O ícone sagrado profanado por Putin. Artigo de Tomaso Montanari

Repretação gráfica de Andrei Rublev confeccionando A Trindade. (Foto: domínio público)

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19 Junho 2023

A suma obra-prima pintada pelo santo monge Rublev entre 1420 e 1430 nos atrai diante do próprio Deus. Ou, melhor, esse ícone é o próprio Deus, assim como o símbolo é a coisa simbolizada.

O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 16-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Qualquer arte pictórica tem como objetivo transportar o espectador para além dos limites das cores e da tela que são perceptíveis sensivelmente e conduzi-lo a uma realidade específica: e então a obra pictórica compartilha com todos os símbolos em geral sua característica ontológica fundadora: ser aquilo do qual é símbolo...

Pois bem, o ícone tem o objetivo de transportar a consciência para o mundo do espírito, de mostrar “espetáculos misteriosos e sobrenaturais”... “E, tendo assim se manifestado dessa forma”, escreve o santo monge Iosif de Volokolamsk sobre o ícone da Trindade do santo monge Andrei Rublev, “assim também condescendeu agora em ser por nós retratado e pintado (nos ícones], e, a partir dessa visão material, o intelecto e o pensamento voam rumo ao desejo e ao amor de Deus”.

Andrei Rublev, A Trindade, têmpera sobre madeira, 1420-1430, Galeria Tretiakov, Moscou (agora transferida para a Catedral de Cristo Salvador, a pedido do Patriarca Kirill e decisão do presidente Vladimir Putin). (Foto: Wikimedia)

Em seu maravilhoso livro sobre o ícone (Le porte regali”), o monge Pavel Florensky (fuzilado em um gulag em 1937, por ordem do regime soviético) elege a Trindade como exemplo clássico do poder espiritual das imagens sagradas da tradição bizantino-russa: quanto mais o ícone é bem-sucedido como obra de arte, mais é capaz de elevar o espectador para a presença mística de seu tema.

E, assim, aquela suma obra-prima pintada pelo santo monge Rublev entre 1420 e 1430 nos atrai diante do próprio Deus, um único Deus em três pessoas, assim como eram três os anjos que apareceram a Abraão que aqui estão pintados. Ou, melhor, esse ícone é o próprio Deus, assim como o símbolo é a coisa simbolizada.

Justamente por isso, pôr as mãos nessa relíquia sagrada – arrancando-a do museu e devolvendo-a às mãos do clero, como ordenou Vladimir Putin – é um crime que merece ser evidenciado, apesar do monstruoso rastro de sangue que, dia após dia, é estendido pelo autocrata do Kremlin. E não só porque a Trindade corre o risco de ser fatalmente danificada pelos deslocamentos – como denunciam, pondo em risco seu trabalho e a própria vida, os conservadores e os funcionários de museus russos: em um heroísmo que deveria fazer corar os historiadores da arte italianos, submissos a qualquer poderoso local e muito mais inócuo.

Mas também porque, ao associá-lo ao obsceno patriarca Kirill e à sua Igreja que trai Cristo para adorar o poder sanguinário do novo czar, a obra-prima dessa espécie de Fra Angelico russo é profanada em sua mais íntima essência: em vez de transportar o espectador para diante do trono do Altíssimo, ele é posto a serviço do trono de um poder terreno, um trono de maldade e violência.

Desta forma, Putin crê estar redespertando o mais profundo espírito da Rússia: é de se esperar que, no fim, ele realmente consiga, e que esse espírito não o perdoe por essa última e inconcebível profanação

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