15 Abril 2024
"A rígida grelha interpretativa da continuidade induz Martínez-Brocal a não incluir entre as suas perguntas ao pontífice um dos incidentes mais dissonantes nesse sentido. O jornalista espanhol – correspondente em Roma do conceituado jornal madrileno ABC, laico e membro numerário (celibatário) da Opus Dei como os seus antecessores desde 1977 (Joaquín Navarro-Valls, Miguel Castellví e Juan Vicente Boo) – se aventura até na acrobacia de interpretar o episódio como uma prova da continuidade entre os dois papas", escreve Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, em artigo publicado por Domani, 02-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O título do último livro-entrevista do pontífice, publicado na Espanha, sobre suas relações com Joseph Ratzinger, indica com precisão o seu conteúdo. "Papa Francisco. El sucesor. Mis recuerdos de Benedicto XVI (Planeta)" é de fato um texto - baseado em três horas de entrevista, interligadas e acompanhadas por documentos úteis - do qual emerge principalmente a figura de Bergoglio. Através da memória que o Papa conserva do seu antecessor e quer que seja transmitida. Com a intenção declarada programaticamente pelo jornalista que o escreveu Javier Martínez - Brocal, de mostrar a continuidade entre os dois papas. Mas o livro não convence e abre, na verdade, não poucas questões.
De fato, existem vários elementos dissonantes nessa reconstrução, certamente não fácil, e que teve repercussão quase apenas pelos três aspectos mais interessantes: a polêmica com alguns colaboradores próximos de Bento XVI, a reconstrução dos dois últimos conclaves, o seu funeral.
Nos dois primeiros, Francisco acrescenta detalhes do que já havia dito em outras ocasiões e, quanto ao terceiro, o pontífice declarou pela primeira vez que o seu ritual fúnebre será simples, “como em todas as famílias”. Em suma, não mais papal, nem mesmo segundo o rito despojado e sugestivamente renovado por Paulo VI. Respondendo a Martínez - Brocal, o Papa afirma que o Arcebispo Georg Gänswein, o secretário do seu antecessor, para quem parece ser iminente uma nomeação como diplomata, no livro Nada além da verdade – entrevista com Saverio Gaeta publicada na semana seguinte ao funeral de Bento XVI – conta “coisas que não são verdade” e acusa a publicação de “falta de nobreza e humanidade”.
Mas há mais: na manhã em que Ratzinger piorou, o Papa, que tinha ido visitá-lo, percebe que o os médicos “mantinham Bento quase ‘sob custódia’. Atenção, não digo prisioneiro ou trancado, mas um tanto ‘cuidado’”.
Bergoglio descreve a cúria em constante antagonismo com o pontífice, com alusões que podem ser estendidas a si próprio: “Todos os papas têm a sua dimensão de incompreensão. Para João Paulo II um grupo da cúria tornou a vida impossível. Penso que, no caso do Bento, não entenderam a liberdade interior que ele tinha”.
Ratzinger – que desde 1982 viveu no contexto do Vaticano durante quarenta anos– depois da renúncia, respondeu ao seu biógrafo Peter Seewald que “as resistências vieram mais do exterior que da cúria. A minha intenção não era simplesmente e primordialmente fazer uma limpeza no pequeno mundo da Cúria, mas na Igreja como um todo”.
Francisco também acredita que “grupos separatistas” tenham manipulado o cardeal Robert Sarah, que pelo trabalho na cúria se tornou "um pouco amargo". E define o prelado africano como expoente de uma linha teológica e litúrgica mais tradicional, “muito bom”, mas confidencia que o nomeou “talvez” por engano à frente do órgão encarregado do culto.
A rígida grelha interpretativa da continuidade induz Martínez-Brocal a não incluir entre as suas perguntas ao pontífice um dos incidentes mais dissonantes nesse sentido. O jornalista espanhol – correspondente em Roma do conceituado jornal madrileno ABC, laico e membro numerário (celibatário) da Opus Dei como os seus antecessores desde 1977 (Joaquín Navarro-Valls, Miguel Castellví e Juan Vicente Boo) – se aventura até na acrobacia de interpretar o episódio como uma prova da continuidade entre os dois papas.
No início de 2018, onze pequenos livros sobre teologia de Bergoglio foram publicados pela editora do Vaticano e o prefeito da Secretaria de Comunicação Dario Edoardo Viganò havia proposto a Bento XVI escrever um pequeno texto para comentá-los. Mencionando uma “continuidade interna entre os dois pontificados, apesar de todas as diferenças de estilo e temperamento”, Ratzinger recusou o convite devido a “outros compromissos”.
O Papa Emérito mencionava com “surpresa” entre os autores dos “pequenos volumes” a presença de um teólogo seu compatriota, Peter Hünermann, que havia “liderado iniciativas antipapais” especialmente “sobre questões de teologia moral”. Mas na apresentação da iniciativa aos jornalistas o prefeito mostrou a carta de Bento XVI sem essa parte e as polêmicas que obviamente se seguiram o obrigaram a se demitir.
Como em outras ocasiões, Francisco tem grande reconhecimento pelo seu antecessor, que considera até um santo. Para além do esquema de continuidade: “Algumas decisões que tomei naturalmente não concordavam com ele, mas com seu silêncio sempre as respeitou. É preciso santidade e muita coragem para isso”. Porém, não foi exatamente assim.
Após a sua renúncia, Bento XVI expressou claramente o seu ponto de vista, diferente daquele de Francisco. Sobre a liturgia, mas também sobre a tragédia dos abusos, que Ratzinger enfrentou de forma mais ampla e coerente: sobretudo com um texto radical publicado em 2019 - agora no póstumo O que é o Cristianismo - e com a dramática carta de 6 de fevereiro de 2022 na qual, por ter tido "importantes responsabilidades na igreja", expressa dor, vergonha e um pedido de perdão.
A reconstrução dos dois conclaves dos quais Bergoglio participou teve grande repercussão: em 2005, quando Ratzinger foi eleito em pouco mais de vinte e quatro horas, e em 2013, um conclave igualmente rápido do qual saiu papa. Francisco já havia falado sobre isso. “Os cardeais – esclarece o pontífice al seu interlocutor – juram não revelar o que acontece no conclave, mas os papas têm faculdade para contar”.
Os antecessores de Bergoglio não trouxeram a público a condução das suas eleições. Saborosa é principalmente uma confidência de João XXIII. Eleito em 28 de outubro de 1958, após três dias de conclave, algumas semanas mais tarde o novo papa contou genericamente que durante as repetidas votações - foram onze - seu nome e o do patriarca armênio Agagianian "trocavam ora para cima, ora para baixo como grão de bico na água fervente”.
Após a renúncia, Ratzinger, que participou nos dois conclaves de 1978, foi entrevistado por Seewald e mencionou o arcebispo de Viena, famoso por ser considerado o grande eleitor de Wojtyła: “Só posso dizer que König conversou com vários cardeais antes do conclave. O que aconteceu a portas fechadas, é segredo e continuará sendo”. E sobre a candidatura de Bergoglio – informada por várias fontes – em 2005 abreviava: “Não posso dizer nada sobre isso”.
Em vez disso, o Papa Francisco foi pródigo em detalhes com Martínez-Brocal sobre os conclaves dos quais participou. O que mais chamou a atenção foi a reconstrução daquele em que foi eleito o seu antecessor, que apresenta como o seu candidato: “A ideia era bloquear a eleição do Cardeal Joseph Ratzinger. Estavam me usando, mas por trás já estavam pensando em propor outro cardeal”. Em vez disso, “se tivessem eleito alguém como eu, que causa muita confusão, não teria conseguido fazer nada”. Com a escolha de Ratzinger, o Espírito Santo quis dizer – continua Bergoglio – “aqui sou eu quem manda. Não há espaço para manobras”.
As diferentes reconstruções daquele conclave nem todas são concordantes, mas em todas aparece como o candidato do campo progressista o Cardeal Martini, que o Papa nunca nomeia. No que diz respeito ao conclave de 2013, Francisco relata ter tomado conhecimento de que o candidato considerado por muitos o mais provável e esperado pela Conferência Episcopal Italiana, o Cardeal Scola, teria convidado a votar nele.
Numa longa entrevista transmitida em 1997 pela televisão bávara, Ratzinger havia falado de forma mais realista sobre o Espírito Santo nas eleições dos papas: “Eu diria que o Espírito Santo não assume exatamente o controle da questão, mas sim, como bom educador que ele é, nos deixa muito espaço, muita liberdade, sem nos abandonar plenamente. Portanto, o papel do Espírito deveria ser entendido num sentido muito mais elástico, não que ele dita em qual candidato se deve votar. Provavelmente a única segurança que ele oferece é que a situação não possa ficar totalmente arruinada. Há muitos exemplos de papas que evidentemente o Espírito Santo não teria escolhido”.
Em suma, há muitos elementos contrários à hipótese que sustenta o bem-intencionado livro. A tal ponto que o apoio de Martínez Brocal à teoria da continuidade entre os papas – tema obrigatório para os historiadores – parece uma operação fracassada.
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A operação fracassada de contar uma continuidade entre Francisco e Bento. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU