16 Abril 2024
Vivemos um tempo de mal-estar generalizado. Paradoxalmente, o mesmo sistema que o provoca nos oferece os remédios. No entanto, estes anestésicos ou alívios imediatos prometidos nos impedem de formular as perguntas necessárias para mudar desde a raiz as condições de vida daninhas. Como sair desta espiral catastrófica?
Em Capitalismo libidinal (Ned Ediciones, 2024), Amador Fernández-Savater nos propõe, de forma machadiana, trilhar um novo caminho para estar no mundo de uma forma diferente, reapropriando o nosso próprio mal-estar como energia de mudança e transformação. Chama este caminho de “políticas do desejo”.
Spinoza dizia que a essência do ser humano é desejar, o que chamava de apetites naturais. Contudo, quando essas necessidades biológicas se tornam desejos socialmente construídos, e que demandam algo que não precisamos, tornam-se capitalismo.
Capitalismo libidinal é uma peça que se configura, por um lado, pelas leituras e reinterpretações daquele Lyotard que escreveu Economia libidinal, em 1974, de Marcuse e de Franco Berardi, bem como pelas conversas, incluídas no livro, com Christian Laval, Pierre Dardot, Yayo Herrero, Jorge Alemán e Achille Mbembe.
Um puzzle bem montado que aborda temas como a ascensão da extrema-direita, o ensimesmamento de certa esquerda e a esperança depositada em que políticas do desejo, como o 15M e os feminismos, nos abram para novas sensibilidades redentoras.
A entrevista é de Paco Cano, publicada por CTXT, 07-04-2024. A tradução é do Cepat.
O que é esse capitalismo libidinal que você aborda?
A economia libidinal é, antes de tudo, uma pergunta sobre a relação entre capitalismo e desejo. O desejo é o motor do humano, para além da sexualidade, e o capitalismo extrai a sua força daquilo que consegue engatar nele. Portanto, não há mudança possível sem desengatá-lo. A libido, hoje, está captada e capturada por objetos-mercadoria, as experiências esboçadas pelo mercado, os sinais de prestígio.
O capitalismo não é mais fundamentalmente repressivo, como conseguiu ser no passado recente, mas também incitador e sedutor, otimizador e maximizador. A pressão pelo desempenho e a competitividade substitui a repressão e leva à depressão.
Entendo que todas as políticas têm essa dimensão desejante. De fato, também existem políticas do desejo de esquerda, certo?
Sim, o problema é que, em geral, a esquerda fez e faz uma ideia muito ilustrada da política. A política é entendida como pedagogia, como crítica, como contrainformação, como desvelamento da verdade. Aqueles que sabem ensinam aos oprimidos o que não sabem, permitindo-lhes uma tomada de consciência.
Contudo, o ser humano não vive apenas na esfera da consciência e da vontade, da identidade e do interesse de classe, mas também possui um inconsciente onde as pulsões e os desejos atuam. A tomada de consciência sem uma tomada do desejo não nos leva muito longe. Podemos saber tudo – que o sistema capitalista é injusto, que tritura nossas vidas e explora a terra – e, no entanto, isto não nos levar a qualquer ação. É um saber desconectado do corpo, uma espécie de lucidez impotente.
As “batalhas culturais” visam mudar a opinião das pessoas, mas somos muito mais do que as nossas opiniões. É preciso tocar algo do desejo, fixar no desejo, suscitar a tomada do desejo, o desejo entendido como força de mudança e motor de transformação. As ideias que não tocam os corpos deixam o mundo igual.
Seria o caso de separar o desejo da necessidade e, portanto, políticas libidinais de políticas materialistas? Ou seja, a fome e a necessidade levam a uma política materialista, ao passo que o desejo de comer leva a uma política libidinal.
Poderíamos distingui-las, sem opô-las. As políticas em torno da necessidade têm a ver com o que historicamente tem sido chamado de economia política. Há precariedade, há falta de moradia, há desigualdade, há falta de direitos. Tudo isso, digamos, constrói uma sociedade explorada e desigual, o que causa efeitos nos corpos, na saúde e no bem-estar.
A economia libidinal propõe acrescentar uma camada a mais de análise. A pergunta pelo desejo é a pergunta pela relação com o mundo. Qual é o sentido da existência? Como experimentamos a vida? O que nos faz vibrar? Quais são as nossas imagens de felicidade? Somos vítimas no plano da economia política, mas cúmplices no da economia libidinal. Como subtrair a libido do capital, parar de vibrar aí?
Hoje, a esquerda propõe medidas de regulação no âmbito da economia política, ainda que sem chegar a modificar as estruturas profundas do salário e da especulação. Contudo, nem sequer se coloca a intervenção no plano libidinal.
É possível dizer que o neoliberalismo extremo fez com que o desejo seja o próprio desejo, o fato de desejar?
Quando pensamos no desejo como uma pergunta e invenção singular, podemos dizer que em nossa sociedade há muito pouco desejo e muita obediência. Muita identificação e internalização dos mandatos capitalistas: desempenho, competitividade, visibilidade, consumo. Muito desejo mimético: desejar o que o outro tem e o que o outro é. O desejo, pensado em sentido forte, é uma espécie de viagem ou deslocamento singular, a construção de algo que ainda não existe, que ainda não sabemos.
Podemos defini-lo, de forma machadiana, como esse caminho que se faz ao caminhar. Um novo caminho, a invenção de modos singulares de ser e estar, de fazer e pensar, de falar e olhar. O capitalismo libidinal coloca uma resposta onde deveria haver uma pergunta e uma criação. Propõe uma oferta infinita de objetos-mercadoria que bloqueia a construção necessária do desejo. O desejável (já dado) obtura o desejo (por inventar).
Não nos fazermos perguntas e o capitalismo pensar por nós levam a uma existência inautêntica. A partir daí, chegamos ao que você chama de transbordamento, tanto psicológico quanto social e climático. Estamos cansados, estamos esgotados, não temos tempo, há distanciamento em relação aos representantes, instituições básicas como a saúde e a educação públicas estão saturadas, sofremos uma emergência climática, seca... Um transbordamento que leva a uma situação insustentável que gera mal-estar. Vivemos na sociedade do mal-estar. É possível lutar contra esse transbordamento ou seria melhor assumir o mal-estar para transformá-lo em algo construtivo?
Penso que você observou muito bem. Enquanto o desejo não é próprio, vem de “outro”, da sociedade e de seus mandatos, ficamos necessariamente instalados na insatisfação. Nada é suficiente, nunca estou à altura, vivo sempre em déficit... É algo terrível, levamos uma existência desgraçada, não pelas coisas que nos acontecem, mas por definição.
Essa insatisfação faz de nós sujeitos devoradores: devoramos pessoas, processos e relações como forma de compensação de uma vida sem desejo próprio. Santiago Alba Rico explica isto muito bem quando fala da “fome” que atravessa a nossa sociedade, hoje...
Mais do que fome, temos vontade de comer, de consumir compulsivamente.
Exato, a fome pode ser satisfeita e saciada, disto que falamos não. O mal-estar se deve a essa ausência de desejo próprio. Esse mal-estar não precisa ser erradicado, mas, sim, interrogado. É um sinal de alarme. O que está acontecendo aqui? Por que mesmo que eu tenha uma vida bem-sucedida, de acordo com o estabelecido, existe um mal-estar de fundo que nunca desaparece?
O mal-estar é, em primeiro lugar, uma pergunta sobre o que não vai bem, o que não se encaixa, o que dói. Se não o anestesiamos com comprimidos e terapias, se não delegamos sua interpretação a outros, podemos nos reapropriarmos dele como força de interrogação e energia de mudança. Não só de mudança pessoal, mas também social e coletiva. Inventar, juntos, outras formas de relação com o mundo. Um novo desejo de vida, base possível para um novo projeto político.
O capitalismo libidinal constituiu um exército para evitar as perguntas e as transformações necessárias, um “exército emocional” que é a nova ultradireita. Como é essa ultradireita e como combater a esse exército?
Eu acredito que boa parte da força da nova direita, em termos libidinais, está em propor às pessoas a seguinte ideia: não há nada a mudar, não há nada a se perguntar, o mundo está bem como está. Só há muitos imigrantes, muitas pessoas trans, muitas mulheres feministas, muitos esquerdistas, muitos separatistas, mas quando acabarmos com tudo isso, voltaremos à normalidade, à ordem, à grandeza, à prosperidade. Este é o conteúdo libidinal do chamado “negacionismo” de direita no que diz respeito à mudança climática, à violência contra as mulheres, à desigualdade social, à memória histórica.
Freud constatava, no final da vida, que muitos de seus pacientes não queriam ser curados. Porque curar significava empreender um caminho de transformação que os aterrorizava. Preferiam se instalar no vitimismo, ainda que sofressem, e jogar a culpa nos outros: no pai, na mãe, no vizinho, em quem quer que fosse. Algo semelhante acontece a nível social e coletivo.
A nova direita apela a uma subjetividade vitimista que se relaciona com o mal-estar, não com uma pergunta e um desafio, mas como o dano que algum agente malvado exerce sobre nós. A direita tem hoje muita força, não só por seus meios de comunicação e sua ideologia, mas porque fala a partir dessa posição libidinal. Emite uma mensagem que entra em ressonância com um corpo que se nega a mudar.
Esse medo só pode ser dissolvido a partir de outras politizações, que assumam e deem forma ao mal-estar sem buscar bodes expiatórios, que entrem para disputar o mal-estar a partir de outras interpretações e elaborações. É o caso do 15M, da PAH [Plataforma de Afetados pela Hipoteca], do feminismo: revoluções culturais que tocam o desejo, em oposição à contrarrevolução preventiva da extrema-direita.
Seu livro visibiliza a situação perversa que temos considerado válida como modo de vida, mas também levanta a possibilidade de ir abrindo novos caminhos para construir políticas do desejo emancipadoras, a partir das propostas de Lyotard, Marcuse e Franco Berardi (Bifo), revisadas por você para um contexto mais atual, sobretudo no caso das duas primeiras.
As políticas do desejo que penso com estes três autores podem encontrar uma imagem comum e atual nos comportamentos de deserção. O que é a deserção? É o desengate da roda do hamster, da armadilha que o capital nos arma ao nos oferecer a sua roda de desejos sem fim como substituição ao desafio de criar desejos, mais próprios e singulares, portanto, mais satisfatórios.
A deserção toca a todos os gestos de “sair” do mundo, de uma relação com o mundo em termos de desempenho e competitividade, de produção e luta pela visibilidade, uma relação com o mundo que provoca danos, produz ansiedade e depressão. Essa deserção, esse sair do mundo, é um sintoma difuso. Esconde-se atrás da atual epidemia de cansaço e depressão, atrás das decisões de deixar o trabalho ou de ir viver em outro lugar.
Embora nos anos 1960 esse sair do mundo assumiu uma forma claramente coletiva e política, nas comunas, nas contraculturas, nas mil e uma experimentações em companhia, hoje, não é assim. São decisões muito mais pessoais, tentativas de fazer com que a vida doa um pouco menos, de viver de forma diferente sem chegar a mudar o princípio da realidade capitalista. A deserção no momento é um sintoma, seria o momento de passar do sintoma à politização.
É possível construir a partir daí, a partir desses sintomas e mal-estares, um deslocamento coletivo de sentido, outra relação com o mundo, não mais a partir da produtividade que estressa os corpos, em primeiro lugar, o corpo da terra, mas a partir da escuta, da acolhida e da receptividade como valores, nesse cuidado com a vida que o feminismo colocou no centro? Só assim a esquerda poderia sair de seu presente puramente defensivo, identificado com o estabelecido, que deixa toda a raiva antissistema e rupturista à extrema-direita.
Para fazer isso, é necessário se perguntar o que estamos fazendo e por que o que desejamos não é nosso desejo. No livro, você insiste em algo que já abordou em livros anteriores, como a falta de atenção e os automatismos que evitam essas questões necessárias.
Existe uma frase de Simone Weil que diz: “onde há desejo, há atenção”. Parece-me que é uma frase que vira de cabeça para baixo o que entendemos por problemas de atenção. Quando reclamamos da pouca atenção que as crianças prestam em uma sala de aula, o que antes deveríamos nos perguntar é o motivo pelo qual a sala de aula hoje não é capaz de convocar o desejo das crianças.
Em vez de dizer e repetir que as crianças estão com os cérebros fritos com tantos celulares, em vez de infamá-los, seria necessário questionar a relação entre escola e desejo. A escola é capaz de suscitar o desejo de aprender, de contagiar o amor por este ou aquele conteúdo?
Como o desejo é um caminho difícil, que implica solidão, que implica criação, que implica atravessar os limites da angústia, há uma delegação em massa aos automatismos. Os automatismos nos dizem o que devemos fazer, o que devemos desejar, o caminho para ser feliz, o caminho para ter uma companheira, o caminho para ser o homem ou a mulher perfeita, para alcançar o sucesso. Não há tanta distração como a captura da atenção pelos automatismos.
A vida hoje está protocolizada, justamente o oposto da frase de Machado. Há fé nos automatismos porque perdemos a confiança em nosso radar sensível, em nosso radar erótico, em nossa capacidade de nos orientar pela vida com autonomia. Os automatismos são uma espécie de GPS para tudo, para o amor, para o trabalho, para o pensamento. Deixo-me levar pelos caminhos traçados, em vez de construir novos caminhos. O automatismo é uma renúncia ao desejo.
Diante dessa renúncia ao desejo por meio dos automatismos, você propõe o que chama de “valores do sul”. No que está pensando?
Escrevi esse texto que você menciona após conhecer Nápoles, através de um amor. Nápoles me pareceu outro mundo. Uma cidade caótica, onde as pessoas ainda têm forças para se impor, uma cidade às vezes dura, às vezes perigosa, mas também muito viva, onde a vida não se desenvolve principalmente segundo os automatismos do mercado e da tecnologia.
O sul é um espaço-tempo mítico, imaginário, porque também há sul no norte e norte no sul. É uma experiência da vida sem automatismos que a torna mais intensa e desafiante, mais apaixonante, ainda que também mais difícil. Uma vida que tem a ver com uma invenção do comum fora do mundo que a aliança entre o mercado e a tecnologia nos dispõe. Os valores da sociabilidade do sul, como explica Michel Maffesoli, são os vínculos e as cumplicidades, o tempo da festa e da celebração, o remendo e a astúcia como estratégias de vida, a relação trágica com o mal e a morte.
O trágico sobrevive onde não se acredita que haja solução para tudo. Para o amor, o envelhecimento, a morte. A cultura tecnológica nos vende que sempre existe uma cirurgia, um comprimido, um tratamento, um protocolo que funciona. Assim, perdemos a capacidade autônoma de lidar com o mal, com o impossível, que também constitui a essência humana.
Em diversas ocasiões, ao longo do livro, você menciona uma certa “maldade inata” no homem, mas também é verdade que, ao mesmo tempo, apela em vários momentos à coletividade, ao comum, ao apoio mútuo, a determinada leitura rousseauniana do ser humano, à bondade do humano. Não sei muito bem onde situar a sua posição em relação ao ser humano...
Eu diria que há um desajuste do ser humano, que o ser humano está desajustado, fora do normal. Castoriadis, um filósofo que me acompanha há anos, diz que o ser humano é um animal “louco” porque é incompleto, carece de sentido. Somos animais feridos, abertos, que precisam inventar o sentido de estar vivos. Esse sentido não é apenas significado, mas vibração, ritmo e desejo.
Não sei se existe outro animal desajustado. Não sei, por exemplo, se existe algum outro animal que se autodestrói. Claro, não existe nenhum outro animal que tenha inventado armas capazes de acabar com a vida no planeta. Esse desajuste pode ser expresso em muitos sentidos e alguns são terríveis.
Não existe desejo bom sob a sociedade má, mas temos que aprender a educar o desejo. Educá-lo de modo que Eros seja capaz de sujeitar Tânatos, para que as pulsões de vida possam lidar com as pulsões de morte, como dizíamos antes a respeito das culturas do sul. O próprio Rousseau dizia que a piedade deve ser educada, que a sensibilidade em relação ao outro se aprende.
No livro, fica claro que você reivindica esse sistema de crenças, valores e sensibilidades que historicamente estão ligados ao feminino e que você entende como uma forma de fortalecer o Eros.
Uma das razões que explicam o vitimismo, essa instalação no lugar da vítima, mesmo que doa, segundo Freud, é “a rejeição do feminino”. A rejeição do feminino entendida como a recusa em pedir e receber ajuda, em perder o controle e se mostrar vulnerável, em empreender processos sem garantias, nem protocolos.
Nesse sentido, o feminismo ou a política no feminino, como diz Rita Segato, é uma mudança na relação com o mundo. Não simplesmente uma reivindicação de igualdade em um mundo patriarcal, mas uma mudança de paradigma. Sair da posição libidinal masculina de controle e dominação como modos de relação com tudo, também no caso de muitas mulheres. Entrar em uma relação de cuidado com a vida, com as potencialidades do vivo, com o vivo como sujeito.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“As ideias que não tocam os corpos deixam o mundo igual”. Entrevista com Amador Fernández-Savater - Instituto Humanitas Unisinos - IHU