22 Mai 2019
"Para convencer uma fatia maior de trabalhadores e camponeses para engrossar a luta pela terra, a gente tem que integrar a nossa luta com o urbano, pois muitos trabalhadores urbanos nos veem segundo a mídia que nos mostra como se a gente fosse marginal. Temos que mostrar o resultado do nosso trabalho, o companheirismo existente entre nós, o respeito que existe entre nós e convidar o povo da cidade para vir nos visitar e nos conhecer", escreve Gilvander Moreira, Frei e padre da Ordem dos carmelitas.
Frei Gilvander é mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblica, de Roma; é professor de Teologia Bíblica; assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT, assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI, assessor do Serviço de Animação Bíblica – SAB – e da Via Campesina em Minas Gerais.
Nas terras do latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, no município de Campo do Meio, sul de Minas Gerais, o MST conquistou em 2010 o Assentamento Nova II, com 300 hectares, onde foram assentadas 13 famílias em lotes de 8 a 19 hectares. Após enfrentar seis anos de acampamento naquelas terras e sofrer três despejos, João Martins Pereira está assentado no lote n. 10, com área de oito hectares. Ele chegou para acampar, em 2004, no Acampamento Betim, um dos 11 acampamentos da Ariadnópolis. O pai e a mãe de João foram assentados em 1984 na região de Sumaré, SP. No início de 2000, João esteve acampado três anos na região de Itapetininga, SP. Não conquistou um pedaço de terra e teve que ir trabalhar em uma fábrica de eixo cardã, barra de direção e caixa de direção em Guarulhos, SP. Ele fabricava, por mês, de 20 a 30 eixos cardã e cerca de 200 barras de direção. Seus patrões eram dois sócios e com a acumulação de capital abriram mais três fábricas. João resolveu pedir demissão por dois motivos: a) O valor de venda de 2 a 3 peças das 200 que produzia mensalmente era o suficiente para pagar o salário mínimo que ele ganhava. João Martins recorda: “Com os trezentos reais que eu ganhava não dava nem para pagar as minhas despesas de sobrevivência. Tive que exigir vale-transporte. Descobri que eu estava enriquecendo os patrões e morrendo aos poucos, sendo explorado”; b) a chateação causada no trabalho pelo mandonismo dos sócios: um mandava fazer uma coisa e outro mandava fazer outra coisa. João gosta de dizer: “Eu sempre tive vocação para mexer na terra, trabalhar como empregado eu nunca gostei.”
Após mais essa experiência amarga como empregado, João conversou com o Gilmar Mauro, da direção nacional do MST, e lhe disse que queria voltar a ocupar terra. Participou da ocupação de uma fazenda na região de Americana, SP, fazenda do INSS, de onde foi despejado. Ficou acampado na beira da linha do trem perto de Itu, SP. Nessa época, os Sem Terra acampados fizeram aliança com os acampados da região de Ribeirão Preto. João foi participar de ocupação de terra na região de Ribeirão Preto, SP, onde permaneceu sete meses, mas não se acostumou ao clima muito quente da região.
Encontrando dificuldade de ampliar o número de famílias nos acampamentos da Ariadnópolis e analisando que somente com um mínimo de 500 famílias acampadas poderiam conquistar tal latifúndio, militantes do MST do sul de Minas começaram a convidar sem-terra no estado de São Paulo na região de Campinas. Ao ser convidado, João resolveu conhecer os acampamentos da Ariadnópolis e decidiu ficar acampado. João Martins relata: “Logo me puxaram para coordenar. Entrei para o setor de produção. Depois fui para o setor de formação. Já fui dirigente estadual e hoje estou novamente no setor de produção.” João relata o seu envolvimento no Assentamento Nova Conquista II, assim: “Voltei a estudar. Estou cursando o ensino médio à noite lá na cidade de Campo do Meio. A luta pela terra vale a pena porque a pessoa passa a ser respeitada e a ter dignidade. Na cidade, sem ser respeitada, a pessoa acaba entrando para os caminhos da violência. Sem reforma agrária, o país não tem solução, pois a desigualdade é muito grande. A luta pela terra abre caminho para uma sociedade diferente. No assentamento, temos que produzir e mostrar para a sociedade que a reforma agrária é viável. Se um assentado for preso em uma manifestação, ele corre o risco de perder o lote conquistado. O recurso do governo federal quando chega, muitas vezes, ao invés de unir, pode causar atrito entre os assentados. Eu usava veneno na agricultura, mas deixei de usar, porque o veneno contamina a água do poço, os animais e a nossa saúde. Vamos chegar ao ponto em que se alguém vender banana envenenada, a pessoa que adoecer exigirá o exame para descobrir de onde veio a banana, e assim quem estiver produzindo alimento envenenado poderá ser responsabilizado criminalmente. Dá para produzir, sim, sem agrotóxico. Aqui na Ariadnópolis a terra é fértil. Tendo chuva na hora certa, podemos plantar sem agrotóxico que a produção será boa. Já perdi dois plantios devido à seca. Para melhorarmos a sociedade, a primeira coisa é organizar e fazer ocupações, conquistar a terra e plantar com base agroecológica. Estamos construindo as casas por nossa própria conta, porque ainda não recebemos recurso do governo. Estou cultivando 600 pés de banana. Tenho hoje 20 vacas. Comecei com uma. Em seis anos cheguei a 20 vacas. Estou criando umas 60 galinhas e três porcos”.
Na luta pela terra, muitas mulheres são protagonistas. Entre elas Ricarda Maria Gonçalves da Costa é exemplo de protagonismo na luta pela terra. Ricarda narra um pouco da sua história e do que significa para ela a luta pela terra: “No êxodo rural da década de 1960, eu fui expulsa da terra. Saí da região de Novo Horizonte, perto de Catanduva, SP. Meus pais foram meeiros, mas sem condições de viver. Foi muito sofrido a gente ser expulso da terra. Saímos de costa lamentando nossa saída da terra. Em São Paulo, eu fiquei 30 anos lutando para voltar para a terra. Trabalhando como metalúrgica, eu me envolvi com a luta do sindicato dos metalúrgicos e no sindicalismo passei a entender porque a gente é oprimida. Quanto mais a gente lutava, mais a gente era perseguida. Na luta sindical passamos a entender como é o processo de opressão da classe trabalhadora e da classe camponesa. Tive que ir trabalhar na área hospitalar e depois tive que virar mascate, pois a gente não encontrava mais empresa que nos aceitasse. Vim para São José dos Campos, SP, e, ao contemplar a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira, eu pensava: ‘Um dia eu pulo essa montanha e vou conquistar uma terra.’ Um dia, em um evento religioso da Renovação Carismática da Igreja Católica, ouvi falar de Campo do Meio. Eu sou muito religiosa e sempre orava: “Senhor Deus da vida, eu quero voltar para uma terra, mas onde eu possa levar tua palavra”. Vim para Campo do Meio, porque ouvi falar que tinha uma usina parada aqui, onde se arrendava terra para trabalhar. Tentei arrendar terra na usina Ariadnópolis, mas a mulher do gerente me negou. Tive que subarrendar de outra arrendatária, mas logo chegou o MST e iniciamos a luta pela terra aqui nas terras da Ariadnópolis. Nossa emancipação passa necessariamente pela conquista da terra, pela democratização da terra. Sou feliz quando estou cumprindo minhas tarefas no Movimento, mas o que mais me dá satisfação é quando eu estou lidando com a mãe terra. Em contato com a terra a gente ganha energia positiva e saúde, porque a gente alimenta sem agrotóxico. É indescritível o prazer que a gente sente ao ver um pé de andu todo carregado, feijão que a gente plantou. Aqui, a gente come o fruto saudável da semente que a gente planta sem nenhum agrotóxico. No campo, nós não somos reduzidos à mercadoria. Aqui, a gente goza os frutos do nosso trabalho. Aqui, os calos em minhas mãos – “Veja aqui em minhas mãos!” -, o meu trabalho é em prol de mim mesma e de meus companheiros. Aqui na roça, se eu canso, paro e descanso, e depois volto a trabalhar feliz. Eu acredito que a sociedade muda pelo prazer de estar em relação com a terra, o que é uma dádiva. Lá na cidade, um dia escrevi uma poesia que dizia: As empresas metalúrgicas me engolem às 6h00 da manhã, sem eu ver o sol nascer, e me vomitam às 18h ou às 20h, sem eu ver o sol se pôr, sendo que eu nasci livre no campo, vendo o sol nascer, vendo o verde da natureza, sentindo o cheiro e o calor da mãe terra. Nas empresas metalúrgicas, a gente era reduzida à escravidão. Quando eu ia fazer os cálculos entre o que a gente recebia como salário e o que os empresários lucravam, eu percebia o tamanho da nossa exploração lá nas empresas metalúrgicas. Aqui na terra, a gente trabalha feliz. Aqui na luta pela terra está nosso caminho de emancipação, que nos dá saúde e libertação. Para convencer uma fatia maior de trabalhadores e camponeses para engrossar a luta pela terra, a gente tem que integrar a nossa luta com o urbano, pois muitos trabalhadores urbanos nos veem segundo a mídia que nos mostra como se a gente fosse marginal. Temos que mostrar o resultado do nosso trabalho, o companheirismo existente entre nós, o respeito que existe entre nós e convidar o povo da cidade para vir nos visitar e nos conhecer. Em Campo do Meio, eu fui acolhida pela renovação carismática, mas quando eu fui para o MST, algumas amigas se distanciaram de mim quando me viram andando com o boné do MST e empunhando a bandeira do Movimento. Hoje nós conquistamos respeito, porque dia 25 de setembro de 2015, mostramos lá na cidade de Campo do Meio o decreto do governador de Minas, desapropriando as terras da Ariadnópolis para nós.
Eu fiz um agradecimento em cima do caminhão de som. As assentadas, como a Lúcia e a Obed, continuam lutando por nós que estamos acampadas. Mesmo depois de assentada, eu nunca vou parar de lutar pela terra, pelos sem-terra e em defesa de todo o povo oprimido. Formação permanente do povo é necessária. Todos precisam entender que somos da classe oprimida. Temos que exercitar no nosso dia a dia a pedagogia do oprimido. Na luta pela terra, freando o agronegócio e a superexploração das empresas na cidade, nós estamos salvando o planeta”.
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João e Ricarda, exemplos de Sem Terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU