04 Abril 2024
"O clericalismo e o celibato não são aspectos imutáveis do presbiterado. São construções humanas que contribuíram para os nossos sucessos e fracassos sistêmicos. A Igreja deve fazer as contas com essas realidades e priorizar a segurança e o bem-estar de seus membros em detrimento da preservação de tradições humanas. O clericalismo funcional perpetua uma hierarquia prejudicial que aliena tanto o clero quanto o laicato do verdadeiro espírito da comunidade cristã", escreve J. P. Grayland, padre neozelandês e atualmente professor visitante na Universidade de Tübingen, na Alemanha. O artigo foi publicado em La Croix International, 27-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estudos na Alemanha sugerem que os abusos nas congregações protestantes do país, assim como nas comunidades católicas, também estão ligados a um tipo de clericalismo institucionalizado.
O número considerável de casos de abuso na Igreja Católica na Alemanha tornou-se conhecido pela primeira vez em 2010. Desde então, a Igreja tem-se esforçado por processar esses casos. Em sua assembleia plenária de 25 de setembro de 2018, a Conferência Episcopal Alemã (DBK) publicou um estudo documentando casos de abuso entre 1946 e 2014.
No fim de 2020, a Igreja Protestante da Alemanha (Die Evangelische Kirche in Deutschland) também começou a pesquisar sobre o abuso sexual em suas igrejas. Em 25 de janeiro de 2024, esse estudo foi tornado público.
O que esses dois estudos têm em comum é o papel que o clericalismo desempenha no abuso sexual nas comunidades cristãs, nas Igrejas locais, nas congregações e nas organizações religiosas.
No campo do abuso sexual, é claro que ouvir o testemunho de quem foi abusado por clérigos, líderes religiosos e leigos é fundamental, porque seus testemunhos revelam padrões gerais de abuso relacionados com disfunções psicossexuais e psicossociais, a maioria das quais estão relacionadas com uma mentalidade clericalista.
Embora esses estudos mostrem uma diferença entre as denominações no que diz respeito ao impacto do celibato nos abusos, eles também mostram uma semelhança substancial no que diz respeito ao clericalismo. Os padrões de abuso nas congregações protestantes geralmente incluem discussões forçadas sobre sexualidade e desejos sexuais não realizados dos pastores em suas próprias famílias. Portanto, há muitas referências à influência das demandas sociais pela liberdade sexual e pela vida sexualizada como contextos de abuso.
A presença da família do pastor, embora não elimine completamente o fator de risco do abuso, torna a ocultação do abuso mais complexa. Em contraste, nos contextos católicos, onde existe para os celibatários uma proibição absoluta da atividade sexual, a experiência do abuso sexualizado não pode ser relacionada a fenômenos sociais como a promiscuidade sexual ou a mudança social dos anos 1960 ou 1970. Consequentemente, embora se possa “culpar” o mundo exterior pela experiência protestante de abuso, a “culpa” pela experiência católica deve ser procurada dentro da própria Igreja.
A correlação do clericalismo entre ambas as denominações poderia ser resumida da seguinte forma: “A instituição vem em primeiro lugar, antes de tudo e de todos!”.
Para ambas as denominações, aqueles que administram a instituição eclesial (diocese, Igreja local, paróquia, ordem/congregação religiosa, negócios da Igreja e escolas) trabalham principalmente para proteger a reputação da instituição. As evidências mostram que a “solução geográfica” de transferir um infrator de uma paróquia para outra, de uma diocese para outra e de uma escola para outra tem sido usada para proteger a reputação da instituição, e não para curar as pessoas abusadas ou para confrontar os abusadores. Os vários relatórios explicitam a loucura dessa estratégia; infelizmente, o que os líderes institucionais procuram proteger – porque é sagrado para eles – torna-se aquilo que produz o maior risco de escândalo.
O abuso espiritual, particularmente predominante em contextos católicos, complica ainda mais a questão, servindo como precursor para a má conduta sexual. Essa forma insidiosa de manipulação realça a dinâmica de poder dentro do clero e sublinha a necessidade urgente de reforma.
Esse fator é quase irrelevante em casos dentro do contexto protestante. Consequentemente, embora os perpetradores católicos frequentemente enfatizem a distância intelectual e espiritual de suas vítimas, os perpetradores protestantes atraem suas vítimas para um mundo adulto esmagador de problemas conjugais e de sexualidade, e pedem à vítima que se torne a solução para tais questões.
O clericalismo e o celibato são fatores de risco católicos porque:
1) explicam parcialmente os fenômenos de abuso físico, sexual e espiritual,
2) desempenham um papel significativo na formação do clero e dos seminaristas, e
3) influenciam a estrutura e a experiência de vida clerical e religiosa, e das paróquias.
Como o clericalismo e o celibato fundamentam a vida clerical e religiosa, aqueles que participam em tais estilos de vida ficam imersos em um “clericalismo funcional” que tem impacto na forma como vivem o celibato. Esse clericalismo funcional é minimizado pelo clichê “o padre sabe o que é melhor”. O clericalismo funcional também é evidente quando o padre se ausenta da realidade do mundo contemporâneo, retirando-se para um mundo privado de piedade e de práticas litúrgicas que se voltam para o passado e não para o presente.
Outro exemplo de clericalismo funcional é a relutância dos padres em consagrar hóstias suficientes para as pessoas na missa, para que todos possam se alimentar à Mesa Eucarística na Eucaristia de que participam. Em vez disso, pouco antes da distribuição da comunhão, ele caminha até o sacrário para trazer hóstias pré-consagradas de uma semana atrás para o povo, enquanto come e bebe da refeição eucarística que ele preside. Esse clericalismo funcional declara: “O mais importante é o padre: o povo pode ficar com o que sobra”.
Essa abordagem funcional da liturgia, então, clericaliza leigos e leigas, que também não veem a necessidade de comungar da Mesa Eucarística no domingo. Geralmente, pelo fato de leigos e leigas verem o clericalismo funcional de seus padres, eles também se tornam funcionais em sua abordagem à Liturgia Dominical ao não se importarem com a Missa Dominical, porque a comunhão a partir do sacrário é igualmente boa e mais prática. Esse tipo de funcionalismo estava no cerne das liturgias eucarísticas online transmitidas durante a Covid-19.
O que é evidente a partir da investigação e de vários inquéritos é que a Igreja vê tanto o clericalismo quanto o celibato como parte da estrutura sagrada do presbiterado católico e da vida religiosa. Por serem elementos sagrados, quem os administra trabalha para protegê-los. Muitas vezes, essa abordagem cai mal nas mãos do pensamento institucional, que determina como os clérigos são formados e, por sua vez, como eles e o laicato respondem às necessidades pastorais específicas.
Em suma, o clericalismo e o celibato são duas influências cruciais sobre a forma como a Igreja Católica é administrada e dois princípios orientadores para decidir para quem a Igreja existe.
Esses vários relatórios deixam claro que devemos ouvir as vozes das pessoas sobreviventes, cujos testemunhos lançam luz sobre as questões profundamente enraizadas na cultura clerical. Todos os estudos sublinham o impacto perturbador de uma mentalidade clerical, que prioriza a instituição acima do bem-estar dos indivíduos. Essa priorização manifesta-se na proteção da reputação da Igreja em detrimento da justiça e da responsabilização.
Embora o celibato tenha sido implicado de forma diferente em cada denominação – as congregações protestantes citam a influência das mudanças sociais nos anos 1960, e o catolicismo enfrenta desafios internos – o fio condutor continua sendo o clericalismo. Em ambos os casos, a estrutura hierárquica da Igreja perpetua uma cultura em que o abuso pode ser varrido para debaixo do tapete, protegido por uma fachada de retidão.
O clericalismo e o celibato não são aspectos imutáveis do presbiterado. São construções humanas que contribuíram para os nossos sucessos e fracassos sistêmicos. A Igreja deve fazer as contas com essas realidades e priorizar a segurança e o bem-estar de seus membros em detrimento da preservação de tradições humanas. O clericalismo funcional perpetua uma hierarquia prejudicial que aliena tanto o clero quanto o laicato do verdadeiro espírito da comunidade cristã.
Ao confrontarmos as verdades preocupantes reveladas por esses estudos, precisamos ver a reforma como um imperativo contínuo e necessário se a Igreja quiser cumprir seu dever sagrado de ministrar aos fiéis. É hora de desmantelar as estruturas do clericalismo que permitiram que o abuso se agravasse e adotar uma visão do cristianismo enraizada na justiça, na compaixão e na humildade.
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A mistura tóxica entre clericalismo e abuso sexual não é exclusiva do catolicismo. Artigo de J. P. Grayland - Instituto Humanitas Unisinos - IHU