30 Junho 2020
No dia 22 de junho, a Conferência dos Bispos da Alemanha e o delegado federal independente para questões referentes aos abusos sexuais de menores assinaram em conjunto um “Protocolo de entendimento sobre os critérios e padrões vinculantes para a gestão independente dos abusos sexuais na Igreja Católica na Alemanha”. Trata-se da forma mais alta de colaboração entre Estado e Igreja alcançada nos países europeus.
O comentário é de Marcello Neri, teólogo, padre e professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 27-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A possibilidade de se chegar a esse tipo de colaboração entre a dimensão institucional pública e a eclesial certamente foi possibilitada pela prática consolidada, típica da Alemanha do pós-guerra, de uma consulta regular e frequente entre as duas instâncias em “questões mistas” que dizem respeito a ambos os âmbitos institucionais.
Apesar da especificidade que permitiu entrelaçar as competências e responsabilidades do Estado e as da Igreja Católica, o “Protocolo de entendimento” também poderia representar um modelo para outras Igrejas europeias naquilo que diz respeito a procedimentos de abordagem e gestão dos abusos sexuais, compartilhados e reconhecidos pelos Estados em que elas vivem e operam. De qualquer forma, com a assinatura, é definitivamente posta de lado toda mentalidade de contraposição e de suspeita (mútua), para entrar em uma dimensão de colaboração e apoio construtivos.
O fato de o signatário federal ser o delegado independente para os abusos de menores mostra que o que foi feito pela Conferência Episcopal e pelos bispos locais até este momento é reconhecido na sua validade e representa a base sobre a qual é possível construir mais uma passagem em um regime de estreita reciprocidade entre Igreja e Estado.
“O ‘Protocolo de entendimento’, no que diz respeito aos padrões e aos critérios na gestão do abuso sexual e a sua aplicação estrutural, é entendido como conclusão e desenvolvimento necessários das medidas adotadas na matéria e dos processos em andamento ou já concluídos de detecção, prevenção, reconhecimento e análise do abuso sexual dentro da Igreja Católica na Alemanha.”
Com o termo “gestão”, o “Protocolo de entendimento” se refere à “identificação dos fatos, das causas e das consequências do abuso sexual de menores, jovens [e adultos em dificuldade ou em condições protegidas] na Igreja Católica; à identificação de estruturas que possibilitaram ou facilitaram o abuso, ou dificultaram a sua revelação; e às formas administrativas de abordagem dos culpados e das pessoas afetadas pelos seus atos”. Assumir esses procedimentos, com a mais plena transparência, representa “a tarefa genuína que compete a todo ordinário local”.
Gestão, portanto, significa se encarregar da situação geral que circunda todo abuso sexual na Igreja: o reconhecimento de todo o peso do comportamento errado e da dor que ele provocou nas pessoas que foram afetadas por ele; implementar processos duradouros de reflexão sobre todos os aspectos envolvidos; envolver as vítimas de abuso nesses processos e lhes dar acesso, no quadro das possibilidades contempladas pelo direito, aos documentos e às informações que lhes digam respeito; chegar, com base nos dados obtidos, a conclusões adequadas e consequentes para a proteção dos menores e dos jovens; contribuir em nível social e eclesial a todos os aspectos e práticas de elaboração da questão do abuso sexual no contexto atual.
O instrumento identificado para poder assumir e desenvolver essas tarefas é a criação de uma comissão ad hoc em cada diocese alemã (também está prevista a possibilidade de colaboração entre dioceses limítrofes e, portanto, de uma comissão de caráter interdiocesano). Os membros da comissão (de números ímpares) devem pertencer ao círculo das pessoas vítimas de abusos sexuais na Igreja; especialistas nos âmbitos acadêmicos, da prática profissional, da justiça e da administração pública; e representantes da diocese.
No que diz respeito à convocação dos especialistas, o ordinário se dirigirá ao governo do Land onde se encontra a sua diocese, solicitando a indicação de pessoas competentes que possam desempenhar adequadamente o seu trabalho na comissão.
O presidente da comissão não deve ser escolhido nem entre os representantes das vítimas nem entre os da diocese (ou de grupos leigos formalmente ligados a ela). Os membros são chamados a fazer parte da comissão pelo ordinário local por um mandato de três anos (e podem ser reconfirmados para um segundo triênio). Todos os anos, a comissão deve elaborar um relatório escrito sobre o andamento dos trabalhos, que deve ser enviado ao delegado federal para as questões de abuso sexual de menores e ao ordinário local.
No prazo de cinco anos após a posse, a comissão deve preparar um relatório final provisório, no qual se apresenta uma síntese dos resultados do trabalho realizado, contendo também um informativo redigido pelos membros da comissão que foram vítimas de abuso sexual na Igreja – além disso, esse relatório final provisório também deve oferecer sugestões concretas no que diz respeito aos procedimentos e às práticas a serem adotados em nível local e nacional.
No fim do primeiro mandato, a sessão de debate da comissão (prevista anualmente) assumirá a forma de “um congresso de especialistas a ser realizado publicamente”. Também em nome da participação mais ampla possível e para garantir a qualidade da transparência dos trabalhos da comissão, todos os relatórios anuais e as atas da sessão de debate serão publicados no site da diocese.
As comissões diocesanas poderão contar com um escritório da Conferência dos Bispos da Alemanha que as apoiará, fornecendo os recursos pessoais e de caráter profissional de que as presidências das comissões poderão necessitar para realizar o seu mandato. Esse escritório também é responsável pela preparação da sessão anual de debate de cada comissão diocesana (e pelo congresso de especialistas), acompanhando os resultados. Também será dever do Escritório da Conferência Episcopal redigir um quadro estrutural vinculante em torno do qual cada comissão preparará seu próprio relatório anual e o relatório final provisório.
O “Protocolo de entendimento” dedica um parágrafo inteiro ao papel das pessoas que foram afetadas por atos de violência sexual (seja aqueles puníveis penalmente, seja aqueles que, embora não se enquadrando no âmbito penal, foram identificadas nas diretrizes da Conferência Episcopal em matéria de abuso sexual de menores e de adultos em dificuldade e em condição protegida). E sugere o estabelecimento, dentro das dioceses, de comitês consultivos compostos pelas vítimas, que também podem atuar em nível interdiocesano no que diz respeito ao acompanhamento dos trabalhos das várias comissões. A tais trabalhos, também podem ser convidados pessoas de fora, quando isso for considerado necessário e importante, a fim de garantir uma efetiva manutenção dos critérios e dos padrões de gestão dos abusos sexuais na Igreja Católica.
Contudo, essa sugestão não elimina o dever de respeitar e de se encarregar daquelas pessoas afetadas pelos abusos sexuais de padres ou de empregados da Igreja que desejem um percurso pessoal e não cumulativo do próprio caso. De fato, a criação das comissões deixa intocado o dever de iniciar procedimentos penais e canônicos, de direito do trabalho, ligados à identificação de casos individuais de abuso sexual.
Para referência específica ao trabalho das comissões, “as dioceses se comprometem obrigatoriamente com a mais ampla colaboração, permitindo que membros individuais tenham acesso às atas diocesanas e às informações coletadas no nível da Igreja local”.
O “Protocolo de entendimento” assinado entre a Conferência dos Bispos da Alemanha e o delegado federal para questões de abuso sexual de menores entra em vigor em cada diocese no momento em que for assinado pelo bispo local. A única exceção prevista é a do caso em que, em nível diocesano, já exista uma instituição semelhante à da comissão, conforme foi delineada no documento conjunto: nesse caso, mediante prévio reconhecimento dos dois signatários, o ordinário local deverá assinar uma declaração de equivalência – que permite que a instituição diocesana já existente atue efetivamente como uma comissão de acordo com as diretrizes delineadas no “Protocolo de entendimento”.
Assim, abre-se um período de cinco anos de importância absoluta, não apenas para o catolicismo alemão, no que diz respeito a uma gestão efetiva e resolutiva da ferida infligida pelos abusos sexuais na Igreja Católica. A escolha de uma colaboração vinculante com o Estado mostra não apenas a vontade da Igreja Católica alemã de oferecer uma transparência construtiva e verificada, mas também representa um importante investimento de confiança nas instituições públicas e estaduais, vistas como uma referência adequada de uma presença da Igreja que inevitavelmente sempre tem implicações públicas que interessam a toda a cidadania.
Por fim, a assinatura da Conferência dos Bispos da Alemanha no “Protocolo de entendimento” representa uma verdadeira confissão de cidadania por parte da Igreja alemã – com todos os deveres que isso implica, assim como aqueles direitos que muitas vezes foram reivindicados de forma unilateral pela própria Igreja.
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Abusos na Alemanha: amplo entendimento entre Igreja e Estado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU