16 Abril 2024
Sociólogo especializado em questões militares pela Universidade Aberta de Israel, Yagil Levy publicou no ano passado Shooting and Not Crying: The New Militarization of Israel in the 2000s [Atirar e não chorar: a nova militarização de Israel nos anos 2000]. No livro ele analisa vários aspectos da mudança no exército e na sociedade israelenses. Dos mecanismos de negação da conduta dos soldados nos territórios ocupados à normalização da violência cotidiana. Da dependência dos militares da tecnologia à “obsessão pela dissuasão”.
Yagil Levy ilustra a ligação entre esses temas e as mudanças em curso no exército, composto cada vez mais por colonos e sionistas religiosos. La Stampa entrou em contato com ele por telefone em Tel Aviv.
A entrevista é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 11-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor Levy, você escreveu recentemente no Haaretz que “a guerra em Gaza mostra um exército israelense desintegrado”. Por quê?
Uso a palavra desintegrado porque assistimos a uma ruptura, a uma sabotagem da cadeia de comando, no sentido de que o Chefe do Estado-Maior está perdendo a sua capacidade de influenciar as forças armadas e, ao mesmo tempo, estamos assistindo a uma cada vez maior independência das tropas em nível tático. Ora, é muito claro que, em nível tático, os comandantes tenham amplo poder para interpretar as diretivas que recebem do comando supremo. O que argumento é que essa interpretação por vezes leva a uma violação ou suspensão da cadeia de comando, como foi o caso do comboio humanitário.
O que você afirma também está ligado ao ataque ao comboio do World Center Kitchen e ao assassinato dos sete operadores?
Sim, essa desagregação faz parte da cultura e da organização do próprio exército. No momento em que o exército passou a considerar os corpos como medida de sucesso dessa guerra, a abordagem rapidamente se difundiu nas mentes dos soldados e nas decisões dos comandantes em nível tático. Isto é, que sejam avaliados com base no número de palestinos – nesse caso, presumivelmente combatentes, não cidadãos, não civis – que matam, e isso levou a uma série de eventos problemáticos e a violações das regras de combate.
Vejamos o caso do World Center Kitchen: as tropas identificam um ou talvez dois homens armados que tentam escoltar o comboio. A identificação de um ou dois homens armados foi motivo suficiente para usar um drone numa modalidade muito fria: havia uma ou duas pessoas armadas juntamente com outras pessoas que não haviam sido identificadas como armadas e, apesar disso, o exército disparou contra um carro após o outro até que sete pessoas tivessem sido mortas. Chama-se de obsessão por matar, não tenho outra definição.
Durante muitos anos você estudou como as ações militares são comunicadas e percebidas como legítimas. Você defende que, nessa guerra, um dos sintomas da desintegração da cadeia de comando são algumas diretivas escritas por generais para os soldados, explicitamente vingativas contra os palestinos.
Vou dar um exemplo: o general Barak Hiram ordenou que as suas tropas explodissem uma universidade palestina em Gaza sem permissão, declarou numa entrevista no início da guerra que os líderes políticos israelenses não deveriam trabalhar para a solução política da crise. O Chefe do Estado-Maior do Exército não disse uma palavra. O general David Bar Kalifa emitiu uma diretiva de batalha manuscrita às suas tropas, convidado-as a se vingar dos palestinos, uma centena de comandantes de batalhão dos reservistas apresentaram uma petição ao Chefe do Estado-Maior pedindo-lhe que não parasse em Gaza, mas que avançasse no Líbano e na Cisjordânia até a vitória total. Além disso, assistimos à difusão de vídeos publicados nas redes sociais, nos quais comandantes exprimem as suas opiniões sobre a guerra, mas também aquelas de soldados que invocam a vingança, ou imagens em que se orgulham de atos que vão da destruição de uma mesquita até a humilhação dos palestinos. Todos esses casos divergem do código formal do Exército. Tamanho desafio público não tem precedentes.
Ou seja, podemos considerar essa conduta, e os vídeos publicados pelos soldados, como uma mensagem? Se sim, para quem?
Não há dúvida. Existem mensagens em vários níveis. O primeiro é testar de modo direto o comando supremo das forças armadas e o nível político, por exemplo quando os soldados se filmaram declarando-se contra o cessar-fogo pelos reféns, durante a primeira rodada de negociações. Ou como quando declaram que querem voltar a Gush Katif para reconstruir os assentamentos dentro de Gaza. É uma forma de testar o comando militar e político, dizendo: temos prioridades diferentes das suas e termos diferentes para definir o objetivo final dessa guerra.
O outro aspecto diz respeito à mudança do nível ético e dos valores do exército. O primeiro-ministro, como imagina, não pode falar de vingança, deve dizer que a operação visa desmantelar o Hamas para melhorar a segurança. No entanto, o sentimento de vingança está se alastrando entre as tropas, apoiado também por um papel importante dos rabinos tanto militares como civis, estamos nos deslocando das margens do discurso teocrático para o centro. As pessoas falam de vingança, não apenas como algo justo, legítimo, mas como uma ação desejada contra o Hamas. E o tom mais proeminente em relação a isso vem da esfera religiosa.
A sociedade israelense tolera a conduta do exército? Quão amplo é o consenso em torno das forças armadas?
Isso toca um ponto crucial da questão. Esta guerra está nos conduzindo para uma nova realidade sem entender exatamente como a realidade se apresentará. Não existe um plano para ‘o dia seguinte’ e existe um problema sério com a forma como a operação em Gaza é noticiada nos meios de comunicação israelenses, como é omitido o impacto que tem. É uma forma de desumanização extrema que, no entanto, não é nova. Vejo fracos e escassos sentimentos contra a guerra e acredito que muito depende da paralisia do centro-esquerda em Israel. O caminho para o dissenso hoje passa pela grande e dramática questão dos reféns. Ser hoje de esquerda em Israel significa apoiar a troca dos reféns, não parar a guerra, não deixar retornar a Autoridade Palestina a Gaza, não falar da solução de dois Estados ou qualquer outra solução política. Se um Estado não quer pensar em termos de moralidade, deve pelo menos pensar em termos pragmáticos. Hoje não estamos fazendo nenhuma das duas coisas.
Três dias após o massacre de 7 de outubro, o Ministro da Segurança Nacional, Itamar Bem Gvir distribuiu 10.000 fuzis para as equipes de “segurança civil”. Como você acha esse fenômeno evoluirá no futuro?
Desde a década de 1980 existem milícias armadas na Cisjordânia, mas nos últimos anos temos assistimos a um fortalecimento dessas milícias, a um desejo de ser mais violentos contra os palestinos e de entrar no vazio que alegavam tivesse sido criado pelo Estado, agindo de forma autônoma. Quando a guerra estourou, muitos colonos uniram-se a grupos de reservistas na Cisjordânia, para poder fazer – usando uniforme – o que queriam. O governo se move em duas direções: uma é uma espécie de privatização da guerra do exército para os civis, enfraquecendo a polícia central e as instituições do Estado. A segunda é criar uma situação em que não existam mais regras de combate, porque as pessoas agem segundo aquela que definem como autodefesa. Isso ‘alivia’ a responsabilidade do Estado entregando uma espécie de autorização aos cidadãos privados para agir. E isso, certamente, pode tornar-se problemático também para as expressões de dissenso político internas à sociedade israelense.
Como você definiria o conceito de segurança para os israelenses depois de 7 de outubro?
A melhor expressão que posso formular é que vemos uma deslegitimação retroativa de qualquer esforço feito no passado para chegar a acordos. Do ponto de vista de Israel, a segurança equivale a força militar enquanto, pelo menos no passado, a segurança era pesada com a força militar, mas era combinada com diplomacia e soluções políticas. Agora a política e a diplomacia estão totalmente subordinadas a considerações militares e, portanto, muitos israelenses não aceitam falar sobre a solução dos dois Estados, que deveria ser a única solução sobre a mesa. Tornou-se agora um conceito expulso da discussão.
Você acha que o exército ocupará Gaza?
Sim, acredito que sim.
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“O exército israelense está desintegrado. Só importa a obsessão por matar”. Entrevista com Yagil Levy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU