29 Janeiro 2024
"As narrativas das vítimas mostraram como a estrutura real das igrejas evangélicas e o exercício do poder dentro delas estão longe da imagem bem estabelecida promovida pelos representantes eclesiásticos. Esta imagem concebe a Igreja evangélica como 'oposta' à Igreja Católica, ou seja, fundamentalmente 'participativa, pouco hierárquica e progressista'.", escreve o teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 26-01-2024.
Em 2018, quando a Conferência Episcopal dos bispos católicos alemães divulgou os resultados do Estudo sobre abusos sexuais nas dioceses do país, a Igreja Evangélica Alemã (EKD) finalmente decidiu dar passos semelhantes em relação a si mesma.
Em 2020, um grupo de pesquisadores de várias universidades (incluindo alguns que haviam trabalhado no estudo sobre a Igreja Católica) foi designado para conduzir uma investigação e análise de casos de violência sexual nas igrejas territoriais da EKD e na Diakonie (equivalente evangélico da Caritas católica).
Quanto ao período de pesquisa, parte-se fundamentalmente do pós-guerra, quando as igrejas evangélicas alemãs estavam divididas entre a República Federal Alemã (BRD) e a República Democrática Alemã (DDR) (com consideração para os registros da Stasi), passando pela reunificação não apenas da Alemanha, mas também de algumas igrejas territoriais, até a situação atual que, nos últimos anos, viu a união de algumas igrejas territoriais evangélicas.
O grupo de trabalho independente encarregado pela EKD foi constituído sob o nome de ForuM-Studie. O caminho que levou à publicação do Estudo (ocorrida em 25 de janeiro de 2024) não foi isento de obstáculos e resistências por parte das igrejas evangélicas, das quais se esperava uma colaboração mais vigorosa e transparente. O Relatório final é extenso: mais de 800 páginas, dividido em três partes: o estado da pesquisa e a abordagem metodológica; os resultados do Estudo; uma conclusão concisa dos resultados, das consequências e uma série de orientações dirigidas à EKD.
A segunda parte, sobre os resultados das pesquisas realizadas ao longo desses anos, divide-se em 5 subgrupos que examinam áreas específicas: 1) Igreja e sociedade; 2) Organização e pessoas; 3) A perspectiva das vítimas; 4) O impacto nas estruturas das igrejas evangélicas a partir da perspectiva das vítimas; 5) Números e gestão. Esta segunda parte do Estudo termina com um parágrafo que analisa fenômenos institucionais e características específicas das igrejas evangélicas que possibilitaram atos de abuso de vários tipos, além de incentivar seu encobrimento.
A abordagem escolhida pelo grupo ForuM foi, em primeiro lugar, empírica - em parte devido à falta de pesquisas anteriores sobre as igrejas evangélicas. De um lado, tratou-se de "reconstruir o que foi vivenciado como violência sexual através dos relatos das vítimas e material de arquivo"; por outro lado, realizou-se uma "pesquisa qualitativa sobre mecanismos institucionais e fenômenos especificamente evangélicos" que criaram o ambiente no qual os abusos proliferaram e seu encobrimento foi a maneira mais frequente de lidar com eles.
Em resumo, os pesquisadores identificaram uma espécie de divergência entre a perspectiva de representantes oficiais das igrejas evangélicas e a das vítimas em relação aos abusos e sua elaboração. Por exemplo, para os primeiros, a participação das vítimas e suas declarações devem ser consideradas quando "correspondem a uma lógica eclesiástica interna"; enquanto aquelas que "parecem entrar em conflito com os interesses da instituição" são consideradas não construtivas.
Além disso, as narrativas das vítimas mostraram como a estrutura real das igrejas evangélicas e o exercício do poder dentro delas estão longe da imagem bem estabelecida promovida pelos representantes eclesiásticos. Esta imagem concebe a Igreja evangélica como "oposta" à Igreja Católica, ou seja, fundamentalmente "participativa, pouco hierárquica e progressista". As experiências das vítimas revelam outra realidade, mostrando uma "discrepância entre uma autoimagem idealizada e as estruturas efetivas, juntamente com suas práticas, nas quais consistem efetivamente as igrejas evangélicas alemãs".
Também é de interesse a periodização, onde 2018 representa uma espécie de ponto de virada. Antes dessa data, há praticamente uma "determinação imprecisa da violência sexual" nos documentos da EKD. Além disso, "as pessoas afetadas por violência sexual, antes de 2018, eram conceituadas principalmente como vítimas. Devido à violência sofrida, eram consideradas como tendo capacidade muito limitada de expressar suas experiências".
Isso criava, então, uma espécie de descompasso quando a "Igreja se posicionava como o sujeito que poderia possibilitar essa expressão" por parte das pessoas que sofreram abusos sexuais.
Quanto às igrejas evangélicas do Oeste, antes da queda do Muro, foi possível constatar, nos casos de padres/vigários predadores, "que mesmo o pastor evangélico desfrutava de uma posição privilegiada, ligada a um amplo poder pastoral relacionado a atos de violência sexual e outras formas de abuso. A compreensão igualitária das comunidades, onde à pessoa do pastor não é atribuído mais poder prático e um espaço de configuração das vivências do que aos outros membros da comunidade, em muitos casos era efetivamente anulada nas práticas de interação existentes nas comunidades analisadas".
O grupo de pesquisa ForuM encontrou uma situação fortemente heterogênea nas várias igrejas territoriais evangélicas, tanto no que diz respeito aos conteúdos efetivos dos arquivos disponíveis quanto aos critérios de organização desses arquivos. Isso tornou o trabalho mais complexo.
Além disso, o acordo inicial era que o grupo ForuM pudesse ter acesso tanto à seção disciplinar quanto à seção pessoal dos arquivos relacionados aos padres e vigários da EKD. No entanto, apenas uma igreja territorial entregou completamente a parte arquivística referente aos atos pessoais. Na prática, em relação ao material de arquivo, só foi possível acessar casos conhecidos ou reconhecidos de alguma forma pelas igrejas, sem poder examinar todos os atos que permitiriam rastrear práticas de encobrimento ou falta de atenção à questão dos abusos.
Levando em consideração esse fator e com referência a "casos conhecidos nas igrejas territoriais, na Diakonie e nos atos disciplinares oficiais", surgiram 1.259 culpados por atos de violência sexual e outros tipos de abuso e 2.225 pessoas que foram vítimas em vários contextos relacionados às igrejas da EKD.
Considerando que, no caso do Estudo-MHG que envolvia a Igreja Católica, foi possível acessar 38.156 atos pessoais relacionados a padres das dioceses alemãs, o fato de, no caso das igrejas evangélicas, terem sido analisados apenas 780 atos pessoais levou o grupo de pesquisa ForuM a afirmar que, no que diz respeito à EKD, o Relatório apresentado "é apenas a ponta do iceberg".
Considerando os atos pessoais disponibilizados por apenas uma igreja territorial, verifica-se que 60% dos predadores e 75% das vítimas não podem ser identificados apenas através dos atos disciplinares e dos casos conhecidos declarados pelas igrejas. Isso leva a crer que, mesmo após o Estudo-ForuM, cerca de ¾ das pessoas que sofreram violência nas igrejas evangélicas ainda permanecem na completa obscuridade do conhecimento das próprias igrejas.
Uma projeção estatística, elaborada a partir dos dados dos atos pessoais da única igreja territorial que os disponibilizou, cruzada com dados de pesquisas semelhantes na Alemanha e em outros países, levaria o número de vítimas a 9.500 e o número de predadores a 3.500.
Quanto às pessoas culpadas por atos de violência sexual e outros tipos de abuso, a maioria está entre os pastores e vigários evangélicos (ou seja, dentro da pastoral), onde 99,6% são do sexo masculino.
Ao final do Estudo, são indicadas algumas medidas que deveriam ser implementadas pela EKD:
Quebrar a cultura do silêncio e do encobrimento implementando uma transformação adequada das estruturas eclesiásticas. Uma revisão profunda da autoconsciência idealizada enraizada no pessoal eclesiástico evangélico - que questione uma pretensa superioridade que, aliada ao exercício do poder de várias maneiras, ainda representa a mentalidade predominante. O Estudo revelou fatores especificamente evangélicos que favoreceram atos de abuso e seu encobrimento, por isso é necessário reformar a cultura eclesial interna das igrejas evangélicas e encontrar caminhos de prevenção, intervenção e boas práticas que não sejam simplesmente emprestados de outras instituições (eclesiásticas e não eclesiásticas).
Desenvolver uma comunicação, interna e externa, transparente e confiável no que diz respeito a atos de violência sexual e abusos de vários tipos nas igrejas evangélicas alemãs. As pessoas que sofreram violências e abusos foram manipuladas, exploradas e feridas em suas possibilidades de vida pelo pessoal eclesiástico evangélico. Este último precisa aprender formas de comunicação e, eventualmente, contato com as vítimas, que sejam claras, transparentes e confiáveis para as pessoas que sofreram violências e abusos - evitando patologizar sua condição de vida (por exemplo, chamando-as de pessoas traumatizadas) e renunciando também à palavra "vítima".
O Estudo foi apresentado no dia anterior, quarta-feira, 24 de janeiro, ao Conselho da EKD. Durante a coletiva de imprensa, a presidente interina do Conselho, a bispa Kirsten Fehrs, disse estar "profundamente chocada com a profundidade da violência sofrida por tantas pessoas na igreja (...). A violência sexual é um abuso de poder, uma violência crua e perversa, física e psicológica, que - como ouvimos - perdurou ao longo do tempo".
O ponto de partida é o reconhecimento do "fracasso total de nossa igreja" - especialmente pelo fato de o Estudo ter destacado que nas igrejas evangélicas alemãs existem estruturas que protegem os abusadores. A presidente da EKD enfatizou como é responsabilidade da igreja, e não das pessoas que sofreram violência e abusos, lidar com responsabilidade com a injustiça que ocorreu dentro dela, e encontrar caminhos concretos e eficazes para transformar um sistema eclesial que se mostrou propício a práticas abusivas e violentas
A execução dessa tarefa parte de uma "atitude sensível e atenta que leva em consideração a perspectiva e as demandas das pessoas que sofreram violência - junto com sua raiva". O Estudo deixou claro que o caminho a percorrer é muito mais longo do que a EKD pensava e imaginava.
"É conhecido que a Igreja evangélica tem uma estrutura federativa, com uma compreensão participativa. O Estudo destacou o quão distantes são o desejo e a realidade". Imaginar a Igreja como melhor em comparação com a católica, que foi abalada pelos escândalos de abuso sexual e de poder nas últimas décadas, foi o refúgio imaginário pelo qual as Igrejas evangélicas removeram a existência de crimes dentro delas.
No geral, as Igrejas evangélicas demoraram demais para perceber que seus próprios ambientes criavam condições propícias para práticas abusivas e violentas; não quiseram aprender com o que aconteceu em outras instituições - especialmente da parte da Igreja Católica; idealizaram sua autocompreensão, pensando serem imunes a um vírus considerado exclusivo da outra confissão.
Vivendo da magia das palavras que automaticamente produzem realidades correspondentes, transformaram sua autocompreensão idealizada em um sacramento intocável.
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Alemanha: abusos na Igreja evangélica. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU