17 Abril 2024
"Da mesma forma que os movimentos migratórios estabelecem uma ponte de sobrevivência entre a terra de origem e a terra de destino, os agentes e lideranças que os acompanham podem empenhar-se por construir, em correspondência, uma ponte sociopastoral entre os locais de saída e os locais de chegada. Unir os dois lados da ponte através de visitas programadas, missões populares, intercâmbio de informações e de pessoal… Eis uma forma de manter e fortalecer a fé e o esforço dos migrantes na luta por uma sobrevivência justa e digna. Se os migrantes têm dificuldade de ir até a Igreja, esta deve fazer-se presente onde quer que eles estejam", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, Assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes — SPM/São Paulo, em texto preparado especialmente para o 16º Encontro Estadual das CEBs, a ser realizado nos dias 19 a 21 de abril, em São Leopoldo-RS.
Quando abordamos a condição dos migrantes, refugiados, prófugos, itinerantes, etc., emerge naturalmente a expressão “sinal dos tempos”. De fato, é nestes termos que a Doutrina Social da Igreja (DSI) se refere ao fenômeno dessa imensa “multidão dos sem pátria”, a qual, hoje mais do que nunca, erra pelas estradas de todo mundo. Sem falar dos que morrem ou simplesmente desaparecem nas águas do Mediterrâneo, nas areias do deserto ou no anonimato das fronteiras. Mas a temática, evidentemente, não é monopólio de nenhuma instituição, seja ela pública, privada ou religiosa. Trata-se, antes, de um desafio gigantesco que envolve várias instâncias das relações internacionais, do governo, da sociedade civil, das Igrejas, das organizações não governamentais, entidades, movimentos sociais, e assim por diante. Nos parágrafos que seguem, entretanto, o acento recairá sobre a ação sociopastoral e política que se desenvolve no vasto campo da mobilidade humana, de forma particular as atividades ligadas à Igreja Católica. Sem especificar em maiores detalhes, seguiremos o método ver-julgar-agir.
Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, boa parte dos estudiosos começam a falar de mudança de paradigma. Não se trata de uma época de mudanças, dizem alguns, mas de uma mudança de época. Ou, ainda, de uma mudança epocal que agita não apenas a superfície sociopolítica das águas, mas sobretudo as correntes subterrâneas da economia e dos valores culturais. A Gaudium et Spes, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje, documento aprovado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, em 1965, já nos alertava: “O gênero humano vive atualmente uma fase nova da história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra” (GS, nº 4).
Os deslocamentos humanos de massa constituem, em geral, uma espécie de termômetro que mede o grau ou a temperatura de semelhantes transformações. Tais movimentos, de fato, ao longo da história, costumam preceder ou suceder modificações de caráter estrutural, tanto de um ponto de vista socioeconômico quanto de um ponto de vista político-cultural. Formam como que as ondas aparentes de terremotos ocultos, sinais visíveis de fenômenos invisíveis. Mais de um século atrás, por ocasião das chamadas migrações históricas provocadas pela Revolução Industrial, o então Papa Leãa XIII abria a Rerum Novarum (1891), documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI) com expressões do tipo “sede de inovações” e “agitação febril” (RN, nº 1). Ambas retratam de forma vívida e significativa o vaivém dos migrantes em todas as direções.
Os números relacionados ao fenômeno migratório constituem normalmente causa de não pouca divergência entre sociólogos, demógrafos e estudiosos em geral. A razão é simples: boa parte dos imigrantes, em muitos países, encontram-se em situação irregular, o que os leva a “esconder-se para proteger-se”. Daí a dificuldade de obter estatísticas confiáveis. A Instrução Erga migrantes caritas Christi, publicada em 2004 pelo Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, afirma logo na abertura: “As migrações hodiernas constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nestas últimas décadas este fenômeno, que envolve atualmente cerca de 200 milhões de seres humanos, se transformou em realidade estrutural da sociedade contemporânea, e constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social, politico, religioso, econômico e pastoral” (EMCC, Apresentação).
Cabem duas observações. A primeira é que, dez anos depois desse documento vir à luz, em 2014, estimativas da ONU indicam que 232 milhões de pessoas vivem fora do país em que nasceram. Se a isso acrescentarmos o volume de migrantes internos e/ou temporários e dos que se movem diariamente devido ao trabalho, os números tendem a subir de forma considerável. O Conselho Norueguês para Refugiados (CNR), por outro lado, em seu último relatório oficial, publicado em 2012, avaliava em nada menos do que 45,2 milhões o número de refugiados em todo o planeta. Em poucas palavras, somando os migrantes por razões socioeconômicas, os refugiados e prófugos, os exilados e expatriados, os nômades e itinerantes, os marítimos e aeroviários… atingiremos uma cifra nada desprezível frente à população mundial.
A segunda observação refere-se ao conceito de “realidade estrutural” utilizado pelo documento. Com efeito, qualquer análise atual sobre a economia globalizada e a sociedade moderna ou pós-moderna não pode deixar de lado o fator migração, sob o risco de se tornar anacrônica. Historiadores e outros estudiosos renomados, tais como Eric Hobsbawm, Alain Touraine, Boaventura Santos, Manuel Castells, Antonio Negri, Jürgen Habermas – entre outros – dedicam longas páginas e não poucos subtítulos a esse tema da mobilidade humana. Para alguns, os deslocamentos humanos de massa se converteram, pouco a pouco, numa espécie de janela para olhar a sociedade atual e o mundo. Em outros termos, uma chave de leitura privilegiada de qualquer estudo sério e atualizado.
De onde se originam e para onde se destinam os fluxos migratórios mais expressivos? O maior número tende a deixar os países periféricos (ou subdesenvolvidos), migrando em direção aos países centrais (ou desenvolvidos). Trata-se, portanto de um movimento do sul do planeta – Ásia, África e América Latina – em busca de novas oportunidades no norte. Por outro lado, muitas pessoas ou famílias deixam os países do leste europeu, antiga “cortina de ferro” da ex-União Soviética, tentando construir o futuro nos países do oeste. O quadro geral dos deslocamentos humanos, porém, não é tão simplista, a ponto de caber nesse esquema. Ao lado dessas tendências mais significativas, milhões e milhões de pessoas se movem em todas as direções possíveis e imaginárias, de forma temporária ou definitiva.
O mesmo se repete em nível nacional e regional. De acordo com o sociólogo paraguaio Tomás Palau, “a movimentação dinâmica e plural de pessoas nos chamados ‘complexos fronteiriços’, onde se cruzam as fronteiras de dois ou mais países, constitui um dos sintomas mais expressivos da economia globalizada”. Detidos nos aeroportos por Leis de Imigração cada vez mais rígidas e selecionadoras, os trabalhadores pressionam os limites territoriais de seus países de origem, tentando a qualquer preço alcançar o outro lado. Prova disso é o que vem ocorrendo na fronteira entre México e Estados Unidos, no mar que divide o norte da África e o sul da Europa ou na tríplice fronteira da zona de Foz do Iguaçu (Brasil, Argentina e Paraguai) – só para citar alguns exemplos. Trata-se de uma “aventura” que tem deixado um rastro macabro de cadáveres insepultos, tanto nas areias do deserto e nas águas do Mediterrâneo, quanto nas trilhas tortuosas da floresta.
Convém não esquecer, também, o que se poderia chamar de migrações limítrofes. Trata-se do vaivém constante de trabalhadores que se deslocam de uma região para outra, ou de um país para outro, em busca de trabalho, quase sempre temporário. Migram para as safras agrícolas, para projetos governamentais ou para obras de construção civil. A tríplice fronteira entre Chile, Bolívia e Peru é exemplo disso. E vale sublinhar, ainda, o drama dos “desplazados” pela violência em suas mais distintas formas, como é o caso de milhares e milhares de colombianos pressionados entre dois fogos, a guerrilha e o exército. No primeiro caso temos uma migração de resistência: sair temporariamente para não fazê-lo em definitivo; no segundo, uma fuga para os centros urbanos ou para outros países vizinhos.
Mais importante que números, tabelas e estatísticas, entretanto, é a realidade de pessoas, com seus nomes, rostos, histórias e destinos. A mobilidade humana reúne trabalhadores individuais e famílias inteiras, homens e mulheres, jovens e crianças – todos simultaneamente em fuga e em busca. Fuga da pobreza, da miséria e da fome; da violência e dos conflitos armados; da discriminação, do preconceito e da perseguição politica, ideológica ou religiosa… Busca de um solo que os acolha como cidadãos e que possa ser chamado de pátria.
Três adjetivos poderiam ser usados para classificar as migrações contemporâneas. Elas são, ao mesmo tempo, mais intensas, mais complexas e mais diversificadas. Mais intensas que os movimentos de tempos passados. Como já vimos, cresce progressivamente o número de pessoas que se deslocam sobre a face do planeta. Importância decisiva aqui teve a revolução dos transportes e das comunicações. O historiador Peter Gay elegeu o trem e o movimento como duas grandes metáforas do século XIX, com enormes deslocamentos transatlânticos. Segundo ele, entre 1820 e 1920, nada menos do que 62 milhões de pessoas teriam deixado o velho continente europeu em direção às terras novas das Américas, da Austrália e da Nova Zelândia. Que dizer então dos dias atuais!
As migrações são também mais complexas. Em épocas passadas, as pessoas arrancavam as próprias raízes da terra que lhes tinha visto nascer e crescer e onde haviam enterrado seus antepassados. Mas o faziam, em geral, para transplantá-las para outro lugar e aí voltar a enraizar-se como colonos. A origem e o destino dos fluxos migratórios encontravam-se mais ou menos previstos, determinados. Hoje a tendência é uma migração que se repete, constituída de várias etapas, às vezes sem chegar a aprofundar as raízes em nenhum lugar. Uma espécie de vaivém sem fim, com horizontes e perspectivas diversificados. Os movimentos migratórios tendem a navegar conforme o fluxo e refluxo das ondas criadas pela economia globalizada. Um verdadeiro “exército de reserva” que não mora, acampa – como já denunciava o velho Karl Marx. Deslocam-se ao sabor dos ventos e de novas oportunidades de emprego ou subemprego. Movimento circular, pendular – afirmam alguns!
Por fim as migrações são mais diversificadas. Novas pessoas, raças, povos e nações passam a fazer parte do contingente de migrantes. O pluralismo cultural e religioso da sociedade contemporânea também se reproduz nas distintas faces dos migrantes. Em algumas cidades como Nova York, Roma, São Paulo, Paris ou Londres – entre as mais cosmopolitas – os moradores praticamente tropeçam diariamente com “os mil rostos do outro”, além de poderem entrar em contato com diferentes idiomas, bandeiras e costumes. Difícil hoje, se não impossível, encontrar um país que de alguma forma não esteja envolvido com o fenômeno das migrações. Uns como lugares de origem, outros como lugares de destino e outros ainda como lugares de trânsito, sem falar de alguns que podem, ao mesmo tempo, representar as três funções, como é o caso do México e Guatemala, de Portugal, Itália ou Turquia.
Não basta, porém, a fotografia. Qualquer médico que se preze, se realmente pretende curar o paciente, deve tratar de conhecer as causas mais profundas da enfermidade. Conhecer o mal pela raiz é conditio sine qua non para receitar o remédio apropriado. O mesmo vale para o fenômeno das migrações. Em grande parte dos casos, estamos diante de deslocamentos compulsórios, forçados, os quais podem ser evitados com políticas adequadas, quer nos países de origem, quer nos países de trânsito e destino. Numa palavra, constituem males que podem ser corrigidos nas relações nacionais e internacionais.
Disso resulta a necessidade de tirar uma radiografia da mobilidade humana. Somente esta pode romper com as aparências às vezes enganosas. E resulta também a relevância de ouvir as histórias de cada migrante, conhecer os diversos valores de cada cultura, bem como acompanhar os estudos mais aprofundados sobre a realidade das migrações. A radiografia revela não apenas a pele, mas os ossos, os ógãos interiores e o coração. Com isso, como veremos, pode-se desenvolver uma pastoral mais eficaz.
Perguntemos a qualquer migrante: por que você deixou a sua terra natal e migrou para outra região ou outro país? O que o levou a dar um passo tão arriscado e às vezes sem retorno? As respostas podem ser as mais diversas. Alguns dirão que tinham o desejo de conhecer outros lugares, outros poderão referir-se um um período de seca prolongada ou a uma forte inundação; outros ainda mostrarão as cicatrizes de conflitos armados ou se lembrarão com pesar dos familiares que pereceram vítimas da violência. Muitos dirão simplesmente que decidiram seguir o caminho de um parente ou amigo que os precedeu; depois, eles mesmos chamaram seus conhecidos e dessa forma vai se recompondo a rede familiar.
Um grupo considerável sai em razão da saúde, buscando lugares onde o atendimento é melhor, mais rápido e dispõe de equipamentos modernos; não poucos jovens, de ambos os sexos, após o estudo elementar e secundário, procuram lugares onde podem continuar com os estudos superiores, com vistas à profissionalização e emprego. Mas as expressões “trabalho”, “futuro mais promissor” e “vida melhor” praticamente aparecerão em todas as respostas. Também tem sido comum falar de “hemorragia de cérebros” ou “fuga de talentos”. Neste tipo de visão vêm à tona, com toda a naturalidade, os chamados fatores de expulsão e de atração. Mas a primeira resposta do migrante e a primeira impressão de quem o ouve podem ser enganosas. As motivações imediatas costumam esconder causas mais profundas. Aqui também a fotografia carece de uma radiografia.
Em grande parte dos fluxos migratórios, o contexto socioeconômico de origem é marcado por um dupla contradição. De um lado, ilhas de riqueza num oceano de pobreza e miséria, onde convivem lado a lado a concentração de renda e a exclusão social. A linha que divide o Primeiro e o Terceiro Mundo, na verdade, passa pelo interior de cada país e até mesmo de cada região. De outro, desde o início da década de 1970, assiste-se a uma crise prolongada e estrutural do sistema capitalista de produção que faz aumentar o movimento circular de imensas massas humanas em todo mundo. A crise se abate, em primeiro lugar, sobre as pessoas mais vulneráveis, e estas se vêm forçadas a buscar em terras distantes melhores oportunidades de vida, no rastro mesmo do acúmulo de capital.
Tomemos o exemplo dos que responsabilizam uma longa estiagem pela saída da terra natal. Em princípio, a resposta não é incorreta, e sim incompleta. Se é verdade que a falta prolongada de chuvas faz as pessoas deixarem a própria região ou país, é igualmente certo que ela, por si só, não determina o êxodo em massa. A seca não faz mais do que marcar a hora da partida, mas por trás desse flagelo existe uma estrutura agrária e agrícola que desde longa data priva as pessoas de qualquer tipo de defesa. Isso se comprova pelo fato de que os grandes latifundiários, com ou sem chuva, permanecem aí. O que expulsa, portanto, não é a seca, mas a cerca! Ou seja, as condições injustas e desiguais da propriedade e posse da terra.
Vale o mesmo para outros tipos de respostas simples ou de análises a olho nu. No pano de fundo da mobilidade humana em geral, a visão imediatista, superficial ou simplesmente conjuntural muitas vezes oculta as causas mais profundas e estruturais. Na imensa maioria dos casos, prevalecem como raiz da migração uma situação social e econômica adversa à permanência no local de origem. Falta de trabalho e salário decente, precariedade no sistema público de saúde e educação, relações trabalhistas análogas à escravidão, cultura patriarcal em que a mulher é totalmente submissa ao poder masculino, exploração do trabalho infantil (sem confundir com a iniciação sadia das crianças a determinados serviços por parte de algumas famílias) – constituem alguns exemplos de tal situação.
Em certos países e regiões, tratam-se de verdadeiros resíduos medievais em pleno século XXI. Nisto o capitalismo revela uma de suas faces ocultas mais flagrantes e perversas: paradoxal e contraditoriamente, com a contínua revolução tecnológica, coexistem por um lado os implementos de tecnologia mais avançada, de ponta, e por outro formas de trabalho há tempo execradas e banidas pela luta sindical ao longo da história. Como afirma o sociólogo José de Souza Martins, podem conviver lado a lado formas não capitalistas dentro de um sistema capitalista de produção.
Outras causas dos deslocamentos de massa estão relacionadas, como vimos acima, com a perseguição política, ideológica ou religiosa que obriga à fuga; com formas de preconceito, xenofobia e discriminação étnica ou de credo; com os conflitos armados dentro de um mesmo país (p.ex. Líbano) ou entre dois Estados diferentes e beligerantes (p.ex. Israel e Palestina, Rússia e Ucrânia); com os confrontos entre facções rebeldes e as forças do exército (p.ex. Colômbia); com a violência em todas as suas formas, particularmente o tráfico de seres humanos provocado pelo crime organizado; com a disputa pelo controle do tráfico de drogas e armas (p.ex. México, Colômbia e Brasil); com o trabalho temporário, o qual, no decorrer dos anos pode levar a uma migração definitiva.
Existem três maneiras de ler o fenômeno das migrações à luz da Palavra de Deus. A primeira se reduz a tomar um episódio bíblico ou um determinado livro – respectivamente os Discípulos de Emaús ou o Livro de Rute – e a partir dessa aproximação busca aprofundar o tema. A segunda toma textos bíblicos que se relacionam à temática migratória, costurando com eles uma reflexão de caráter teológico, espiritual ou pastoral. A terceira, por fim, trata de ler toda a Palavra de Deus na perspectiva da mobilidade humana, com o enfoque de uma teologia ou espiritualidade do caminho. Sem desconsiderar as demais vias, seguiremos esta última, tomando apenas alguns textos paradigmáticos, do Antigo Testamento e outro do Novo Testamento, para ilustrar essa experiência de um povo a caminho.
Com relação à antiga aliança podemos focalizar o olhar sobre o que os especialistas chamam de “credo histórico” do Povo de Israel: Dt 26, 5-10, em sua versão mais elaborada e Ex 3, 7-10, numa versão mais primitiva. Trata-se, como se sabe, da experiência que ajudou a fundar o próprio Israel enquanto Povo de Deus. Confrontando as duas versões, encontraremos quarto verbos na primeira pessoa do singular, todos atribuídos a Deus, que nos apontam para um fio condutor que haverá de permear toda a Bíblia. Diz Javé: eu vi a aflição do meu povo no Egito, eu ouvi seu clamor sob o peso da escravidão, eu conheço seu sofrimento e eu desci para libertá-lo e o conduzir a uma terra onde corre leite e mel.
As quatro formas verbais – vi, ouvi, conheço e desci – denotam que, por ocasião de sua “experiência fundante”, os israelitas desenvolveram a teologia e a espiritualidade de um Deus que não somente está atento à situação concreta do povo na terra da escravidão, mas sobretudo desce para acompanhá-lo nos caminhos do êxodo e do deserto; mais tarde, do exílio e da diáspora. Esse ato de descer se realizará plenamente com o mistério da encarnação. Aqui o importante é sublinhar a sensibilidade e solidariedade de um Deus próximo e que, frente à opressão do Faraó, toma partido em favor dos sofredores e humilhados. Numa palavra, um Deus que privilegia os pobres, não pelo simples fato de serem pobres nem por serem necessariamente “bons”, e sim porque são vítimas de circunstâncias históricas adversas.
O movimento profético, por sua vez, não faz senão atualizar essa mesma teologia e espiritualidade para os tempos conturbados da monarquia e do exílio. O binômio da aliança – libertação e promessa – se reveste de novo vigor. Daí seu tríplice enfoque do profetismo: a lembrança de que “foste escravo no Egito” e por isso agora não deves oprimir nem o estrangeiro que mora contigo e muito menos teu próprio irmão; a denúncia frente às diversas formas de opressão, pois “vós chefes de Israel esqueceram o direito e a justiça, trituram os ossos do meu povo, fazendo dele carne de panela”, dirá o profeta Miquéias (Mq 3, 1-2); enfim, o anúncio, que aparece como o respiro de um povo oprimido, esperando a promessa da Jerusalém Celeste, de “um novo céu e uma nova terra” (Is 65, 17-25).
Quanto aos textos neotestamentários, podemos deter-nos sobre dois textos de relevância fundamental. De um lado, logo na abertura de seu Ministério Público, o profeta itinerante de Nazaré (John P. Meier) toma o Livro de Isaías para anunciar aquilo que se convencionou chamar o “programa de Jesus” (Lc 4, 16-20; Is 61, 1-2). Revela-se desde o início sua predileção pelos oprimidos, escravos, prisioneiros e pobres, o que retoma em outros termos a expressão “órfão, viúva e estrangeiro” do AT. No coração do Mestre estão mergulhadas as raízes da “opção preferencial pelos pobres”, pois aí encontrarão carinho especial os marginalizados, indefesos, excluídos e migrantes – “eu era migrante e vocês me acolheram” (Mt 25,35).
De outro lado, o evangelista Mateus costuma interromper a narrativa para introduzir pequenos resumos, como a sublinhar algo que não pode ser esquecido. “Jesus percorria todas as cidades e povoados…”, diz o texto. E prossegue: “Vendo as multidões cansadas e abatidas, teve compaixão porque eram como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 35-38). Duas observações: primeiro, chamar a atenção para o verbo “percorrer”, o qual, por si só, demonstrando a prática pastoral de Jesus, poderia servir para um bom retiro de conversão. Ele não se limita a esperar pelas pessoas no templo (ou na porta da Igreja), mas vai ao encontro dos peregrinos; segundo, entre tais “multidões cansadas e abatidas”, cabe um destaque particular para o volume de migrantes que erram pelas estradas de todo o planeta, muitas vezes órfãos, sós e perdidos.
Quem muito caminha aprende a depurar não somente a bagagem, mas também a alma. Toda a longa travessia ensina a deixar de lado o que é supérfluo e ater-se ao que é essencial. O ato de migrar e remigrar ajuda a discernir o que é indispensável do que é negociável. O caminho, principalmente quando o vaivém se repete uma, duas, três ou mais vezes, traz como lição a sabedoria de despojar-se do que pesa e retarda os passos, para concentrar-se no foco, na meta, no horizonte da própria existência humana. Numa palavra, os pés do peregrino desenvolvem uma mística singular, no sentido de relativizar “as muitas coisas” para absolutizar “uma só coisa” que é a mais importante, como vemos no episódio que narra o encontro de Jesus na casa de Marta e Maria (Lc 10, 38-42). Além disso, de acordo com o cor inquietum de Santo Agostinho, o migrante representa a condição de todo ser humano, peregrino na face da terra, em busca da pátria definitiva.
De acordo com a Doutrina Social da Igreja (DSI), no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo. Ao deslocar-se de um lado para outro, os migrantes são portadores de tais sementes. Lembrando o Bem-aventurado J. B. Scalabrini – “pai e apóstolo dos migrantes” – da mesma forma que as aves e os ventos transmitem o pólen que fecunda a vida, assim também os viajantes de tantas estradas levam consigo expressões e valores que fecundam a tradição cultural de outros povos. Nisso, a migração não deixa de ser um instrumento de evangelização que tende a promover uma depuração e purificação recíproca e permanente das culturas, como nos recorda o Documento de Aparecida. Além disso, o migrante jamais pode ser considerado apenas como vítima de exploração no mercado de trabalho. Se é verdade que, por um lado, ele normalmente é forte candidato aos serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados, também é certo que, por outro lado, sua teimosia indômita e imbatível faz dele um protagonista e um profeta do futuro. Por caminhos inóspitos e hostis, ou “por mares nunca dantes navegados” – na expressão do poeta português Camões – o olhar voltado para Deus costuma ser o farol da “frágil embarcação” de todo migrante.
Nessa perspectiva, a fé e a esperança do povo migrante costuma ser uma luz que aponta novos horizontes para a história, seja ela pessoal, familiar ou coletiva. Em sua bagagem, por mais pobre e exígua que seja, raramente falta algum símbolo da religião de seus ancestrais, e muitas vezes a Bíblia (ou o Corão, para os muçulmanos). Assim que, o ato de migrar, por si só, põe em marcha não somente as expectativas do migrante e sua família, mas também a própria história. Enquanto, por uma parte, o deslocamento compulsório denuncia na origem a incapacidade de muitas nações em conceder uma cidadania digna a seus compatriotas, por outra, no trânsito e no destino anuncia a necessidade de mudanças urgentes e estruturais nas relações nacionais, regionais e internacionais. Em síntese, não seria exagero afirmar que a frase de Martin Luther King – I have a dream (eu tenho um sonho) – constitui uma força motriz na vida do migrante. Parafraseando Euclides da Cunha, “o migrante é antes de tudo um forte”.
Após uma rápida visão da realidade migratória (Partes I e II), seguida de alguns elementos bíblico-teológicos-pastorais de luz e orientação (Parte III), o objetivo desta última parte é o de apontar pistas de ação sociopastoral e política. Mais do que “inventar a roda”, procuramos concentrar a atenção sobre determinadas atividades que, em sua maioria, já estão em curso na Igreja em geral e na Pastoral dos Migrantes em particular.
A acolhida constitui o DNA da Pastoral dos Migrantes. Trata-se de abrir o coração, as portas e os espaços eclesiais e culturais para “o outro, o estrangeiro, o diferente”. Em termos concretos, acolher significa, antes de tudo, promover uma assistência imediata a quem chega a um novo lugar. Tal assistência, caso a caso, comporta a preocupação com as dimensões pessoal, familiar, social, jurídica, educacional, sanitaria, psicológica… Daí a existência de uma rede de Casas do Migrante, espalhadas tanto nas fronteiras (entre México e Estados Unidos, entre México e Guatemala ou entre Chile, Bolívia e Peru), quanto em algumas metrópoles de grande afluência de migrantes (São Paulo, Santiago, Manaus). Desnecessário acrescentar que, não raro, torna-se de fundamental importância o ensino da língua local.
A acolhida vem acompanhada de um longo processo de regularização dos documentos. Sem estes, todas as portas se fecham, a começar pelo acesso a um emprego decente e com carteira assinada. O trabalho, por sua vez, reabre uma série de oportunidades. Também neste caso, os migrantes podem contar com uma rede de Centros de Acolhida e de Orientação, providos de assistentes sociais, advogados e outros profissionais que podem ajudar a inserir-se e integrar-se mais rapidamente na sociedade de destino. É conhecida e notória a forma grosseira com que muitas autoridades da Polícia Federal tratam os recém-chegados. Sem dúvida, a presença de um profissional infunde-lhes maior confiança.
O empenho pela defesa dos Direitos Humanos em geral, e dos direitos dos migrantes em particular, constitui uma das características da ação sociopastoral junto ao mundo da mobilidade humana. Boa parte dos imigrantes permanecem por meses, anos, e até décadas (quando não a vida inteira) na precária situação de indocumentados – “sin papiers” ou “sin papeles”. Nessa condição irregular, tornam-se vulneráveis a todo tipo de exploração trabalhista ou sexual e, além disso, presa fácil para a rede mundial do crime organizado.
Sabemos bem qual o peso da palavra “clandestinos” em sociedades como Estados Unidos, Europa, Austrália, Japão, entre outras. Traduz-se concretamente como insegurança, instabilidade, medo e, no fim da linha, processo de repatriação. Infelizmente, no trato com os imigrantes desprovidos de documentação regular, o mesmo ocorre nos países subdesenvolvidos ou emergentes. De tudo isso resulta a necessidade de contar com proteção jurídica para a conquista e/ou defesa dos direitos à vida e à dignidade humana.
De um ponto de vista estritamente pastoral, nas paróquias de acolhida faz-se necessário resgatar e promover os valores culturais e religiosos dos migrantes. Não é difícil abrir espaço para encontros multiculturais ou pluriétnicos, tais como festa do padroeiro, festa das nações, e assim por diante. Aqui, porém, esconde-se uma ambiguidade que, com frequência, comporta uma armadilha capaz de confundir os incautos. De um lado, o cultivo da lingua original, das expressões culturais e religiosas ajuda a cimentar e manter a coesão do grupo étnico, sobretudo em casos de discriminação, preconceito e hostilidade; de outro lado, contudo, nesse processo de resgate cultural reside o risco de criar guetos cerrados, dificultando assim uma integração natural e mais rápida. Em termos metafóricos, os anjos da tradição religiosa podem converter-se em demônios, promotores de divisão e isolamento. O desafio é encontrar o equilíbrio entre o respeito às diferentes etnias e a integração progressiva na sociedade de chegada.
Resgatar e promover os valores inerentes a cada pessoa, povo e cultura requer, como dimensão primordial, um espaço privilegiado para a história individual e coletiva. Nessa linha, os encontros de migrantes por etnia costumam ser extremamente reveladores. Parte-se do pressuposto que a migração constitui um golpe que deixa feridas, algumas jamais cicatrizadas. Arrancar as raízes e expô-las ao sol escaldante do caminho tem consequências inevitáveis. Normalmente sofre quem parte e sofre quem permanece na terra de origem. Narrar a própria história – como nos ensina a psicologia – é uma forma de exorcizar as sombras que obscurecem seu percurso. Verbalizar o sofrimento ajuda a libertar-se do peso que herdamos do passado. Vale o mesmo para a história do grupo como um todo. Trata-se de promover tempo e espaço para que os próprios migrantes, ao cruzar seus caminhos, possam intercambiar experiências e, com isso, enriquecer-se mutuamente.
Da mesma forma que os movimentos migratórios estabelecem uma ponte de sobrevivência entre a terra de origem e a terra de destino, os agentes e lideranças que os acompanham podem empenhar-se por construir, em correspondência, uma ponte sociopastoral entre os locais de saída e os locais de chegada. Unir os dois lados da ponte através de visitas programadas, missões populares, intercâmbio de informações e de pessoal… Eis uma forma de manter e fortalecer a fé e o esforço dos migrantes na luta por uma sobrevivência justa e digna. Se os migrantes têm dificuldade de ir até a Igreja, esta deve fazer-se presente onde quer que eles estejam.
Essa presença da Igreja, simultaneamente no polo de origem e no polo de destino, não é novidade dos tempos atuais. Com efeito, no final do século XIX, Dom J. B. Scalabrini fundou dois institutos religiosos (masculino e feminino) e um instituto leigo para acompanhar os emigrantes italianos, tanto na própria diocese de Piacenza e demais regiões da Itália, quanto do outro lado do oceano: Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, entre outros países. Tratava-se, como ele mesmo afirmava, de levar-lhes “o sorriso da pátria e o conforto da fé”. “Para os migrantes” – dizia ainda – “a pátria é a terra que lhes dá o pão”, concluindo que “a migração amplia o conceito de pátria”.
Com a finalidade de desenvolver a um trabalho mais eficaz e de maior incidência sociopolítica, torna-se necessário manter uma leitura científica e atualizada do fenômeno da mobilidade humana. Nasceram assim os Centros de Estudos Migratórios, hoje espalhados pela Europa, Ásia, África, América do Norte e América do Sul. Em colaboração e sinergia com outras entidades acadêmicas, realizam pesquisas, estudos, conferências, encontros, cursos e seminários no sentido de envolver o maior número de pessoas, como também de sensibilizar a Igreja, a sociedade civil e as autoridades dos governos para o drama das migrações. Evidente que semelhante leitura aprofundada dos fluxos e tendências, causas e consequências da migração mantém-se estritamente conectada com os itens anteriores. Ela ajuda não somente a incrementar as atividades pastorais, sociais e políticas, mas também incide sobre as mudanças necessárias para novas Leis de Imigração.
Vale a esse respeito sublinhar a realização do Fórum Internacional de Migração e Paz. Em sua 5ª edição (Antigua, Bogotá, Cidade do México, New York e Berlim), o Fórum tem mantido um duplo objetivo: por um lado, desvincular o conceito de migração do pano de fundo da ideologia de segurança nacional e do crime organizado, enfatizando antes suas potencialidades para a busca da paz; por outro, envolver autoridades políticas, expoentes acadêmicos e outras personalidades, na tentativa de maior incidência sociopolítica em favor dos direitos dos migrantes.
16º Encontro Estadual das CEBs (Arte: Luis Henrique Alves)
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Migrações e Pastoral dos Migrantes. Artigo de Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU