09 Abril 2024
"Tal gesto, ainda que inserido numa comovente ficção fílmica, mas rica de um significado antropológico incomum, pode ser melhor compreendido se aprendermos a 'olhar os grandes eventos da história universal de baixo, da perspectiva dos excluídos, dos suspeitos, dos maltratados, dos impotentes, dos oprimidos e dos ridicularizados. Em uma palavra: dos sofredores', como nos indicou de forma programática o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer (1906-1945)", escreve Mario Castellana, filósofo italiano e ex-professor da Universidade de Salento e da Faculdade Teológica da Puglia, na Itália, em artigo publicado por Odysseo, 20-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existem figuras conhecidas e menos conhecidas que atravessaram os trágicos momentos do século XX e que, sozinhas, redimiram com o sacrifício de suas vidas os desfechos mais destrutivos, devolvendo a toda a raça humana que os produziu a possibilidade de acertar devidamente as conta com eles, também porque, como avisava Etty Hillesum, pode não ter servido a nada ter salvado o próprio corpo se não se deu o devido sentido aos sofrimentos padecidos ao se tornar um "coração pensante" (Etty Hillesum e Pavel Florensky: o dom de ser "corações pensantes", 26-01-2023).
Recordá-las, repercorrendo seus eventos dolorosos, é sempre uma operação necessária e também uma operação obrigatória, mesmo que tais operações deveriam ser realizadas para cada pessoa que é vítima de eventos que são em si quase inenarráveis. Não se pode fugir a esse compromisso, que pode ser de qualquer natureza, quase inesgotável e ao mesmo tempo impossível, como tentou fazer o protagonista da A harpa da Birmânia, um filme que deveria ser continuamente revisto para nos educar sobre a paz, na tentativa de enterrar com as próprias mãos os corpos dos inúmeros companheiros de armas japoneses deixados insepultos, como impunha a tradição birmanesa em relação aos corpos dos inimigos.
É preciso fazê-lo como escolheu o protagonista ao não regressar à pátria e tornar-se um monge budista com um olhar "de baixo" para os corpos devorados pelos abutres, acompanhado apenas por um som pungente da harpa para motivar a sua escolha perante os companheiros sobreviventes no caminho de retorno ao seu país.
Tal gesto, ainda que inserido numa comovente ficção fílmica, mas rica de um significado antropológico incomum, pode ser melhor compreendido se aprendermos a "olhar os grandes eventos da história universal de baixo, da perspectiva dos excluídos, dos suspeitos, dos maltratados, dos impotentes, dos oprimidos e dos ridicularizados. Em uma palavra: dos sofredores”, como nos indicou de forma programática o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Uma escolha de fé bem evidenciada numa particular reconstrução do seu percurso de vida por Roberto Fiorini em Dietrich Bonhoeffer. Testimone contro il nazismo (prefácio de Paolo Ricca, Gabrielli, Verona 2020).
Livro de Roberto Fiorini, intitulado Dietrich Bonhoeffer: Testimone contro il nazismo (Gabrielli Editore, 160 páginas). (Foto: Capa/Divulgação)
Fiorini nos oferece um percurso onde a palavra é dada diretamente ao teólogo e pastor através da escolha estratégica de colocar frases nos títulos dos capítulos, seguidas de amplas citações, retiradas dos vários escritos para entender sobretudo as modalidades do processo existencial que levou à aquisição daquela "certeza" que se revelou decisiva para "sustentar até ao fim um caso–limite tão extremo", ou seja, chegar a opor-se ao regime nazista com firme convicção até ser barbaramente trucidado poucos dias antes da queda definitiva.
O volume de Fiorini, como assinala Paolo Ricca no prefácio, "é lido numa sentada", pois deixa Bonhoeffer falar diretamente, "mais sujeito do que objeto", escolha que permite participar diretamente de sua vivência, entrar nos momentos mais cruciais das difíceis escolhas feitas ao dar a total certeza de que ele "não fala do passado, mas do futuro" por ter lançado "o seu olhar de baixo", contando-nos "algo mais sobre a difícil e arriscada tarefa de ser homens e ser cristãos hoje".
“Lê-se numa sentada”, portanto, essa revisitação de Bonhoeffer por Roberto Fiorini que, como padre operário, se empenhou na revista Pretioperai desde 1987 e autor de Figlio del Concilio. Una vita con i preti operai de 2015 e com outros Servizio e potere nella Chiesa de 2013, fez isso para "viver", pois "estar em contato com ele" permite "aproximar pensamento e vida, teologia e ação, obediência e responsabilidade".
“Bonhoeffer não está às nossas costas, mas ainda à nossa frente” – escreveu o amigo do teólogo alemão Eberhard Bethge – tanto pela situação atual das Igrejas cristãs como pelo fato de que “hoje em diversas partes da Europa, retornam símbolos, mensagens e organizações políticas" que remetem aos tempos tomados pelo vórtice de "hipnoses coletivas" (Come far fronte alle nuove forme di ipnosi collettive, 6 de julho de 2023) e que estão minando com instrumentos cada vez mais sofisticados as democracias, que por sua natureza e fragilidade estrutural precisam de vigilância contínua.
O esforço de Fiorini é nos conduzir ao mundo de Bonhoeffer que, por ter sido atravessado pela "inteligência da fé" e por ter sido posta em prática nos momentos mais trágicos do início do século XX, é considerado capaz de nos dar "um instrumento útil para alargar a nossa consciência e responsabilidade”, graças ao fato de “ter enfrentado ‘a hora da tentação’” com determinação, até ser um “teólogo que desafiou Hitler”, como escreveu E. Metaxas numa biografia de 2012.
Essa escolha é considerada fruto de ter sido um "homem para os outros" desde o início de seu percurso pastoral, com várias experiências nos EUA junto à comunidade afro-americana do Harlem, de modo a fazer o seu amigo Bethge dizer que naqueles anos teve início aquele processo de conversão "de teólogo a cristão".
Assim, no final de 1931, tornou-se pastor num bairro de Berlim, engajando-se no movimento ecumênico com uma breve experiência primeiro em Londres, logo após a ascensão de Hitler ao poder, e novamente em 1939 nos EUA, de onde – embora podendo permanecer como professor de teologia – ele voltou imediatamente na véspera da guerra porque não podia ficar longe de sua terra natal, também porque percebia cada vez mais que os próprios "alemães são hoje um povo sofredor" pelo que era necessário fazer algo atuando o que ele chamou “o caso limite, dado pela necessidade de violar a lei vigente".
Fiorini, por meio de uma imersão meticulosa nos múltiplos escritos tanto mais de natureza teológica como Sequela, Etica e La vita comune que no rico epistolário e nos artigos sobre A Igreja diante da questão judaica, leva-nos às razões desse "caso-limite" com a inevitável chegada à "resistência ativa" e com a entrada no Abewhr onde estavam presentes aqueles que atentaram contra a vida de Hitler, depois de ter lutado para recusar a introdução do "parágrafo ariano" da legislação nazista na ação da Igreja.
Analisa-se a consequente luta dentro da Igreja confessante que Bonhoeffer obrigou a se posicionar ao deixar claro que diante de um bêbado que dirige feito um louco "a tarefa de um pastor" não deve se limitar a enterrar as vítimas e "consolar os parentes“, mas precisa “arrebatar o volante ao bêbado”, como disse a um companheiro de cela que lhe perguntava “como justificava a sua resistência ativa como cristão e teólogo”.
Assim, é-nos oferecido um quadro articulado das motivações profundamente enraizadas que levaram Bonhoeffer a acreditar que naquele momento histórico particular, como para muitos outros que se viram fazendo escolhas semelhantes em diferentes contextos com base em suas próprias convicções morais e ideológicas, não poderia haver uma cisão entre o empenho pastoral e a resistência concreta ao nazismo.
Essa escolha, ou "caso-limite", colocou-o em condições de se tornar durante o período em que esteve preso, como se depreende das cartas à noiva e a outros amigos presentes em Resistência e submissão, um "cristão sem Igreja" que quer "aprender a crer" como fruto da necessidade de ser "homens genuínos e simples", sem ambiguidades, para superar o estado de ter "sido testemunhas silenciosas de más ações" ao ponto de se questionar se como cristãos "ainda podemos ser úteis".
Roberto Fiorini relata em seguida as reflexões fundamentais do teólogo luterano sobre a estupidez que devemos assumir como nossas; enquanto em relação ao mal, se bem identificado, podemo-nos opor a ele, contra ela, ao contrário, "não temos defesas". Não "defeito congênito", mas que se apresenta em "determinadas circunstâncias [quando] os homens são tornados estúpidos, ou seja, se deixam tornar estúpidos"; ela se instala quando os homens perdem sua "independência interior" e cedem à "impressão avassaladora produzida pela ostentação de poder" de alguém como o "sedutor" Hitler.
A estupidez não pode ser "vencida transmitido ensinamentos, mas só por um ato de libertação". Mas esse resultado do percurso é interpretado, na esteira de Carl Friedrich von Weizsäcker, como uma "viagem rumo à realidade" e o reconhecimento da "polifonia da vida" para as diversas situações em que nos encontra imersos e como plena adesão e “ fidelidade à terra”, por meio de um comentário intenso e compartilhado de Fiorini sobre uma carta da prisão ao amigo Bethge, que lhe pedia ajuda de natureza espiritual para a situação que vivia como soldado na Itália.
Assiste-se assim quase ao vivo à forma de Bonhoeffer se sentir "perseguido" pela "imagem da polifonia" de estar na prisão, mas de querer estar ao lado dos seus amigos mais caros, de como "a dor e a alegria pertencem à polifonia de uma vida … e podem existir autonomamente lado a lado”.
Nesses momentos, para o teólogo luterano, ser cristão diante de um mundo "estilhaçado" torna-se uma forma de se colocar "continuamente em muitas dimensões da vida" e nos evita "um risco maior [que, segundo Fiorini] é o da redução do pensamento e da existência humana a uma única dimensão”, constituída por “uma perfeita atualidade no nosso contexto atual”.
Como desfecho, esse percurso teológico e existencial não poderia deixar de chegar por outras vias, mas marcado pelo sofrimento de baixo, e quase ante litteram, a um percurso acompanhado de complexidade com o pulular nas dobras da vida.
O "caso-limite" de Bonhoeffer vivido intensamente revela-se um processo de libertação a ser realizado em vários níveis, partindo do pensamento e fortalecendo-o para manter os homens o mais longe possível da estupidez que mais cedo ou mais tarde se torna bem precioso para os sedutores de plantão; e leva-o a afirmar peremptoriamente e com uma lucidez racional invulgar, lucidez que acabou faltando a outra figura mais conhecida do panorama cultural alemão dos mesmos anos, quase como um aviso para o futuro e para nós, crentes e não crentes, que “é preciso arrancar as pessoas do pensamento unilinear... Que libertação é poder pensar e manter a multidimensionalidade no pensamento... A vida não é reduzida a uma única dimensão, mas permanece multidimensional e polifônica”.
O constante convite para si mesmos de Bonhoeffer de querer “aprender a crer”, aliado à escolha de ver as coisas do mundo “de baixo”, foi a pedra angular de um percurso que ainda nos pode dizer muito. Graças a Roberto Fiorini, podemos nos aproximar dessa figura apreendendo-a de uma só vez em toda a sua profundidade humana. Também porque nela podemos encontrar mutatis mutandis aquelas indicações expressas por Romano Guardini e que amadureceram quase no mesmo tempo e contexto: “Os problemas não podem ser postos de lado; quem os percebe deve dedicar-se a eles, sobretudo se for responsável no plano intelectual e espiritual. A práxis autêntica, ou seja, a ação correta, deriva da verdade, e por ela se deve lutar”.
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O “caso-limite” de Dietrich Bonhoeffer. Artigo de Mario Castellana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU