Ícone de guerra. Artigo de Silvano Tagliagambe

Reprodução de parte da obra de Andrei Rublev, A Trindade | Foto: Tretyakov Gallery

31 Mai 2023

Por decisão do presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, o ícone da Santíssima Trindade de Andrej Rublëv – o mais prestigiado e conhecido da tradição ortodoxa – será removido em breve da Galeria Tretyakov para ser exibido na Catedral de Moscou do Cristo Salvador e, depois, permanentemente, na Igreja da Trindade da lavra de São Sérgio. O professor Tagliagambe apresenta aqui a especificidade "sacramental" do ícone na tradição ortodoxa russa.

O artigo é de Silvano Tagliagambe, estudioso do pensamento russo na virada dos últimos dois séculos, autor do livro Dal caos al cosmo: introduzione al cosmismo russo , publicado por Settimana News, 28-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

O ícone da Santíssima Trindade de Andrej Rublëv, famoso monge-pintor, iconógrafo e miniaturista, venerado como santo pela Igreja Ortodoxa Russa, é a mais famosa representação da Trindade na história da arte. Realizado provavelmente por volta de 1422, por ocasião da canonização do fundador do Mosteiro da Trindade de São Sérgio, onde vivia Rublëv, é considerado, pela sua beleza e importância, o Ícone dos ícones.

A cena central do ícone vem do livro do Gênesis, onde Abraão acolhe três estranhos em sua tenda: “Depois apareceu-lhe o Senhor nos carvalhais de Manre. E levantou os seus olhos, e olhou, e eis três homens em pé junto a ele. E vendo-os, correu da porta da tenda ao seu encontro e inclinou-se à terra. E tomou manteiga e leite, e a vitela que tinha preparado, e pôs tudo diante deles, e ele estava em pé junto a eles debaixo da árvore; e comeram” (de Gênesis 18,1-8).

Reprodução da obra de Andrei Rublev, A Trindade | Foto: Tretyakov Gallery

O simbolismo de um ícone

O ícone Rublëv retrata essa cena com os três anjos, sentados ao redor de uma mesa. Ao fundo, a casa de Abraão e um carvalho atrás dos três hóspedes: o artista aproveitou o episódio bíblico para fazer uma representação puramente simbólica da Trindade, obedecendo às rígidas diretrizes da Igreja Ortodoxa Russa, para a qual representar a Santíssima Trindade na arte sempre foi motivo de controvérsia, pois se acreditava que as imagens usualmente propostas não rendessem de forma alguma justiça ao mistério insondável do Deus "uno e trino".

O simbolismo da imagem é complexo e resume as posições teológicas sobre a Santíssima Trindade. As três Pessoas da trindade são mostradas em forma angélica: os três anjos são idênticos, mas cada um usa uma vestimenta diferente, para representar simultaneamente a unidade substancial e a distinção. Eles têm uma auréola e sentam-se ao redor de uma mesa que se assemelha a um altar, sobre a qual repousa um cálice contendo o bezerro que Abraão preparou para seus hóspedes.

A sua posição permite inscrevê-los numa circunferência ideal – símbolo da perfeição divina – dentro da qual também é possível entrever um ideal triângulo inscrito – outro símbolo trinitário – cujos lados tocam a figura central. Os dois anjos à direita do ícone têm as cabeças ligeiramente inclinadas um para o outro, para ilustrar o fato de que o Filho e o Espírito vêm do Pai.

A representação das três figuras da Trindade através dos três anjos está em sintonia com a ideia de que o invisível, sendo inacessível aos sentidos e ao próprio pensamento, só pode ser representado de forma indireta. A imagem resultante é a expressão concreta do modo como os homens podem participar desse mistério, como escreve São Paulo na Segunda Carta aos Coríntios: "Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor" (2Cor. 3,18).

Identidade e distinção

O ícone é, portanto, um instrumento de participação e transformação, é o meio pelo qual, como diz Gregorio de Nissa, “tendo se aproximado da luz, a alma se transforma em luz” [1], o que permite ao homem tornar-se um pneumatóforo, um "portador do Espírito", um templo do Espírito, até participar da natureza de Deus.

Como escreve Pavel Florenskij, que é um expoente brilhante e original do genuíno espírito da ortodoxia, essa específica modalidade de representação conduz à constituição de um espaço que é, ao mesmo tempo, parte da realidade e distinto da realidade. Um espaço em que "imanência e transcendência, profundidade e altura, as coisas deste mundo e as coisas do outro mundo, o absoluto e o relativo, o corruptível e o incorruptível se encontram". Esse espaço “é uma janela para a nossa realidade a partir da qual vemos outros mundos. É uma brecha na existência terrena da qual irrompem correntes do outro mundo, nutrindo-a e revigorando-a. Resumindo: esse espaço é o culto”. [2]

Quando se entra nessa dimensão:

o que é invisível e misterioso é percebido pela contemplação sensível; revestido pelo empírico, se organiza segundo as linhas do invisível. Ao entrar na esfera do culto, o sensível vive e se entrelaça não mais segundo vínculos a ele imanentes, mas segundo outros, passando a fazer parte de uma outra estrutura, uma estrutura transcendente, que tem leis próprias e suas conexões particulares. A realidade sensível é progressivamente atraída para outros nexos, inusitados e inconcebíveis, para relações inesperadas e, a partir desse momento em diante, é como se sustentada por outras forças: desprendendo-se das esferas de atração terrestre, deixa de ser terrena e somente sensível.

Assim como não podemos definir simplesmente superficial e inerte aquele alimento que se torna parte do organismo e, uma vez assimilado, manifesta sensivelmente sua forma vital invisível até aquele momento, assim o que é terreno, entrando na esfera do culto, deixa de ser terreno. Embora seja, do ponto de vista material, essencialmente terreno na sua caracterização particular, dentro da visão própria do culto, na aura de mistério que o envolve, acontece e toma forma algo mais, algo sagrado, consagrado, transformado, transubstanciado: é o próprio mistério.

Mas, repito, o culto, estranho e incompreensível olhando-o de baixo, visto do alto para baixo, aparece em toda a sua integridade e unidade. É como se os elementos da realidade sensível fossem destruídos pelo redemoinho que os atingiu, dobrados por uma força incompreensível, desmembrados e recompostos para depois serem reunidos em novos signos ainda indecifráveis, nunca antes vistos, do mundo misterioso. Somente nos elevando para o alto poderemos contemplar a sua imagem na sua totalidade. Uma força transcendente encerrada neles os estruturou segundo leis que não provinham de sua essência, embora implícita; essa força é aquele fio que conecta o celestial e o terreno." [3]

O signo e o sentido

Estamos assim perante o que podemos chamar, para todos os efeitos, de uma específica “realidade aumentada” que consegue dilatar e amplificar o significado tanto dos elementos isolados de que se vale para a representação, como da sua organização geral. Trata-se de uma potencialização que a arte consegue realizar, pois “o artista preenche uma dada região do espaço com um determinado conteúdo, carrega-o à força de um conteúdo, obrigando o espaço a ceder e a conter mais do que contém normalmente sem essa violência”. [4]

Mas é sobretudo com o culto e no culto que se ele manifesta plenamente, precisamente porque o culto é aquele lugar onde “este mundo se entrega, por assim dizer, a outros mundos mais elevados, torna-se o seu representante e, em certo sentido, o seu portador; rejeitando a autoafirmação, o seu existir por si mesmo, torna-se vida para um outro mundo. Da mesma forma, esse mundo sensível ‘depois de ter perdido a sua vida’, depois de ter se tornado o instrumento de um outro mundo, com o seu corpo, o carrega em si, encarna em si o outro mundo, ou o transfigura, o espiritualiza. […]. Esse mundo, em decorrência dessa perda da autonomia e do seu carácter de autossuficiência, iluminando-se pelo fogo do outro mundo, ele próprio se torna de fogo; é como se se misturasse com o fogo”. [5]

Para adquirir e exercer plenamente esse poder de transformação e transfiguração dos elementos da experiência quotidiana e de fundamentação da capacidade transitiva do mundo visível para o mundo invisível, o culto, com os seus ritos e ofícios religiosos, mas também com referência ao ambiente em que se realiza, no entanto, deve assumir a aparência e a dimensão de uma totalidade orgânica e artística, em que cada parte assume um sentido específico e é gratificada apenas em referência ao contexto total.

Isso é precisamente o que acontece na liturgia ortodoxa, onde "Palavra (slovo) Ícone (ikona) e Música (salmos cantados, cheruvim) são realidades intimamente ligadas, no sentido de uma correspondência profunda centrada na imagem ou representação. São orientados para o alto, para o mundo espiritual, para a harmonia celestial, para o absoluto: o ícone é uma "janela para o absoluto", a palavra é “janela para o absoluto”.

Imagem e liturgia

O ícone das grandes festas completa os textos litúrgicos. Durante a liturgia cantada, o padre coloca o ícone em um púlpito. A visão e a audição estão assim unidas: o ouvido vê e o olho ouve. O ícone deve ser ouvido para que ali a palavra se manifeste. A imagem do ícone e o som da palavra são potencializados pelas notas musicais que fundamentam a sua experiência em uma total sinestesia". [6]

O ícone constitui, portanto, a modalidade da representação através da qual os corpos dos santos e suas vestes, graças à intervenção da luz de Tabor, são transfigurados, espiritualizados dando origem a um espaço intermediário entre o visível e o invisível justamente porque, em virtude da transfiguração operada, o primeiro se eleva em direção ao segundo e a dimensão do sagrado se aproxima o mais possível da realidade fenomênica.

É assim possível realizar uma convergência entre esses dois mundos que permite, como antecipado, a passagem do conceito de contemplação ao de participação ativa e de consequente transformação.

O ícone, portanto, não quer e não pode ser a representação do invisível no visível, do celeste no que é terreno, anulando o desnível e o atrito entre essas duas dimensões.

O fundo dourado, que geralmente o distingue, remete ao Absoluto, à simetria absoluta na qual todas as possibilidades são contempladas e contidas sem privilegiar nenhuma delas, sem que nela se possa encontrar qualquer princípio de ordem, e quer expressar a impossibilidade de introduzir o sagrado na paisagem assim como é percebido na nossa experiência. Sua função é tentar apreender e fazer perceber o sdvig, o deslocamento e o desnível que existe entre os dois mundos nos quais se desenrola a vida do homem, aquele terrestre do visível e o celeste do invisível.

Esse desnível coloca o homem em condições de ver a natureza com novos olhos, que enquanto tal permanece, como evidenciado, é percebida como habitada pelo infinito e pelo invisível, evocados como seu fundamento. O olhar do artista do ícone consegue apreender essa diferença, indo além do visível, para apreender o que transparece e transparece, efeito da luz tabórica, que brilha através dessa fissura e transfigura tudo o que ilumina.

A luz tabórica é uma luz de transcendência, voltada para o invisível mais que para o visível, que, ao iluminar este último, o coloca em segundo plano, o obscurece, o torna opaco, evanescente, o reduz aos mínimos termos da visibilidade e da possibilidade de reconhecimento, mesmo sem apagá-lo, para abrir o olhar para uma nova dimensão.

O desnível

Entendido nesse sentido, o ícone é, portanto, um instrumento destinado a concentrar a atenção para o sdvig, no desnível e no espaço entre céu e terra, que se torna um "espaço através", que para ser visto requer a capacidade de olhar, justamente, de um lado para o outro e assim abrir a possibilidades inesgotáveis e inéditas.

Concentre a atenção no sdvig, no desnível, na fissura, portanto, nos leva de volta às origens do pensamento simbólico, à ideia de vazio e de ausência que, porém, como vimos, não são um nada, pois se referem a uma fratura a ser recomposta, a uma fronteira que separa e distancia, mas ao mesmo tempo une por uma precisa correspondência das bordas.

Para alcançar o efeito desejado – colocar no centro da atenção e representar o nexo e a interação entre infinito e finito, entre visível e invisível, mostrando como o mundo terrestre é transfigurado pela luz divina – a arte do ícone faz uso frequente, embora não exclusivo, da perspectiva inversa, que desorienta o homem da cultura europeia moderna, cujo olhar está habituado à perspectiva linear reintroduzida na arte entre os séculos XIII e XIV. Ao renunciar à ilusão do espaço, recusando as sombras e colocando o ponto de fuga na direção do observador, o ícone dirige-se diretamente a este último, favorecendo o seu encontro com a divindade.

Em vez de procurar o efeito de profundidade e a ilusão de veracidade do espaço retratado, privilegia-se o processo de transmissão da mensagem da imagem do quadro ao crente, que fica então diretamente envolvido na representação, numa espécie de interação direta e contínua entre o objeto da percepção visual e o sujeito que a exerce.

Um exemplo particularmente esclarecedor e significativo desse uso da perspectiva inversa é esse ícone do século XV, A lamentação no túmulo:

(Foto: Reprodução | Settimana News)

Aqui, no primeiro plano do ícone, está representado o sepulcro, com o corpo de Cristo envolto em panos dentro dele. A Mãe de Deus está inclinada sobre ele, no ato de encostar seu rosto ao de seu Filho. Ao lado dela, seu discípulo amado, o apóstolo João, inclina-se sobre o corpo do Mestre. Apoiando o queixo na mão, olha com dor para o rosto de Jesus Cristo. Atrás de João, em atitude de pesar, estão representados José de Arimateia e Nicodemos.

À esquerda estão as mulheres que levaram o óleo. Essa cena cheia de dor é colocada contra o fundo feito de "colinas iconográficas" pintadas, justamente, em perspectiva inversa: essas colinas se espalham radialmente "em profundidade".

Espaço aberto

A perspectiva inversa cria aqui um efeito extraordinariamente forte: o espaço se abre em largura e profundidade, para cima e para baixo, com tamanha força que o que está acontecendo diante dos olhos do espectador adquire uma dimensão cósmica. As mãos levantadas de Maria Madalena parecem conectar o lugar onde está o sepulcro do Senhor com todo o universo.

A atenção do espectador – através do brilhante sudário de uma brancura sobrenatural – é atraída para o corpo de Cristo envolto nele. Os detalhes das partes inferiores das roupas de João e Maria Madalena são pintados de tal forma que parecem chamas escuras que se elevam contra o fundo do vermelho omophorion (manto) de Maria Madalena. Essas mãos erguidas em pose trágica levam o olhar para além delas, para o alto, onde se estende outro mundo. No entanto, as bordas das colinas iconográficas descem como raios para baixo, em direção ao sepulcro, e fazem o olhar voltar mais uma vez ao corpo de Cristo, o centro do universo.

A perspectiva inversa, justamente por situar o ponto de fuga para frente, fora da representação, em direção ao espectador, tem o extraordinário efeito de criar um espaço intermediário entre a imagem e o espectador. A presença dessa autêntica interface entre o ícone e o espectador produz um envolvimento total do observador na cena representada. Assim, a linha divisória tradicional entre observador e observado é corroída e o espectador se sente totalmente participante do cenário proposto pelo monge artista.

Nessa modalidade de representação entre o infinito e o finito, entre o invisível e o visível, entre o sagrado e o profano, dois aspectos adquirem particular importância: o primeiro é a função da luz como instrumento de transfiguração do mundo da realidade cotidiana e da efetividade; o segundo é a modalidade diferente de relação com o sagrado, onde ao conceito de contemplação se substitui o de participação.

Guerra e identidade religiosa

Esses aspectos foram objeto de uma intensa controvérsia, no século XIV, entre o monge grego calabrês Barlaam, filósofo e humanista, que chegou a Constantinopla em 1338, e Gregório Palamas, que durante anos levou uma vida ascética no Monte Athos e tornou-se sacerdote em Tessalônica. A doutrina de Palamas foi aprovada com autoridade pelo Protos e por muitos hegúmenos e monges de Athos na formulação chamada Tomo Hagiorítico de 1341.

A controvérsia foi encerrada no sínodo da Igreja Ortodoxa de 1351, que declarou a concepção de Gregório Palamas a doutrina oficial da própria Igreja. Essa decisão foi confirmada em 1368 pelo patriarca Filoteu Cocino, que proclamou santo Palamas, morto em 1359. Após a condenação de sua posição, Barlaam deixou a cena de Constantinopla, refugiou-se no Ocidente onde foi elevado ao episcopado e foi por um breve período professor de grego de Petrarca.

A vitória de Palamas marcou a sobrevivência dos traços mais genuínos e característicos da espiritualidade ortodoxa diante da penetração, mesmo no mundo bizantino, da filosofia escolástica ocidental e do humanismo.

A restituição à Igreja Ortodoxa Russa do ícone da Santíssima Trindade de Andrej Rublëv pelo Kremlin, precisamente nesta fase de aguda tensão com o mundo ocidental como um todo, é, portanto, um claro sinal de orgulhosa reivindicação da identidade e da especificidade da religião ortodoxa e da cultura russa como um todo em relação sobretudo à Europa, culpada – segundo a leitura fornecida pelo governo russo dos trágicos eventos deste último ano – de ter assumido uma posição de total subordinação e rendição à lógica imperialista dos Estados Unidos.

Notas

[1] Gregorio di Nissa, Cantica Canticorum homilia VIII, PG 44, 941C.

[2] P.A. Florenskij, Il timore di Dio, in Id., Il cuore cherubico. Scritti teologici e mistici, Piemme, Casale Monferrato (TO) 1999, p. 270.

[3] Ivi, pp. 299-300.

[4] P. A. Florenskij, Lo spazio e il tempo nell’arte, Adelphi, Milano 1995, p. 53.

[5] P. A. Florenskij, Empiria ed empirismo, in Id., Il cuore cherubico, cit., p. 101-102.

[6] D. Ferrari-Bravo, La parola e l’icona. Dalla verità della conoscenza alla verità della visione e ritorni in Pavel Florenskij, ‘Humanitas’ 4 (2003), p. 620-621.

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