18 Abril 2024
O fundamental no método de organização dos Sem Terra é colocar as pessoas em movimento. A ação prática permite que a consciência política não adormeça nos acampamentos ou nos assentamentos. Como funcionam os princípios de participação e direção coletiva.
O artigo é de Instituto Tricontinental, publicado por Outras Palavras, 17-04-2024.
O MST nasce com três objetivos: Lutar pela Terra, ou seja, para que as famílias organizadas no Movimento conquistem terra suficiente para sobreviverem do seu próprio trabalho com dignidade; Lutar pela Reforma Agrária, o que significa a reestruturação da propriedade e do uso da terra, e pela transformação da sociedade.
Para alcançar estes objetivos, o MST se organizou e se definiu desde o início como “um Movimento de Massas, de caráter Sindical, Popular e Político”. Movimento de Massas porque entende que a correlação de forças só pode ser alterada a seu favor pelo número de pessoas organizadas e, por isso, Popular, porque é uma organização aberta à participação de todas as pessoas que desejem lutar para trabalhar na terra. O MST combina ainda o caráter Sindical, porque a luta pela reforma agrária tem também sua dimensão econômica e de conquistas reais e imediatas, mas também Política, porque sabe que a reforma agrária só poderá ser alcançada com uma transformação estrutural da sociedade.
Além disso, o MST é um movimento nacional com atuação em 24 dos 26 estados do Brasil, o que lhe diferencia dos movimentos que lhe antecederam, que contavam com uma atuação local e regional, o que lhes permitia ser isolados pelas forças repressivas. Ao estar presente na maior parte do território nacional, o MST tem condições de apoiar estados com mais dificuldades e nacionalizar lutas locais, amplificando sua repercussão.
Desta forma, a consolidação e a força do MST se devem ao número de pessoas que organiza. Efetivamente, ainda que disponha de muitas formas de organização, de acordo com cada realidade e local, o fundamental no método de organização é colocar as pessoas em movimento, em luta. E pela luta, desenvolver sua consciência política e social.
A primeira forma de luta do Movimento são as ocupações de terras. Antes ou durante a ocupação de uma área, o MST organiza acampamentos de famílias Sem Terra. A articulação destas famílias é feita pela identificação de territórios onde os camponeses estejam concentrados e da organização de reuniões, a partir de visitas a estas pessoas pelo trabalho de base. Desde este momento, as famílias participam da organização do futuro acampamento, buscando formas de conseguir lonas para os barracos, transporte para as famílias realizarem as ocupações etc. Ou seja, criar as condições para a ocupação que virá.
Os acampamentos cumprem o mesmo papel que as fábricas para a formação das lutas operárias nos séculos XIX e XX. Ao reunir os camponeses em um determinado lugar, superando o isolamento geográfico, permite que se construam relações de cooperação e sociabilidade.
Ao ingressar em um acampamento, as famílias são organizadas em núcleos de base de cerca de 10 a 20 pessoas. Esse pequeno número é definido para que os integrantes possam se conhecer e evitar infiltrações de desconhecidos. Além disso, divididos em pequenos grupos, mais pessoas podem debater e opinar sobre as questões de organização política do acampamento. Nos núcleos, todos têm o direito à palavra, incluindo as crianças. No acampamento, as tarefas precisam ser organizadas e distribuídas coletivamente: buscar água e lenha, organizar as doações de comidas, montar barracos, realizar a segurança, educar as crianças etc. Estas tarefas são organizadas em equipes chamadas de setores, compostas por integrantes dos Núcleos de Base. Ou seja, todo Núcleo tem um participante nas equipes de trabalho. Desta forma, todos participam da vida política, nos debates, e da vida organizativa, nas tarefas. Sempre coletivamente.
Independente do número de pessoas envolvidas, as reuniões dos núcleos e setores sempre são organizadas anteriormente, com uma pauta de discussão bem definida, coordenada sempre por um homem e uma mulher. Um dos integrantes do núcleo tem a tarefa de registrar as decisões para que sejam verificadas pelo próprio Núcleo.
Quando as discussões dizem respeito a decisões de todo o acampamento, as opiniões dos Núcleos são levadas por seus coordenadores para um espaço de coordenação do próprio acampamento. Caso não haja consensos nas discussões, elas retornam para os núcleos, com novos acúmulos e questões, procurando construir sínteses e decisões coletivas.
Nestes acampamentos e nas ocupações de terra, são comuns assembleias para tomarem decisões coletivas, como ocupar ou não um latifúndio, recuar ou não em uma luta. Mas este método de assembleias é eficiente apenas quando a totalidade dos participantes tem a compreensão de todas as dimensões do que está em discussão e as discussões se restringem a poucas opções, como fazer ou não uma ocupação, resistir ou não em uma situação de despejo. Por isso, elas não são nem a principal, nem a mais comum das formas de participação no Movimento.
Quando a terra é conquistada, ela se torna um assentamento de reforma agrária e as famílias permanecem organizadas no Movimento. Este foi um dos primeiros desafios do MST: como manter organizadas as famílias que já haviam alcançado parte dos seus objetivos com a conquista da terra? Parte da sociabilidade e da cooperação existente no acampamento se perde nesta transição. Por isso, o Movimento desenvolveu alguns mecanismos para manter os assentados em movimento.
Primeiro, os anos de vivência e luta em acampamentos produz uma identidade. Os trabalhadores organizados pelo MST se autoidentificam como Sem Terra (com letras maiúsculas). Essa identidade permanece mesmo depois de conquistada a terra. Esta identidade significa compartilhar histórias de lutas, de identificação com as famílias ainda acampadas e de valores como o internacionalismo ou a solidariedade que são cultivados pelas lutas.
A organização do território conquistado traz novas demandas e lutas por crédito rural, educação, saúde, cultura, comunicação etc. Para alcançar estas novas reivindicações, o MST mantém sua forma organizativa. Ou seja, também no assentamento as famílias organizam-se em Núcleos de Base, por vizinhança, entre 10 a 20 integrantes, com a participação de todas as famílias. Estes núcleos novamente têm um homem e uma mulher na coordenação, a preparação das reuniões, o registro das decisões e um fluxo de discussões e debates dos núcleos para a coordenação e vice-versa. A cada nível organizativo – acampamento, assentamento, região, estado e nacionalmente – se constitui uma instância de direção coletiva.
O MST não possui e nunca possuiu uma figura de “Presidente” ou cargo semelhante que concentrasse em si as decisões políticas, ou que se diferenciasse dos demais militantes. Todas as instâncias no Movimento, desde a base até a Direção Nacional, são coletivas e com mandatos de dois anos. Desta forma, se combate o centralismo e o personalismo. Relacionado com este princípio está a divisão de tarefas: todos devem ter, em maior ou menor grau, responsabilidades dentro da Organização para que não haja nem centralização excessiva, nem sobrecarga dos militantes.
Assim como no acampamento, há equipes para tarefas do cotidiano no assentamento. As novas demandas são distribuídas entre equipes para a educação, saúde, organização econômica, entre outras. Quanto mais complexa a realidade e maior a organização, mais equipes são formadas, organizando-se em setores em níveis estaduais e nacionais para planejar e executar tarefas mais especializadas, como Produção, Frente de Massas, Educação, Formação etc. Por exemplo, todos os educadores ou envolvidos na educação de uma mesma região de municípios formam o setor de Educação, que elaboram propostas pedagógicas e atuam na vida escolar dos territórios. Na produção, os militantes organizam a vida econômica, as cooperativas, assim como a tecnologia agroecológica para o cultivo. E assim sucessivamente. Nestes coletivos, também se reconhecem e se incorporam os protagonismos de sujeitos Sem Terra, como o coletivo LGBT – possivelmente sem similar em outras organizações camponesas – e a Juventude. Outro exemplo de participação são atividades e encontros com os “sem terrinhas”, as crianças das áreas de reforma agrária. Em julho de 2018, o primeiro Encontro Nacional dos Sem Terrinhas reuniu mais de mil crianças para um acampamento de estudo, brincadeiras e lutas na capital federal, em Brasília.
Novamente, o essencial é reunir as pessoas, criar espaços de discussão coletiva e colocá-las em movimento por meio da luta e da cooperação. Isso significa que, ainda que as ocupações de terras sejam o “cartão de apresentação” do MST, o movimento combina diferentes formas de lutas, de acordo com as necessidades e as condições. Outros exemplos de mobilizações são marchas – algumas delas nacionais como em 1997 e 2005; ocupações de prédios públicos, bloqueios de rodovias, greves de fome etc.
É a ação prática, a luta, que permite que a consciência política não adormeça nos acampamentos ou nos assentamentos. Por exemplo, o MST tem a solidariedade como um de seus principais valores humanos e socialistas. Mas ela não se expressa apenas pela retórica ou pelo discurso. Durante a pandemia da covid-19, por exemplo, o Movimento doou toneladas de alimentos em todo país por meio da organização de Cozinhas, Hortas e Comunidades Solidárias. Em dezembro de 2023, o MST enviou 13 toneladas de alimentos para as vítimas dos ataques israelenses na Faixa de Gaza [1]. A organização destas ações exige discussões com as famílias, planejamento da produção, organização da logística etc. Neste processo, as famílias desenvolvem, na prática, o conhecimento de outras realidades, especialmente do meio urbano, cooperam para atingir seus objetivos e vivenciam na prática estes valores.
Outro mecanismo pode ser a organização de cooperativas, onde a cooperação se dá pelo trabalho e distribuição do excedente, mas também pela organização de agrovilas, concentrando as pessoas em núcleos de moradia comuns, em vez do isolamento rural, e da socialização do trabalho doméstico, com cozinhas coletivas e cirandas infantis para o cuidado coletivo com as crianças.
Como um movimento nacional e massivo, o MST adota a autonomia dos seus estados, regiões e territórios. Desta forma, cada grupo de famílias organizadas, em assentamento ou acampamento, tem a autoridade para tomar as decisões referentes à sua realidade. No entanto, a Unidade é imprescindível para que este mecanismo funcione com autonomia, com uniformidade em suas formas organizativas. Isso é possível porque, desde a sua fundação, em 1984, o Movimento Sem Terra estabeleceu algumas características organizativas que determinaram a própria identidade do Movimento.
Os princípios organizativos são os valores, a forma de organização e os objetivos pelos quais um movimento popular se dispõe a lutar. Eles definem a identidade e a unidade de uma organização, ao mesmo tempo em que a supressão de algum destes princípios descaracterizaria a própria organização, alterando sua natureza. Durante estas quatro décadas, estas características não se alteraram na sua essência, mas puderam ser radicalizadas para aumentar a participação e elevar o nível de consciência do movimento de massas.
Um destes princípios é sua autonomia em relação aos partidos políticos, igrejas, governos e outras instituições. O MST é autônomo em relação a outras organizações para que ele possa definir sua própria agenda política. Isso não significa que o MST não trabalhe com outros partidos políticos ou organizações religiosas, evidentemente, mas trata-se de uma relação fraternal e não subordinada a eles. Assim, o MST pode construir uma leitura da realidade, da luta pela terra e estabelecer táticas a partir da sua própria percepção e das demandas das famílias organizadas.
Como visto anteriormente, para que o Movimento seja Popular e de Massas, é necessário que ele tenha como princípio organizativo a Participação. Esse é também um exemplo de como o princípio pode ser ampliado, radicalizado em sua natureza, preservando sua essência. Inicialmente, os homens ocupavam a maior parte das instâncias de coordenação. Presentes na luta do MST desde o início, a organização das mulheres no MST cresceu de diversas formas, mas principalmente no Coletivo de Mulheres. Elas organizaram acampamentos de formação política, ações diretas contra transnacionais, espaços de estudo sobre as relações de gênero e o capitalismo etc. Este protagonismo ampliou o princípio de participação quando, no final dos anos 1990, o Movimento estabeleceu que toda função de direção e representação deveria ser obrigatoriamente ocupada por um homem e uma mulher. Isso, literalmente, duplicou o número de participantes e passou a corresponder ao peso de fato que as mulheres tinham na Organização. Este mecanismo reforçou outro princípio: o da Direção Coletiva.
Para que os princípios de participação e direção coletiva funcionem é necessário disciplina. Para o MST, disciplina significa respeitar as decisões coletivas, as linhas políticas e cumpri-las. Raramente há votações no MST, e o mais comum é procurar construir consensos nas decisões. Quando há alguma dificuldade de criar um consenso em torno de alguma questão, o debate volta novamente nos núcleos e nas coordenações até que as decisões estejam maduras e, então, após definido o encaminhamento, todos os integrantes do Movimento o seguem e o executam. Disciplina é este cumprimento das decisões coletivas.
Uma característica comum dos movimentos sociais é o de construir suas estratégias e táticas a partir da própria prática. Sem ação e prática, não há movimento popular. Porém, para a leitura permanente da realidade, apenas a prática é insuficiente. Por isso, outro princípio organizativo valorizado no MST é o Estudo. Desde seu sentido escolar, organizando as famílias a lutarem por escolas nas áreas de assentamento e acampamento, como as mais de 2 mil escolas públicas conquistadas em áreas de reforma agrária a partir da pressão sobre as autoridades locais, até na alfabetização de jovens e adultos, como as mais de 50 mil pessoas que aprenderam a ler e a escrever por iniciativa do próprio Movimento ou em parceria com governos locais [2]. Outra dimensão do Estudo é o da formação política por diferentes processos – publicação de livros e cartilhas, estudo nos núcleos de base, cursos etc – e que estão de certa forma sintetizados na experiência da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) [3], a escola de formação política nacional do Movimento e que é parte do conjunto das escolas de formação da Assembleia Internacional dos Povos, uma articulação global de organizações populares, movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos.
A ENFF foi inaugurada no dia 23 de janeiro de 2005, e homenageou o sociólogo e político brasileiro Florestan Fernandes com seu nome. A escola se tornou referência internacional por unir a prática com a teoria política. Ao longo do ano, militantes, dirigentes e quadros de organizações populares que lutam pela construção de mudanças sociais em vários países estudam, a fundo, clássicos da teoria política nacional e internacional. Os cursos podem durar de uma semana a três meses, e são lecionados por professores e intelectuais voluntários. A ENFF também oferece formações com foco em diversos temas, como questão agrária, marxismo e feminismo e diversidade. Com professores e alunos vindos de vários países, especialmente da América Latina, a Florestan Fernandes permite um intercâmbio cultural e político entre os movimentos populares, assim como uma formação sobre o panorama econômico e social global, sempre sob o olhar da classe trabalhadora [4].
A escola foi literalmente construída pelas mãos dos trabalhadores Sem Terra de todo o país, que se organizaram em brigadas de trabalho voluntário. Os recursos para a construção foram arrecadados pelo trabalho solidário de comitês de apoio internacionais e pela doação dos direitos autorais de Sebastião Salgado, Chico Buarque e José Saramago com a exposição “Terra”.
Além da ENFF, outras escolas foram organizadas pelo Movimento, como o Instituto de Educação Josué de Castro, especializado em formar jovens gestores para cooperativas, e escolas de agroecologia, como a Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA) e o Instituto Educar, na região sul do país; a Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto, localizada no nordeste brasileiro; e o Instituto de Agroecologia Latino Americano (IALA), na região amazônica.
Parte dos esforços para democratizar o acesso ao conhecimento também se materializou no Programa Nacional de Educação para Reforma Agrária (PRONERA), uma política pública conquistada após a Marcha Nacional de 1997. Por meio deste programa, o governo brasileiro estimula a criação de cursos de escolarização, incluindo graduação e pós-graduação, específicas para os trabalhadores Sem Terra. Foram mais de 100 convênios firmados com universidades públicas que permitiram o acesso a cursos de Agronomia, Veterinária, Enfermagem, formações de educadores, entre muitos outros. Desta forma, o Movimento ocupa um espaço tradicionalmente elitizado e inacessível, ao mesmo tempo em que obriga a academia a abrir suas portas para a experiência e o conhecimento produzidos no calor da luta.
Um dos principais valores alimentados pelo MST é o Internacionalismo, como valor e como estratégia política. O capitalismo, enquanto um sistema mundial, estabelece todo o globo como campo de batalha e, portanto, a resistência a ele também deve ser global. Além das articulações entre movimentos camponeses – como a Via Campesina e a Coordenadora Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC) na América Latina – o MST participa de outros espaços de abrangência mais amplos, como a Alba Movimientos e a Assembleia Internacional dos Povos.
Porém, o Internacionalismo não se limita a espaços de encontros e reuniões internacionais. Como um princípio e um valor da organização, ele deve se materializar em ações. Desde as mais simples manifestações de solidariedade aos povos em luta pelas famílias acampadas e assentadas, à construção de Brigadas Internacionalistas, formada por militantes do Movimento para atuarem em missões de intercâmbio nas áreas de agroecologia, produção, educação e formação. Organizadas desde 2006, as Brigadas Internacionalistas do MST estão ou já estiveram na Venezuela, Haiti, Cuba, Honduras, El Salvador, Bolívia, Paraguai, Guatemala, Timor Leste, China, Moçambique, África do Sul e Zâmbia.
A mais antiga delas, a Brigada Apolônio de Carvalho, cujo nome homenageia um militante comunista brasileiro que lutou na guerra civil espanhola e na resistência francesa, atua na Venezuela com formação política e com difusão de técnicas agroecológicas. A Brigada Jean-Jacques Dessalines, no Haiti, atua da mesma forma desde antes do terremoto que destruiu o país em 2010. Na Zâmbia, além da agroecologia, a Brigada Samora Machel trabalha com a alfabetização dos camponeses e, na Palestina, a cada dois anos, a Brigada Ghassan Kanafani colabora na colheita das oliveiras em territórios ameaçados por colonos israelenses.
[1] With another donation, the Landless Workers’ Movement (MST) sends out another 11 tons of food to families in Gaza. Disponível aqui.
[2] Educação MST. Disponível aqui.
[3] O nome da Escola é uma homenagem ao sociólogo e militante marxista Florestan Fernandes, intelectual comprometido com a luta de classes, foi fundador do Partido dos Trabalhadores e deputado federal na elaboração da Constituição brasileira após a ditadura empresarial-militar.
[4] Conheça a Escola Nacional Florestan Fernandes, há 15 anos formando militantes. Disponível aqui.
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MST, 40: muito além das ocupações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU