19 Junho 2023
"Com a agressão russa na Ucrânia, voltou à moda um tema muito distante da mentalidade cada vez mais secularizados e alheia à história: a presença e o uso de ícones como ajuda durante os conflitos", escreve Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, em artigo publicado por Domani, 18-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com a agressão russa na Ucrânia, voltou à moda um tema muito distante da mentalidade cada vez mais secularizada e alheia à história: a presença e o uso de ícones como ajuda durante os conflitos. De fato, também os ícones vão para a guerra. Incluindo os mais famosos, como a Trindade de Rublëv e aquele conhecido no Ocidente como Nossa Senhora da Ternura, famosíssima e reproduzida inúmeras vezes.
Mesmo que por décadas essas antigas imagens tipicamente orientais tenham se afirmado e sejam cada mais difundidas no Ocidente para preencher um vazio deixado pela crise da arte sacra, hoje o motivo profundo de seu sutil fascínio – enraizado em intrincados eventos históricos e teológicos – em boa parte escapa e permanece enigmático. É por isso que os ícones da guerra surpreendem.
Mas essas pinturas não são consideradas simples imagens. A legitimidade da representação de Deus e das suas criaturas, rejeitada e contestadas nos primeiros séculos também no âmbito cristão, é definitivamente afirmada em 787. Contra os iconoclastas, que no Império Bizantino consideravam idolatria venerar ícones e os destruíam, o segundo concílio de Niceia – aceito no oriente como no ocidente - em vez disso, decreta que “as imagens veneráveis e santas, tanto pintadas como em mosaico ou em qualquer outro material adequado, devem ser exibidas nas santas igrejas de Deus, nos sagradas móveis, nas paredes e nas mesas, nas casas e nas ruas”.
As representações de Cristo, ou da “santa Mãe de Deus, dos santos anjos, de todos os santos e justos” reportam-se, de fato, à “memória e desejo dos modelos originais”, porque – segundo a afirmação central do concílio – “a honra prestada à imagem pertence a quem nela está representado, e quem venera a imagem venera a realidade de quem nela está reproduzido”. Essa é a base substancial da teologia das imagens, fundada na encarnação de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Então o ícone tem grande importância na fé e na liturgia como presença misteriosa do divino. Despertando um culto que às vezes beira a superstição.
Até 1204, ano do terrível saque dos cruzados, em Constantinopla estava viva a crença de que a cidade fosse inexpugnável porque “era fundada sobre os ícones milagrosos e as relíquias, às quais se atribuía a salvação em caso de catástrofes externas e internas” observa Hans Belting no fundamental Imagem e culto agora reeditado pela Carocci. Mas justamente então muitos ícones e relíquias foram roubadas e levadas para o Ocidente como despojos de guerra. No entanto, os venezianos não conseguiram apoderar-se da imagem da Mãe de Deus “aquela que guia” (hodegétria), isto é, o menino Jesus em seus braços. Atribuída ao Evangelista Lucas, o ícone era venerado pelos imperadores porque durante séculos foi considerado a defesa da cidade, tanto que em 1261, tendo reconquistado Constantinopla dos latinos, o soberano bizantino a seguiu descalço no desfile triunfal.
Os cruzados apoderaram-se de uma sua réplica, arrancando-a da carruagem de guerra do comandante do exército grego: é a Virgem "quem traz a vitória", chamada precisamente Nicopeia e que desde então está na basílica de São Marcos em Veneza. Na capital bizantina, a gigantesca igreja de Santa Sofia – transformada em mesquita de 1453 a 1931 e agora a partir de 2020 – hospedava entre as muitas imagens um ícone da Trindade pendurado acima da relíquia da "mesa autêntica originária da floresta de carvalhos de Mambre", o lugar bíblico de uma misteriosa aparição divina. Lá, de acordo com o capítulo dezoito do Gênesis, Abraão acolheu três visitantes, que nas interpretações cristãs são a “manifestação visível das três pessoas divinas”, teofania que antecipa a fé trinitária.
Esse modelo constantinopolitano foi replicado muitas vezes: por volta de 1425 o pintou o russo Andrej Rublëv, o monge pintor protagonista do filme de Tarkovsky que o patriarcado de Moscou canonizou em 1988. E em seu ícone – declarado por um concílio o mais perfeito e, portanto, modelo de todos os ícones - os três anjos sentam-se em silêncio ao redor da mesa, cuja relíquia era conservada justamente em Santa Sophia. “Abraão desapareceu, a mesa torna-se um altar com o cálice eucarístico sobre ela” resume Alain Besançon (A imagem proibida, Marietti). “Existe a Trindade de Rublëv e, portanto, Deus existe” chegaria a afirmar Pavel Florenskij, autor do mais belo livro sobre os ícones (Le porte regali, Adelphi) que em 1918 a estudou para a restauração. Extremamente frágil, durante séculos o grande ícone esteve em Sergiev Posad, o grande centro da ortodoxia russa cerca de setenta quilômetros de Moscou, no Mosteiro da Trindade de São Sérgio. Foi transferida em 1929 para a Galeria Tretyakov, e há um mês, por ordem de Putin, foi devolvida à igreja, apesar da oposição de todos os especialistas que temem por sua conservação, objetivamente difícil pelas condições muito delicadas da obra-prima.
Exibido há algumas semanas na nova e faiscante catedral de Cristo Salvador em Moscou, o ícone, segurado por um valor enorme, amanhã mesmo deveria voltar ao museu.
Mas é lícito duvidar de sua sorte. Basta dizer que até mesmo o encarregado pelas artes da igreja russa, o arcipreste Leonid Kalinin, que havia se oposto à transferência da Galeria Tretyakov, foi imediatamente removido pelo Patriarca Kirill. Ao contrário, Mikhail Piotrovsky, há trinta anos diretor inafundável do Hermitage (como já seu pai), declarou que o significado sagrado da relíquia excede seu valor artístico e, de fato, a obra-prima de Rublëv “irá absolver a sua função simbólica de nos conduzir à vitória”.
Também foi levado à guerra várias vezes o ícone mariano mais famoso e venerado, conhecido como Nossa Senhora da Ternura, mas chamado na Rússia de Vladimirskaia, ou seja, a Mãe de Deus de Vladimir, cidade a quase duzentos quilômetros a leste de Moscou.
Enviado ao grão-príncipe de Kiev pelo patriarca de Constantinopla por volta de 1131, o ícone representa Maria abraçada de forma tocante pelo menino.
A mãe o segura e o indica como caminho de salvação enquanto seu olhar melancólico e pungente é "voltado para a distância, onde os eventos futuros lhes são revelados", escreve Belting. “Eu olho para o ícone e digo para mim mesmo: é ela mesma”, dizia Florensky. Também para esse ícone o modelo é a antiquíssima imagem da hodegétria atribuída a São Lucas e enviada em 439 de Jerusalém para Constantinopla, considerada perdida após a conquista turca, mas que em 1989 foi sensacionalmente identificada por Margherita Guarducci como a do santuário de Montevergine. De qualquer forma, a imagem bizantina que inicialmente foi para Kiev chegou em 1155 a Vladimir, onde foi construída a catedral da Dormição de Maria.
A partir daí o ícone foi levado para Moscou em 1395 para protegê-lo da invasão dos mongóis liderados por Tamerlão. Diante da imagem colocada no Kremlin, o Grande Príncipe Basílio I passou uma noite inteira em oração entre lágrimas e no dia seguinte os inimigos se retiraram. Mas segundo a tradição, mais duas vezes, em 1451 e 1480, o ícone de Maria salvou a cidade das hordas tártaras. E no final de 1941 mais uma vez foi decisiva a proteção de Vladimirskaia, que Stalin teria mandado colocar em um avião em voo para salvar Moscou da invasão do exército alemão de Hitler. Que de fato não chegou à capital e começou a recuar.
Por fim, sinal de uma outra resistência, a resistência ucraniana à guerra russa, são quatro ícones dos séculos VI e VII que desde a última quarta-feira até 6 de novembro estão expostos no Louvre juntamente com outra raríssima imagem medieval, realizada em micromosaico, que retrata São Nicolau. Transportados em segredo para Paris do museu Khanenko em Kiev, atingido por um míssil russo em outubro, as quatro pinturas mais antigas representam a Mãe de Deus com o menino, João Batista e, em duas versões, Sérgio e Baco, venerados mártires militares no Oriente.
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O conflito entre Moscou e Kiev também é travado com os ícones - Instituto Humanitas Unisinos - IHU