24 Mai 2024
"Estamos mais uma vez no centro de uma mudança histórica, como aquela que no passado Bonhoeffer, da sua prisão em Berlim, definiu como uma crise da linguagem religiosa, quantas palavras religiosas hoje não nos dizem nada. É necessária uma nova coragem. A mesma coragem que Bonhoeffer soube indicar. Somente levando Qohelet a sério se pode aceitar também a Sabedoria que nos fala sobre a vida após a morte", escreve Gian Mario Gillio, jornalista italiano, em artigo publicado por Riforma, 23-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como há um tempo para cada coisa, este é o tempo certo para entrar nas páginas de um curtinho, mas extraordinário, conto bíblico de apenas doze capítulos presente no Cânone Bíblico: trata-se do Qohelet (Eclesiastes).
Comecemos por nos perguntar se pode ser levada a sério a atribuição pela tradição hebraica do Qohelet ao rei Salomão.
À primeira vista nada parece mais distante da mensagem que Qohelet envia: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade." Pode mesmo esse aviso ser atribuído a um dos reis de Israel, o maior de sempre, o mais sábio, o mais afortunado no amor e extraordinariamente dotado de riquezas?
O último livro do teólogo Brunetto Salvarani nos acompanha nessa jornada. Quel che manca non si può contare. Re Salomone e il libro di Qoelet [O que falta não pode ser contado. Rei Salomão e o livro de Qohelet, em tradução livre]. Salvarani é teólogo, jornalista, autor de ensaios e professor de Missiologia e Teologia do Diálogo Ecumênico e Inter-religioso na Faculdade de Teologia da Emília Romagna de Bolonha.
Quel che manca non si può contare. Re Salomone e il libro di Qoelet (Foto: Divulgação)
Salomão (Schlomo), nunca cita a Torá. Um rei, portanto, testemunha da “Promessa” da “Aliança”, que não parece atraído pela perspectiva de uma vida após a morte: “Aqui – diz-nos Salvarani – reside a grande Sabedoria do judaísmo e de Israel, que aceita a dialética e aceita a contradição, que acerta as contas com a ausência e com as feridas e as fragilidades, que observa as fissuras de nossas vidas sabendo que existe uma fissura em cada coisa, mas que é precisamente por essa fissura que a luz pode passar. Como cantava o grande Leonard Cohen, não por acaso judeu."
Além disso - destaca Salvarani – é preciso lembrar que na assembleia de Jâmnia, por volta de 90 d.C., os rabinos tiveram muitas dúvidas se manter o Qohelet dentro do Cânone. O nome Qohelet, na realidade, é um verbo, particípio presente feminino traduzível com "aquela que fala na assembleia", uma tradução que poderia criar problemas. A pseudo-epigrafia atribui o livro ao rei Salomão, personagem de destaque na história, para obviamente oferecer maior importância ao texto. A reflexão de Qohelet entra no contexto da nossa cultura pós-moderna e é evidente uma instância sapiencial que reflete as dúvidas de uma época, como a nossa, incerta e feita de atribuladas esperanças e perplexidades. "A Bíblia - continua Salvarani– é o grande Código da fragilidade humana; é um livro com o qual somos chamados a nos confrontar, crentes, não crentes, leigos, religiosos, porque seus personagens se esforçam quanto nós nos esforçamos, se comunicam, se apaixonam, trabalham, combatem, choram exatamente como nós. A Bíblia, com Deus, é escola de humanidade, escola de fragilidade, num tempo de crise como o que estamos vivendo."
Tudo é Hebel, tudo é sopro. Tudo parece absurdo e inútil, a realidade não é como deveria ser e, portanto, “não há nada de novo sob o sol” – afirma Qohelet; a morte, além disso, esvazia tudo e por fim Deus existe, mas não responde. Até Jó teve que mudar de ideia, como deveríamos ler o Eclesiastes hoje? “Rejeitando a alternativa entre otimismo e pessimismo. Qohelet tem um olhar realista e fiel, portanto é um antídoto contra qualquer banal diáspora do sagrado que esteja na moda. A sua concretude, a sua fidelidade às realidades penúltimas, o seu apego à experiência cotidiana, a sua busca perene, convidam-nos a permanecer fiéis. Estamos mais uma vez no centro de uma mudança histórica, como aquela que no passado Bonhoeffer, da sua prisão em Berlim, definiu como uma crise da linguagem religiosa, quantas palavras religiosas hoje não nos dizem nada. É necessária nova coragem. A mesma coragem que Bonhoeffer soube indicar. Somente levando Qohelet a sério se pode aceitar também a Sabedoria que nos fala sobre a vida após a morte.
Bonhoeffer afirmava: “só quando se ama a vida e a terra de tal maneira que sem elas tudo pareceria perdido e acabado, pode-se crer na ressurreição dos mortos e em um novo mundo”.