28 Novembro 2018
"Defender simplesmente o direito à propriedade é evocar a Constituição Imperial de 1824, a que prescrevia direito absoluto à propriedade. Isso não é mais tolerável no nosso país. Precisamos recordar que o Deus da Vida não é neutro e nem cúmplice de nenhuma opressão e nem discriminação", escreve Gilvander Luís Moreira, Frei e padre da Ordem dos carmelitas.
Frei Gilvander é mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblica, de Roma; é professor de Teologia Bíblica; assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT -, assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI -, assessor do Serviço de Animação Bíblica - SAB - e da Via Campesina em Minas Gerais.
Aconteceu ontem, dia 22 de novembro de 2018, uma Audiência Pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), na Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo deputado Cristiano Silveira (PT). O assunto: ameaça gravíssima e profundamente injusta de despejo de 450 famílias de Sem Terra do MST, acampadas há 20 anos no latifúndio de 3.900 hectares da ex-usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, no sul de Minas Gerais.
Em nome da Comissão Pastoral da Terra (CPT), eu disse lá ... “Agradecemos ao Deputado Rogério Correia e ao deputado Cristiano Silveira, ambos do PT, por terem realizado, dia 21 de novembro de 2018, Audiência Pública na ALMG em homenagem aos 40 anos da CPT/MG, ocasião em que apresentamos o livro anual da CPT “Conflitos no Campo Brasil”, relativo a 2017, e, emocionados, prestamos mais um Tributo aos Companheiros Alvimar Ribeiro e Tiãozinho (In memorian), ambos da CPT/MG.”
Sou testemunha da justeza e da legitimidade da luta pela terra em Campo do Meio, no latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, pois acompanho a luta do MST no sul de Minas há mais de 10 anos. Já divulgamos vários textos, entrevistas e vídeos ecoando a voz e a luta dos Sem Terra do MST, acampados há 20 anos no mega latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, que, após perpetrar grande devastação socioambiental, faliu em 1996, deixando milhares de trabalhadores sem receber salário e os direitos trabalhistas. Fiz uma Tese de Doutorado, na Faculdade de Educação da UFMG sobre a Luta pela Terra enquanto Pedagogia de Emancipação Humana. Uma das minhas experiências concretas de pesquisa foi justamente a Luta pela Terra em Campo do Meio. Se for preciso, podem arrolar minha Tese como documento que também atesta a legitimidade da luta das 450 famílias do MST no latifúndio da Ariadnópolis (A tese de Gilvander Luís Moreira sobre a Luta pela Terra está disponível clicando aqui).
Estamos na Semana da Consciência Negra, em que celebramos Zumbi e Dandara, do Quilombo dos Palmares, de Alagoas, que, em 1670, contava com mais de 20 mil pessoas e resistiu por mais de 100 anos ao sistema escravista. Recentemente, os 11 Acampamentos do MST, em Campo do Meio, MG, em homenagem à resistência quilombola no estado de Minas Gerais, batizou o nome da sua luta de “Quilombo Campo Grande”, em que cada Sem Terra é outro Zumbi e outra Dandara. O Quilombo dos Palmares é considerado um grande símbolo nacional de luta, mas é importante também ressaltar que a antiga Confederação dos Quilombos Campo Grande vem sendo considerada por historiadores ainda muito maior do que foi o Quilombo dos Palmares, tendo sido composta por, pelo menos, 27 núcleos de resistência, espalhados por territórios que abrangem hoje, em Minas Gerais, o Centro-oeste, o Alto São Francisco, o Sudoeste e o Triângulo Mineiro e , em 1752, segundo o pesquisador Diogo de Vasconcelos, chegou a possuir vinte mil habitantes. Os líderes quilombolas Ambrósio e Pedro Angola da Confederação do Quilombo Campo Grande devem ser também lembrados por todos da luta. Na segunda metade do século XVIII, houve várias investidas repressivas que visavam desbaratar os principais núcleos quilombolas. A perseguição e a matança de negros escravizados foi grande e hedionda. O capitão do mato, Bartolomeu Bueno Prado, fez questão de trazer para mostrar ao governador da capitania de Minas Gerais 3.900 pares de orelhas de negros escravizados assassinados. Apesar da intensa perseguição, muitas pessoas quilombolas conseguiram fugir para as matas, pois a existência de rotas de fuga antes da chegada das milícias saqueadoras e repressivas era uma forte estratégia de resistência negra. A história oficial divulgou o extermínio total dos quilombolas, da mesma maneira que dizia não haver mais indígenas nas matas e nas vilas! Muitos indígenas e quilombolas se mantiveram na invisibilidade como forma de resistência ao sistema repressor e ao preconceito racial e social. Todavia, atualmente muitas comunidades remanescentes de quilombolas que estão se organizando e lutando por seus direitos em Minas Gerais têm a sua raiz na belíssima história dessa grande Confederação de Quilombos Campo Grande. Uma história que foi por muito tempo escondida pelos poderosos e que temos o dever de revelar e de divulgar!
A luta nesta região é, pois, muito antiga, e as perseguições por parte dos latifundiários e empresários do agronegócio continuam. Quem está insistindo no despejo das 450 famílias está incitando a violência e serão responsáveis caso ocorra massacre. A CPT/MG alertou o Estado de Minas Gerais 1,5 ano antes do massacre de Felisburgo, ocorrido dia 20 de novembro de 2004. Entretanto, o Estado permaneceu cúmplice do latifúndio e acabou acontecendo o massacre de Felisburgo. Será preciso ocorrer outro massacre de Sem Terra em Minas Gerais como o de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 17 de abril de 1996? Os Sem Terra de Campo do Meio já sofreram 11 despejos e estão determinados a não aceitar mais nenhum despejo. A luta dos Sem Terra do MST em Campo do Meio busca resgatar uma imensa dívida histórica com o povo negro e camponês, inúmeras vezes submetidos à situação análoga à escravidão no sul de Minas Gerais. Agentes de pastoral da CPT/MG atuaram no sul de MG ainda nas décadas de 1980 e 1990, ao lado de 15 sindicatos de Trabalhadores Rurais combativos, combatendo o trabalho escravo. Em Campos Gerais, próximo a Campo do Meio, na manifestação contra o despejo nas terras da Ariadnópolis, dia 7 de novembro último (2018), ficamos felizes ao encontrarmos ex-agentes da CPT/MG, hoje integrantes da Cooperativa Camponesa, que acolhe a produção orgânica, agroecológica das 450 famílias da Ariadnópolis, o Café Guaií inclusive, principal produto da Cooperativa, que tem o diferencial de ser totalmente puro.
Vários “acidentes” – crimes premeditados – ceifaram a vida de muitos trabalhadores boias-frias no sul de MG sendo transportados para a colheita do café, enquanto eram transportados em caminhões de boias-frias ou em ônibus velhos. No Município de Antônio do Amparo, na BR 381, um caminhão com 32 boias-frias tombou dia 19 de agosto de 2008. Resultado: 14 morreram na hora e outros 18 ficaram gravemente feridos. Campo do Meio já foi palco de luta contra a escravidão. Portanto, a luta pela terra em Campo do Meio nas terras da ex-usina Ariadnópolis é também para saldar um pouco essa imensa dívida histórica com o povo negro e camponês.
Recordo também que a desembargadora Márcia Maria Milanez, presente na audiência pública, quando era 3ª vice-presidenta do TJMG, ajudou a evitar o despejo da Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, hoje com 2.500 famílias assentadas. Ela defendeu em uma postura sensata na época: “Quando se tem que despejar, deve-se despejar no início da ocupação e não depois que o povo já está enraizado”. Logo, como despejar 450 famílias que ocupam o latifúndio da Ariadnópolis há 20 anos, onde já estão mais do que enraizados? Onze despejos já foram feitos lá no latifúndio da Ariadnópolis, mas o povo reocupou. Recordo também que quando as 9 mil famílias das Ocupações-Comunidades da Izidora, em Belo Horizonte e Santa Luzia, MG, estavam sob gravíssima ameaça de despejo, em agosto de 2014, um grupo de Sem Terra do MST de Campo do Meio trouxe e partilhou com as famílias das Ocupações da Izidora (Rosa Leão, Esperança e Vitória) um caminhão de alimentos produzidos nos 11 Acampamentos do latifúndio da Ariadnópolis. Esse gesto de solidariedade nunca será esquecido pelo povo das Ocupações-Comunidades da Izidora que também se somarão na luta para impedir o despejo das 450 famílias em Campo do Meio. Portanto, mexer com o MST em Campo do Meio significa mexer também com as Ocupações da Izidora, na capital mineira.
Uma das bem-aventuranças de Jesus diz: “Felizes os humildes, porque conquistarão a terra” (Mateus 5,5). Eu digo: “Felizes vocês, Sem Terra do MST, que ocupam o latifúndio da Ariadnópolis há 20 anos, porque vocês conquistarão esta terra”. Por outro lado, é preciso dizer: malditos os que insistem em despejar os Sem Terra e egoisticamente só maquinam para continuar reproduzindo a privatização da mãe terra. A quem diz que “a lei e as decisões judiciais precisam ser respeitadas”, alertamos que a Lei Maior, a Constituição Brasileira de 1988, precisa, sim, ser respeitada, pois ela prescreve direito à terra, desapropriação de latifúndios que não cumprem a função social, como era o caso do latifúndio da ex-usina Ariadnópolis ao ser ocupado. Defender simplesmente o direito à propriedade é evocar a Constituição Imperial de 1824, a que prescrevia direito absoluto à propriedade. Isso não é mais tolerável no nosso país. Precisamos recordar que o Deus da Vida não é neutro e nem cúmplice de nenhuma opressão e nem discriminação. Ao criar tudo, o Deus da vida, nas ondas da evolução, criou a mãe terra para todos, não fez cerca e nem passou escritura de terra para ninguém. Como diz sensatamente o filósofo Rousseau, o mal entrou no mundo quando alguém resolveu cercar um pedaço de terra e dizer “isso é meu” e os vizinhos, de braços cruzados e resignados, aceitaram. Assim nasceu o latifúndio, a propriedade capitalista da terra, que é algo satânico e diabólico, pois no regime de agronegócio e monoculturas, mais do que commodities e acumulação de capital, os latifúndios e os grandes empresários do campo produzem desertificação do nosso território, epidemia de câncer e Alzheimer, além de expulsar o campesinato para as periferias das grandes cidades e engendrarem a violação dos direitos humanos fundamentais nas cidades. Por tudo isso, faremos o possível e o impossível para que a liminar de reintegração de posse seja suspensa e o assentamento definitivo das 450 famílias do MST aconteça na mãe terra de Ariadnópolis. Isso é o justo e pelo justo sempre lutaremos! “Nossos direitos vêm, nossos direitos vêm. Se não vêm nossos direitos, o Brasil perde também ...”
BH, 23/11/2018.
Obs.: Abaixo, vídeos que mostram Acampados do MST de Campo do Meio, do latifúndio da Ariadnópolis, trazendo um caminhão de alimentos para as ocupações da Izidora, em Belo Horizonte.
1 - MST doa um caminhão de alimento para as Ocupações do Isidoro. Apoio firme. 22/08/2014.
2 - MST e Povo das Ocupações urbanas unidos na luta por terra e moradia. 23/08/2014.
3 - MST reforçando a luta das Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória. 22/08/2014.
4 - Palavra Ética, na TVC/BH: Adolescentes das Ocupações. MST apoia ocupações da Izidora. 20/09/2014.
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Justo é assentar as 450 famílias do MST, em Campo do Meio, MG, no latifúndio da Ariadnópolis, e jamais despejar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU