqui. Bom, esse programa foi pioneiro também, é um programa que me orgulho muito, não só por ter trabalhado com a rede municipal de ensino, mas também porque nós inovamos a maneira de fazer educação ambiental nas escolas por meio da implantação de laboratórios de inteligência do ambiente urbano.
O que que é um laboratório? O laboratório é um grupo de crianças e professores da comunidade escolar que vai construir uma espécie de um mini museu do bairro dentro da escola. É uma sala onde você vai encontrar coleções de rochas do bairro, mapas do bairro, maquete do bairro, tudo feito pelas crianças e pela comunidade escolar. Então, os pais e mães das crianças podem ir lá na escola e visitar esse mini museu e ele é explicado pelas crianças. Isso produz uma apropriação do lugar, um conhecimento fantástico, uma educação ambiental profunda, porque ela cria algo fundamental para enfrentar catástrofes, que é inteligência social do lugar. É a ideia de que cada lugar de Porto Alegre tem sua inteligência e que sabe responder a um desastre ambiental, seja uma chuva forte como a que ocorreu aqui, uma inundação, sejam chuvas mais leves. Veja que nós já tivemos torrentes aqui em Porto Alegre exatamente ali no Arroio Moinho, em que houve fatalidade, uma enxurrada muito grande nos morros. Então, nós precisamos ter inteligência social do lugar.
Esse trabalho de educação ambiental foi se enfraquecendo ao longo dos anos?
Ele não só enfraqueceu ao longo dos últimos 10 anos, como ele foi eliminado na gestão do prefeito Marchezan. Em 2018, ele eliminou. Nós tínhamos uma rede de 32 laboratórios de inteligência do ambiente urbano, um programa internacionalmente conhecido na América Latina e no mundo, porque ele é sensacional. Ele é um sistema de educação muito interessante, porque realmente faz com que a comunidade escolar se torne um centro de saberes locais. Induz a comunidade a conhecer verdadeiramente o lugar em que vive e a escola, com isso, se abre para a sua comunidade, ela passa a ser um equipamento querido da comunidade. Porque a escola passa a se interessar verdadeiramente pela cultura que está ali. E isso, em 2018, foi completamente encerrado. Uma pena muito grande, ficamos todos muito tristes, porque a comunidade de professores e professoras da rede municipal é impressionante. Houve um momento em que eu tinha dúvidas se não colocaria meu filho para estudar na escola municipal, tão fantástica que era a rede municipal de Porto Alegre.
O senhor falou há pouco sobre assoreamento de arroios. A gente recebeu várias perguntas depois do que aconteceu em Porto Alegre sobre de que maneira essa falta de cuidado com os rios, com as margens, com o próprio depósito de resíduos ao longo dos nossos rios e do Guaíba contribuiu para a enchente. O senhor consegue fazer uma avaliação do que poderia ter sido feito para minimizar o impacto?
Veja que a inundação em Porto Alegre não aconteceu por sobrepassagem da água nos diques externos, ela aconteceu por entrada da água pelas comportas do sistema nas casas de bomba. O que que acontece ali? Quando a água começou a escoar de volta para Guaíba e para o Gravataí, veio consigo muitos resíduos, que foram então entupindo, foram obstaculizando os dutos, os bueiros, etc. Isso gerou então alagamento na cidade. Se você estiver lembrado, nós tivemos um pico de cheia, depois baixou um pouco, tivemos um segundo pico de cheia e um terceiro. Esse terceiro foi ocasionado pela quantidade de chuva que caiu no nosso território.
Foi naquela quinta-feira que choveu muito em Porto Alegre.
Choveu muito em Porto Alegre. E aí, então, os bueiros estavam todos lotados de resíduos, trazidos pelas águas da inundação. Se a cidade estivesse com um sistema de cuidado em relação a resíduos e seus arroios, desassoreando, limpando, a quantidade de resíduos que teria voltado com a inundação para o Guaíba e o Gravataí teria sido muito menor. Porque, no momento crítico de emergência, podem acontecer ainda elementos intercorrentes, como uma grande chuva no próprio território onde está a crise de emergência. O que foi o caso dessa chuvarada da quinta-feira. E isso levou de novo ao desespero de pessoas, de novo trouxe muitas consequências difíceis para uma população que já estava no meio de uma crise severa. Isso é uma clara demonstração do que que significa uma cidade que não fez devidamente seu tema de casa com a gestão ambiental, como isso aumenta os riscos e aumenta os impactos negativos, as dificuldades também daí de resgate e etc.
Professor, a gente falou das medidas de curto prazo, da educação ambiental, falamos agora da questão dos resíduos. E olhando mais para o futuro de uma cidade que é suscetível a grande concentração de chuvas, a furacões, a fortes ventos, como aconteceu em 2016, à elevação do nível do mar, que o senhor disse que vai acontecer nas próximas décadas. O que a gente pode fazer do ponto de vista de gestão ambiental e também de preparação para esses eventos ao longo das próximas décadas, que devem ser feitos ou então nós vamos continuar sofrendo quem sabe até eventos piores do que esse que a gente acompanhou agora em maio?
Eu acho essa questão central. E o que é central ali não são só medidas técnicas. Não temos bala de prata, não há bala de prata. Nós vimos que muitos propuseram abrir um canal ali na restinga da Laguna dos Patos com o Oceano Atlântico. Essas ideias de balas de prata são só ideias que custam muito caro e que não vão funcionar. O que funciona realmente é a cultura da coisa. Nós temos que ter uma cultura de que nós moramos num lugar sensível e de que as coisas podem acontecer. Então, essa consciência nós precisamos dela e essa consciência a gente cria com cultura, com educação e com medidas.
Medidas que vão deixar a população sempre ativa em relação a essa cultura. Ativa, por exemplo, nós em Porto Alegre devemos ter um dia ou uma semana de preparação, de treinamento, em relação a inundações e a tempos severos. O que que é treinar? Bom, são as escolas ou locais de trabalho olharem onde estão, verem quais são os seus riscos. E para isso nós temos o Atlas, temos materiais hoje incríveis para que nessa semana sempre recorrentemente sobre a nossa situação de riscos, de alertas, sobre o que fazer. Não é possível no caso de uma emergência, durante o desastre, que as populações, por exemplo, ali da zona norte, não soubessem para onde ir em caso de evacuação. Isso não existe nos sistemas de prevenção de desastre. Os sistemas de prevenção de desastres tem protocolos muito bem elaborados, com toda experiência internacional. A ONU publicou esses protocolos ainda em 2000, na gestão do Kofi Annan. Temos tudo isso, há uma ciência de desastres.
E a gente não tinha nada aqui?
Não tinha nada disso. Não tinha planos de prevenção, não tinha mapas de riscos bem definidos, não tinha a preparação da população, nós não tínhamos também uma defesa civil apropriada, capacitada para enfrentar isso. Isso não quer dizer que eles não fizeram um esforço fantástico que nós vamos agradecer a vida inteira. O socorro é quando nada deu certo. O socorro deve ser evitado com a evacuação das pessoas. A evacuação das pessoas não é socorro, é um processo que tu faz com antecedência, com calma, com consciência. Então, não há planejamento de nada. Isso é um aspecto fundamental, nós temos que criar capacidade de enfrentamento às emergências climáticas.
Veja, a emergência climática, os tempos severos, não são uma fatalidade. Eu acho que esse é o pior recado político, social, cultural, que nós podemos passar para as gerações futuras, de que não tem saída. Não tem saída porque não se capacitaram, não tem saída porque negligenciaram, não tem saída porque houve muito descaso. Não foi pouco descaso, muito descaso. A falta de manutenção do dique representa, do meu ponto de vista, a mesma coisa que trancar os coletes salva-vidas numa sala. Esse é o tamanho do descaso. E passar para as gerações futuras a ideia de que nós não temos saída na área, é esse o recado que passa o descaso. E não, nós podemos enfrentar desde que a gente reconheça a sensibilidade e nos tornemos capazes, do ponto de vista de uma inteligência social do lugar.
Então, nós temos que construir uma inteligência social do lugar, de cada lugar, de cada bairro de Porto Alegre. E essa inteligência social não é só uma consciência do que se fazer, é um plano, mas ela é também equipamentos. Você falou, por exemplo, da subida do nível do mar. Ele está subindo, daqui a 60 anos já deverá alcançar uma cota de 60 centímetros. Isso é fundamental, porque, com 60 centímetros, a água já ultrapassaria o nosso dique se fosse uma enxurrada como a que aconteceu.
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‘O pior recado para gerações futuras é que não tem saída, não tem porque houve descaso’. Entrevista com Rualdo Menegat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU