24 Janeiro 2024
"A transformação da sociedade através da luta é a compreensão de que a vida humana é muito importante, portanto, a luta é uma ferramenta coletiva para justamente defender, trazer dignidade para que essa vida se mantenha e se reproduza", comenta o médico Marcos Tiaraju.
A entrevista é de Pedro Stropasolas, publicada pelo jornal Brasil De Fato, 23-01-2024.
Em entrevista ao BdF, militante lembra história da mãe, estudos em Cuba e trajetória para ser supervisor do Mais Médicos.
Em 1985, logo no primeiro ano de existência, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) fez sua primeira ocupação de terra, dando início ao método até hoje praticado e que explica como mais de 470 mil famílias estão assentadas ou acampadas por todo país.
O cenário deste marco é a Fazenda Annoni, que hoje é lar de de 423 famílias sem-terra que plantam e produzem diversos tipos de alimentos na região.
Além de ser um dos berços da articulação mais importante de reivindicação da reforma agrária no país, o local também guarda uma singularidade: é considerado o território onde nasceu a primeira criança em uma ocupação de terra do MST.
Com 39 anos, Marcos Tiaraju hoje é supervisor do Mais Médicos no Rio Grande do Sul, após ter passado seis anos estudando em Cuba.
Seu nome faz referência a Sepé Tiaraju, líder guarani que viveu na região Sul do Brasil, entre 1723 e 1756, famoso por sua coragem na luta pela terra e pela resistência aos ataques militares espanhóis e portugueses.
Com menos de dois anos de idade, Marcos Tiaraju perdeu a mãe, Roseli Seleste Nunes. A militante do MST, uma das responsáveis pela ocupação da Fazenda Annoni, foi atropelada por um caminhão durante um ato pacífico na região. Além dela, duas pessoas morreram no dia.
Apenas mais velho, já adolescente, Marcos foi saber do que havia acontecendo com sua mãe, por meio do documentário Terra Para Rose, de Tetê Moraes.
"Pensando no que sonhou minha mãe, acredito que o futuro foi muito melhor que ela podia sonhar", relata.
Em virtude dos 40 anos do MST, o Brasil de Fato conversou com Marcos Tiaraju para saber como ele enxerga o movimento atualmente e que memórias ele carrega de sua mãe.
"O movimento [Sem Terra] tem saído de simplesmente a ideia de resolver a necessidade primária do comer, dormir e vestir para ir para uma dimensão de evolução realmente humana."
Brasil de Fato: Como foi a primeira vez que você viu o documentário Terra Para Rose, como foi se deparar com essa história? Você já sabia do que havia acontecido com sua mãe?
Marcos Tiaraju: Então, imagina, eu era um moleque entrando ali na adolescência, a primeira vez que eu vi o documentário e até hoje, quando eu vejo o documentário, é uma mistura de sentimentos para ser bem realista contigo assim.
Imagine pela primeira vez, eu não tinha dimensão de como a minha mãe havia falecido, só sabia que eu não tinha mãe. Eu não tinha dimensão de toda essa representatividade dela como mulher, como militante para o movimento social.
E aí eu assisto esse documentário pela primeira vez, eu vejo e escuto uma voz que eu nunca tinha escutado, eu vejo uma imagem que eu nunca tinha visto, eu me vejo em um colo que eu não tinha lembrança.
E nesse mesmo documentário eu vejo, ao mesmo momento que eu tenho acesso a minha mãe, o documentário termina de forma trágica. Assim como eu tive acesso, eu perdi [ela] naquele momento. Então, aparece ela ai, atirada na beira estrada, deitada, morta, enfim, toda aquele caos. Então, a minha reação foi chorar.
Minha reação foi chorar, foi me indignar, ficar com raiva. A raiva sem nem entender o porquê. Medo sem nem entender o porquê, revolta sem nem entender porquê.
Dessa forma, começa a passar muita coisa na cabeça, tipo, é por causa disso que eu vivia uma vida miserável, por não ter a minha mãe que eu passei tal e tal dificuldade na minha vida, é por não ter a minha mãe que nos Dias das Mães, quando todos os coleguinhas iam fazer cartão, eu não tinha. Eu tinha uma madrasta, mas eu não tinha uma mãe pra quem fazer cartão. Mas eu não sabia porque que eu não tinha, eu só não tinha.
Então ver esse documentário, realmente, é gerar um sentimento de grandiosidade ou de orgulho num primeiro momento, por ser o Marcos Tiarajú, a criança, símbolo de vida, de esperança e tal, que naquele momento eu nem tinha compreensão suficiente para saber o que aquilo significava.
Para mim foi um choque muito grande em entender o motivo pelo qual eu cresci sem uma mãe e a forma como eu perdi essa mãe.
Sinceramente, foi algo bastante traumático, lógico depois, com o tempo, com a minha participação nas atividades, conhecendo mais o pessoal, fui já ganhando um pouco mais de compreensão. Começando a militar, participar das atividades, lendo, revendo e revendo e revendo documentários, visitando a Fazenda Annoni, visitando assentamentos, acampamentos.
Por exemplo, uma das primeiras atividades que eu fui fazer na minha militância foi visitar um acampamento, e o nome do acampamento era Roseli Nunes. Então, aí eu começo a ter a dimensão de que, "poxa, foi traumático, foi duro, a perda é difícil, mas, olha o que ela representa para tanta gente. Olha de forma que ela ajuda a dar força, a dar inspiração para tanta gente buscar uma vida melhor".
Assim, eu começo a substituir ou pelo menos a agregar – acho que substituir não seria a palavra –, mas acho que agregar ao sentimento traumático da perda essa outra dimensão de que o que havia ocorrido comigo, com a minha família, aquela vida triste, miserável, aquela vida retirada de uma forma violenta, não era um ato isolado, não era somente comigo, não era somente com a minha família. Os problemas que nós havíamos passado eles eram coletivos na nossa sociedade, não era só conosco.
Eu começo, então, a dar mais importância, e começo a sentir até mais orgulho da existência dela, da militância, da decisão que ela e meu pai tomaram de encampar a luta pela terra, de enfrentar o sistema, de buscar uma vida melhor através da organização coletiva e não simplesmente através de buscas individuais.
Começo a ver naquelas famílias de acampamentos o retrato meu mesmo e da minha família, quando tudo começou. Começo a entender que aquilo não era porque as pessoas gostavam, era porque era uma necessidade realmente, para sair da fome, para sair da miséria. Para sair da realidade de não ter onde morar, de não ter escola, de não ter comida, a saída era se organizar, era protestar, era ocupar terra.
Marcos, faz alguns anos que você é um dos supervisores do programa Mais Médicos. Como foi essa trajetória de se formar em Cuba e volta para atuar no Brasil no maior programa público já criado no país para o setor?
Depois que eu comecei a militar, acabei em uma marcha que saiu de Goiânia e foi para a Brasília. Foram 17, 18 dias de caminhada. No término, um dos companheiros vem conversar comigo, dizendo que havia aberto uma escola de medicina em Cuba,
e que a ideia da escola era formar, sei lá, acho que era um torno de 10 mil médicos num período.
E que a ideia era formar médicos pobres, médicos de países pobres, e que, portanto, não tivessem condições de estudar nos seus países e que ao se formar pudessem retornar para as suas realidades e contribuir como médicos.
Eu aceitei a ideia, fiquei seis anos e meio em Cuba, me formei como médico e voltei em setembro de 2012. Fui em 2006, voltei em setembro de 2012.
Depois participei do processo de revalidação dos diplomas, fiz o exame, e me apresentei para direção estadual do Movimento Sem Terra, do Rio Grande do Sul.
Cheguei lá e falei, "olha, vocês enviaram um militante para Cuba e agora está retornando um militante com o canudo médico, onde é que eu atuo, onde é que eu posso ajudar mais, como é que eu posso contribuir".
Veio, então, a decisão de fazermos alguns roteiros de viagem por assentamentos no estado, conversamos com alguns gestores de municípios onde havia assentamento.
Por diversas questões, foi analisado e decidido que o cenário melhor para a gente começar a trabalhar seria em Nova Santa Rita, que era uma área onde havia quatro assentamentos.
Eu começo a trabalhar como médico em Nova Santa Rita, ajudando a atender o pessoal da periferia do município e o pessoal dos assentamentos. A gente começa a participar desse processo de discussão da necessidade de levar o médico até os assentamentos, de levar instalações até os assentamentos.
Pelo compromisso da atuação profissional, eu e o outro colega que trabalhava comigo e que se formou comigo em Cuba acabamos tendo uma boa aceitação no município, acabamos nos destacando, digamos assim, e conseguimos criar uma boa relação com todo mundo.
Depois de um tempo, a gente passou a organizar o trabalho, não só nós, mas começamos a fazer a organização do trabalho e de outros colegas através de um agrupamento, como empresa médica, para poder ir agregando mais gente nessa ideia de não enxergar o SUS como um puxadinho para o pessoal. Havia muito essa cultura de enxergar o SUS como um bico, de "ah, eu trabalho no SUS por um período", mas depois vai para outra realidade, outra estratégia de trabalho.
Então a gente começou a organizar através dessa agrupação a ideia de tentar focar realmente no SUS, de enxergar como um bom espaço para trabalhar.
Essa experiência de trabalho em Nova Santa Rita foi tão boa e os gestores da volta, dos municípios da volta, se deram conta que ali havia um trabalho diferenciado e começaram a nos contatar, e essa não era a ideia inicial. Não, era a ideia inicial.
Na verdade, era trabalhar em Nova Santa Rita e desenvolver uma boa experiência ali. Mas aí outros gestores começaram a fazer contato e queriam aqueles médicos também. Então começamos a agregar mais gente ao grupo e começamos a prestar serviços médicos nesses outros municípios, seguindo os princípios do SUS.
E essa ideia foi pegando, foi tomando uma dimensão cada vez maior e hoje eu participo da coordenação desse grupo junto com alguns outros colegas. São mais de 200 médicos que trabalham conosco nesse grupo.
Hoje eu faço isso, além de trabalhar como médico em postinho de saúde, além de fazer plantão, eu participo dessa coordenação desse grupo maior.
Nós temos um número de atendimentos bastante amplo, em torno de 200 profissionais atendendo uma média de 30 pessoas por dia cada um, mais ou menos.
Eu "linko" isso com justamente o início do Movimento Sem Terra, que é uma luta pela vida. O Movimento Sem Terra sai da luta simplesmente materialista e passa a ter uma dimensão de transformação de sociedade.
A transformação da sociedade através da luta é a compreensão de que a vida humana é muito importante, portanto, a luta é uma ferramenta coletiva para justamente defender, trazer dignidade para que essa vida se mantenha e se reproduza.
Além disso, eu tenho ajudado como médico-supervisor do programa Mais Médicos, coordenando um grupo de 12 médicos, que estão espalhados em diferentes municípios do estado. Faço reuniões periódicas com esse grupo, ajudo a capacitá-los tecnicamente.
E neste aniversário de 40 anos do MST, como você enxerga o movimento hoje?
A luta do Movimento Sem Terra tem várias dimensões. Para algumas famílias, algumas pessoas, pode ser simplesmente resolver uma necessidade mais material.
Nós sabemos que isso existe, nem em todas as pessoas desperta uma luta mais política, mais ideológica, mais organizativa da sociedade, mas fazem parte, obviamente, do processo de transformação de melhoria.
Mas o Movimento Sem Terra em si, ele vai se compreendendo como um instrumento que não seria necessário somente para resolver a questão da materialidade pontual das famílias que se somam ao próprio movimento em si. Na verdade, existe uma necessidade realmente de compreender melhor o funcionamento dessa sociedade e de tornar o movimento Sem Terra um instrumento de transformação mais amplo.
Construindo uma sociedade mais justa, não só pontualmente para aqueles que têm acesso à terra e que melhoram sua vida materialmente, mas uma sociedade que permita de forma contínua construir, se renovar como melhor.
Através de lazer, cultura, conhecimento, estudos, através de uma compreensão da preservação do planeta, respeito à biodiversidade, com práticas mais sustentáveis de produção, com relações humanas mais saudáveis, mais produtivas e não excludentes.
O movimento tem saído de, simplesmente, a ideia de resolver a necessidade primária do comer, dormir e vestir para ir para uma dimensão de evolução realmente humana.
Eu acredito que é o verdadeiro marco dentro da história não só da luta pela terra, mas o marco dentro da luta humana na busca de melhorias realmente para essa vida mais ampla, mais contínua. O Movimento Sem Terra hoje é reconhecido internacionalmente como um movimento muito bem ordenado, com objetivos muito bem definidos.
Na sociedade brasileira, que é um cenário de disputa, obviamente, é amado por alguns, odiado por outros, mas isso é parte do processo de luta de classes. Isso é assim mesmo, até que a gente vá atingindo um grau de amadurecimento cada vez maior na sociedade.
Mas os objetivos que o movimento tinha lá no começo, de resolver a necessidade básica, primária, e que hoje são objetivos muito mais amplos, eles de fato apontam para que o sonho cresceu.
O sonho materializado em nome da Rose, na verdade, é um sonho coletivo. Na verdade, é um sonho de transformação de sociedade que passa, sim, pelo sonho dela e de outros companheiros através da luta pela terra, mas que que vai muito mais além disso.
Passa pela libertação através do estudo, pela preocupação com os semelhantes, com os demais, não só consigo mesmo, passa por pensar um processo de transformação de sociedade que seja mais libertadora, mais justa, mais igualitária em todas as suas dimensões.
Pensando em tudo que sonhava minha mãe, acredito que o futuro foi muito melhor que ela podia sonhar.
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Do direito à terra à luta por transformar a sociedade: Marcos Tiaraju celebra 40 anos do MST - Instituto Humanitas Unisinos - IHU