05 Mai 2024
Enquanto indígenas reforçam o imperativo da liderança na eliminação de combustíveis fósseis, ala pró-energia suja do governo brasileiro cria alarmismo para defender “petróleo para transição”.
A reportagem é de Alexandre Gaspari e Shigueo Watanabe Jr, publicada por ClimaInfo, 25-04-2024.
“Enquanto o mundo discute caminhos para viabilizar a transição energética e a redução urgente de gases do efeito estufa, o avanço das atividades extrativas da indústria de petróleo e gás no Brasil nos deixa em alerta. Certamente não será abrindo novas frentes de exploração que iremos protagonizar os esforços mundiais de enfrentamento da crise climática e promover a transição energética justa e popular.”
Este é um trecho da “Carta dos Povos Indígenas por uma Transição Energética Justa”. O manifesto foi organizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste e Minas Gerais (APOINME), e lançado após dois debates, realizados na quarta-feira (24/4) no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, sobre os impactos da extração de petróleo e gás nos Territórios Indígenas e as perspectivas dos Povos Originários sobre a transição energética na Amazônia.
O apelo indígena é claro: o governo brasileiro precisa ser proativo na eliminação dos combustíveis fósseis, condição sine qua non para tentarmos frear os efeitos cada vez mais frequentes e intensos das mudanças climáticas. Para isso, o país deve interromper imediatamente a exploração de combustíveis fósseis, sobretudo na Amazônia. E, simultaneamente, adotar estratégias que garantam uma transição energética justa e inclusiva, que de fato não deixe ninguém para trás.
Contudo, nenhum representante dos Povos Indígenas foi convidado para o seminário “Transição energética justa, inclusiva e equilibrada: caminhos para o setor de óleo e gás viabilizar a nova economia verde”, promovido no mesmo dia pelo Ministério de Minas e Energia (MME) a alguns poucos quilômetros do local onde se realiza o ATL. Na mesa, apenas gente do próprio MME, da Petrobras e da EPE. A escolha tinha uma razão óbvia: apresentar argumentos supostamente “técnicos” para justificar o aumento da exploração de combustíveis fósseis – inclusive na foz do Amazonas e no interior da floresta – como passo necessário para a transição.
Nas últimas semanas, a ala pró-petróleo do governo federal adicionou uma camada na sua narrativa em defesa da exploração “até a última gota”: a “ameaça” de voltar aos tempos da importação do combustível se não abrirmos novas frentes de exploração. Acontece que, segundo dados da ANP – agência reguladora que também integra o grupo defensor da energia suja –, as reservas brasileiras provadas de petróleo no ano passado foram as maiores desde 2014. Estas garantem o atual nível de produção por 13 anos, até 2037. Se consideradas as reservas prováveis, com menor grau de certeza, essa autossuficiência chega a 18 anos – até 2042, portanto.
Claro que esse cálculo não considera o provável aumento da eletrificação do transporte, principalmente de carros e ônibus, que, obviamente, reduzirá a demanda por combustíveis fósseis. Sem falar no avanço dos biocombustíveis, como etanol e biodiesel, que também contribuirão para essa queda.
Mas, no seminário, coube à EPE adicionar um argumento alarmista – e fake – para defender o indefensável aumento da exploração de combustíveis fósseis: as supostas “perdas” de tributos e royalties que teríamos se não extrairmos “até a última gota”. Pelos cálculos da estatal de planejamento, o país deixaria de ganhar [o que, claro, é diferente de “perder”] R$ 3,7 trilhões em 23 anos, no período entre 2032 e 2055, na forma de royalties e arrecadação de impostos.
Não sabemos qual preço do petróleo e cotação do dólar a EPE utilizou para fazer tal projeção. Mas o primeiro fator deve cair com o tempo, já que há uma tendência de queda progressiva da demanda por combustíveis fósseis a partir de 2030, segundo as projeções da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em Inglês). Sem falar que, no Brasil, a tributação costuma mudar ao bel-prazer dos governantes da ocasião. A própria ANP, vez ou outra, defende a redução da alíquota dos royalties para “viabilizar a produção”.
Mas podemos fazer contas bem simples para mostrar os equívocos da EPE:
Há, porém, outros dados ignorados pela estatal de planejamento. Uma pesquisa feita pelo Potsdam Institute for Climate Research Impact (PIK, da Alemanha) e publicada recentemente, mostrou que, mesmo que o planeta zerasse hoje as emissões de gases-estufa, a humanidade perderá renda equivalente a nada menos que US$ 38 trilhões anuais – isso mesmo, em dólares, e por ano, não em 23 anos – até 2049. Vale lembrar que pela dependência da economia do país de um clima adequado à produção agrícola, o Brasil é dos países com maior prejuízo econômico potencial por conta da crise climática. Os tributos e os royalties do petróleo certamente não cobrirão essa conta.
O ano de 2023 foi o mais quente da história, e tudo leva a crer que 2024 o superará. Mas a EPE, ao calcular “perdas” com a não exploração de combustíveis fósseis, esqueceu de considerar os prejuízos de R$ 401,3 bilhões, entre janeiro de 2013 e fevereiro de 2023, decorrente de desastres climáticos, valor (este, sim) que pode ser calculado como perda, de acordo com informação levantada pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM). E perda esta que não vai parar de subir, pelas razões já expostas anteriormente.
Ainda no seminário pró-combustíveis fósseis, o secretário de petróleo e gás do MME, Pietro Mendes, disse que o Brasil precisa buscar a redução da demanda por petróleo e seus derivados, em vez de optar por reduzir a produção no processo de transição energética. Brilhante, não?
De fato, Mendes está certo em apontar a necessidade de se trabalhar pela redução da demanda. Por isso se fala tanto na eletrificação dos transportes. As próprias montadoras brasileiras anunciaram altos investimentos na produção de veículos elétricos e híbridos flex, que, além de eletricidade, podem usar gasolina e etanol.
É o caso da Noruega, que também costuma ser usada pelos defensores dos combustíveis fósseis no Brasil como “exemplo” por ter criado um fundo com recursos do petróleo e gás fóssil. No país nórdico, a demanda por veículos a combustão está despencando rapidamente: cerca de 82% dos novos carros lá vendidos são elétricos.
Mas fica uma pergunta: se estamos agindo para reduzir a demanda, e há de fato uma projeção de queda desta nos próximos anos, há algum sentido econômico em se aumentar a produção de combustíveis fósseis? A resposta parece óbvia. Mas o secretário ignorou e preferiu repetir o mantra da “importação” para mais uma vez defender o indefensável.
Nada como encerrar esta análise com outro trecho da própria “Carta dos Povos Indígenas por uma Transição Energética Justa” para resumir esse falso debate: “As atividades da indústria fóssil acumulam violações gravíssimas de Direitos Humanos, com um histórico de acidentes e impactos socioambientais e climáticos devastadores. O avanço da exploração de petróleo e gás no país nos coloca na contramão dos esforços globais de combate às mudanças climáticas. Se o Brasil quer liderar pelo exemplo, precisa fazer a lição de casa.”
Como se diz nas redes sociais, “fica a dica”. E não apenas para o Brasil, mas para todo o mundo: ou eliminamos os combustíveis fósseis já, ou a conta a ser paga será cada vez mais alta. E principalmente para os países do Sul Global, como o nosso.
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O apelo indígena contra os combustíveis fósseis e a inoportuna surdez do governo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU