22 Junho 2020
A devoção ao Sagrado Coração é uma figura exemplar do grande nó não resolvido entre o espírito da modernidade e o catolicismo, tanto que se poderia dizer que a referência espiritual ao imaginário do Sagrado Coração representa o modo prático pelo qual a fé católica conjugou a sua relação com o mundo moderno.
O comentário é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado em Settimana News, 19-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O imaginário do Sagrado Coração, junto com a disposição devocional da fé, parece ter se despedido das formas comuns do catolicismo ocidental – depois de terem sido uma das forças motrizes durante a modernidade europeia. Nessa longa temporada da fé, elas representaram, por um lado, um polo de resistência à racionalização cristalina do ato de crer e, por outro, a forma popular de adesão da alma crente à tradição da Igreja. Criando práticas de alteridade diante da generalizada institucionalização da fé do povo de Deus reduzida a corolário de aplicação do ditado eclesiástico.
Talvez nós, católicos da segunda metade do século XX, tenhamos nos despedido da devoção e do Sagrado Coração com excessiva rapidez, sem intuir a saudável tensão que sabiam gerar em relação ao dispositivo institucional – abrindo espaços de inusitada liberdade para a fé pessoal e comunitária. Porque uma das características da devoção é a sua tendencial esquiva ao controle e à regulação por parte da instituição eclesial: práticas da fé que geram celebrações da relação entre Deus e o ser humano que se deslocam para outros lugares em relação ao cânone litúrgico da Igreja. Às vezes cruzando-se com ele; em alguns casos por uma afinidade percebida pelo senso da fé devota; em outros, para tentar reconduzir o potencial subversivo de uma devoção para o domínio da instituição da fé.
A devoção ao Sagrado Coração é emblemática dessa oscilação – na sua parábola moderna, temporada em que se configura como prática do povo e não como simples iluminação de uma alma eleita e particularmente sensível. A devoção ao Sagrado Coração é uma figura exemplar do grande nó não resolvido entre o espírito da modernidade e o catolicismo, tanto que se poderia dizer que a referência espiritual ao imaginário do Sagrado Coração representa o modo prático pelo qual a fé católica conjugou a sua relação com o mundo moderno, no quadro daquele dualismo de poder que foi a força constituinte dos maiores ativos da própria modernidade europeia.
O mundo moderno é o mundo que deixa de ser mero reflexo de uma ordem cósmica imutável, tornando-se assim algo maleável ao qual o ser humano, com a sua obra e a sua engenhosidade, deve dar forma e orientação. As leis que regem essa ordem em devir não são mais matéria de revelação, mas sim de descoberta, ideação e invenção.
É nessa atmosfera que pode nascer algo como o “indivíduo” e o drama da sua liberdade, ou seja, aquela singularidade pessoal em devir que não é mais necessariamente predeterminada para a vida devido ao seu estado de nascimento com as suas condições ambientais. É nessa curva que o ser humano se torna um “empreendimento” para si mesmo, e o movimento à altura da sua dignidade se torna uma tarefa dramática confiada às suas mãos – como Pico della Mirandola havia intuído lucidamente.
“Estabeleceu finalmente o ótimo artífice que, àquele a quem nada podia dar de próprio, fosse comum tudo o que ele atribuíra singularmente aos outros. Por isso, acolheu o homem como obra de natureza indefinida e, tendo-o colocado no coração do mundo, assim lhe falou: ‘Não te dei, ó Adão, nem um lugar determinado, nem um aspecto próprio, nem qualquer prerrogativa tua, porque esse lugar, esse espero, essas prerrogativas que tu desejarias, tudo de acordo com o teu voto e o teu conselho tu obtenhas e conserves. A natureza limitada dos outros está contida dentro das leis prescritas por mim. Tu a determinará constrangido por nenhuma barreira, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei (...) Mas por que recordar tudo isso? Porque compreendemos, a partir do momento que nascemos na condição de ser o que quisermos, que é nosso dever cuidar especialmente disto: que não se diga de nós que, sendo honrados, não percebemos que havíamos nos tornado semelhantes a brutos e a jumentas tolas (...) Sim, que, abusando da indulgentíssima liberalidade do Pai, não a tornemos nociva, em vez de saudar a escolha que ele nos concedeu” (De hominis dignitate).
Com esse homem posto no coração do mundo, a modernidade, portanto, é o mundo que se abre e se torna espaço contestado entre forças e impulsos diversificados, tornando-se o campo no qual se aplica a liberdade e a inventividade dos seres humanos. Se, no seu coração, o mundo não é mais sagrado, se esse núcleo pulsante não está submetido a uma lei prescrita por Deus, então o mundo não está mais sob um poder que deve ser necessariamente religioso para governá-lo legitimamente. No mundo assim entendido, nasce a pretensão de um poder diferente do sagrado, de um poder francamente político em sentido moderno.
Aquilo que a modernidade política do poder não conseguiu elaborar realmente até o fim, na justificação da sua soberania, é a fonte da sua legitimação na dignidade do ser humano que dá forma a si mesmo no caminho íngreme exposto ao abismo de um recaída da sua liberdade em mera lei da natureza (por mais divina que possa ser).
Em suma, o poder é legitimado por uma dignidade que não lhe pertence e que nenhuma norma positiva pode assegurar – sendo aquilo que o ser humano deve continuamente a si mesmo. Esse fundamento ético da legitimação do poder e do exercício da política continua sendo, na minha opinião, o grande impensado da era moderna.
É precisamente diante e como resposta a essas profundas transformações, que se anunciam com os pródromos da modernidade, que vemos destacar-se no horizonte da cultura europeia uma primeira e singular conjugação da devoção ao Coração de Jesus, pelas mãos de um iletrado frade capuchinho de Bérgamo – Frei Tomás de Olera.
Na sua profunda inteligência espiritual, que gira em torno da experiência do excesso do amor de Deus realizado concretamente no coração de Jesus, Tomás mostra que é um genial intérprete das mudanças que iam delineando um novo ordenamento do humano – tanto no nível das formas públicas da coexistência entre novas classes sociais, quanto da configuração da alma como âmbito próprio em que o indivíduo dispõe de si frente à reivindicação calorosa da misericórdia excessiva de Deus – ou seja, como espaço próprio de uma dignidade tão vulnerável quanto indisponível à tomada do poder (político e sagrado).
Nos seus escritos e na disposição dedicada da sua alma, Tomás de Olera revela ao espírito europeu uma inusual sensibilidade do catolicismo ao tempo histórico em que ele é chamado a viver e aos desafios que a modernidade nascente, junto com a Reforma, coloca para fé e à Igreja. Ele compreende bem, guiado pelas harmonias da devoção ao Coração de Jesus, que, diante do novo ordenamento das coisas e do mundo, não se pode simplesmente repropor o caminho percorrido, embora com sucesso, na longa temporada medieval. No tempo novo, em vez disso, é necessário idealizar formas inéditas de posicionamento e implementação da fé católica dentro de parâmetros sociais, políticos e espirituais, em contínuo movimento e transformação.
A itinerância franciscana, que havia deslocado novamente o cristianismo para a encruzilhada dos movimentos humanos que se acendem com a retomada do comércio e das comunicações no século XII, gerando a possibilidade de um encontro dinâmico com o humano da época que a estabilidade monástica não era capaz de interceptar, encontra na plasticidade espiritual induzida pela devoção ao Coração de Jesus, na conjugação que o Frei Tomás dela faz, o seu digno correspondente moderno.
A referência que articula essa devoção em Tomás é claramente a narrativa memorial da Escritura, lida através de uma interpretação ao mesmo tempo imaginativa e afetiva. A página do Evangelho acende uma relação devota da alma crente com o mistério do excesso incontrolável de amor que é o Deus de Jesus – nesse plano, a devoção é prática identificada dessa relação (sem a necessidade de uma mediação adicional) dentro da Igreja. Sobre a contemporaneidade afetiva que assim se cria, nenhum poder instituído (seja ele mundano ou religioso) pode levantar uma pretensão de soberania. E é precisamente essa “subtração” que faz funcionar a devoção ao Coração de Jesus como reivindicação crítica de uma reforma religiosa do corpo eclesial.
É assim que o Frei Tomás encontra uma via católica adequada para recolher uma reivindicação e um desafio da modernidade nascente, imaginando dentro do catolicismo uma esfera (a devoção, justamente) em que a fé pode ser praticada como calor dos afetos crentes e não só como mero resultado intelectual de um ditado institucional. Trata-se de uma terceira via aberta pela devoção ao Coração de Jesus na decomposição confessional do cristianismo europeu: nem a pura e vertical imediaticidade da consciência a Deus proposta pela Reforma; mas também não a totalização institucional da fé que começa a se configurar na Igreja Católica que sai do Tridentino. Uma alternativa que em breve seria desativada, mas não completamente eliminada, pela curvatura que a devoção toma com Margarida Maria Alacoque – em que o Sagrado Coração toma o lugar do Coração de Jesus.
Em Paray-le-Monial, a nascente forma moderna da devoção sofre um repentino deslizamento, que a conduz novamente (completamente) para o controle instituído da Igreja – com uma ala decidida a convocar até o poder político do rei da França em seu apoio. Em suma, uma devoção que vê os seus albores como modo de habitar de maneira crente a oposição tensional do dualismo moderno do poder é rapidamente dobrada ao imaginário de uma renovada aliança entre trono e altar.
A partir da experiência da fé, individual e identificada no seio da comunidade crente, que se articula em torna da memória escritural do evento cristão do excesso de Deus que é a vivência de Jesus, passa-se à visão privada a ser submetida à verificação e controle da autoridade eclesial.
Visão que, entre outras coisas, intima um reconhecimento oficial do Sagrado Coração por parte Igreja Católica mediante a instituição de uma festa litúrgica explicitamente dedicada: selando assim a validade da devoção, independentemente da experiência crente que ela é capaz de gerar.
É essa desarticulação que cria as condições de possibilidade para aquela extinção da própria devoção, que coincidirá substancialmente com o declínio e o fim da modernidade europeia. Por outro lado, na longa temporada em que o Sagrado Coração se eleva a estandarte de uma cristandade católica que se opõe ao espírito da modernidade, como reivindicação de uma supremacia do poder sagrado sobre o poder político, as práticas devocionais ao Coração de Jesus permanecem como que em excesso em relação à domesticação litúrgica da própria devoção.
Criando, dentro do corpo católico, descartes e desvios que mantêm viva a força subversiva de uma disposição devocional do crer que habita plenamente as condições da modernidade à luz de uma excedência do ser misericordioso de Deus que nenhum poder institucional pode equiparar.
Essa é a forma dialética da devoção que chega ao Pe. Dehon: institucionalização litúrgica e excedência devocional; e é nela que ele começa a delinear o quadro de uma experiência espiritual que mostrará que tem a qualidade de um carisma fundador.
Na sua modernidade, o imaginário do Sagrado Coração integra a dialética do dualismo do poder e a do dualismo entre institucionalização eclesial e prática devocional como momento da tradição católica da fé – na qual aquilo que é descartado, ou seja, no nosso caso, a via alternativa sugerida pelo Frei Tomás de Olera, permanece como o fantasma do eleito e escolhido, ou seja, a recondução litúrgica do sistema devocional ligado a Margarida Maria Alacoque. Essa permanência traz consigo uma força de reativação do excluído que está sempre à beira de se desencadear, abrindo outras possibilidades além das institucionalmente codificadas.
Em um jogo complexo de limiares, entre desativação instituída e reativação carismática, com o Pe. Dehon a devoção ao Sagrado Coração volta a ser decisivamente uma questão de configuração afeiçoada da alma crente; dando início a um processo de lenta desinstitucionalização dessa devoção, recalibrando-a como força espiritual em torno da qual seja possível dar forma ao homem interior – na sua fundamental disposição diante de Deus.
Certamente Dehon representa ainda um trânsito entre a convenção litúrgica da devoção e a excedência devocional das suas práticas. Ao arrastar para dentro do seu sistema espiritual tanto o freio da desativação quanto a vivacidade de uma possível reativação além dos limites de uma modernidade já em declínio.
É exemplar a esse respeito a questão da piedade eucarística que atravessa toda a experiência espiritual de Dehon, fundador da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (é interessante notar como o acrônimo “scj”, que indica o pertencimento à congregação por ele fundada, elide o adjetivo sagrado para ligar sem mediação o coração a Jesus). De fato, se, por um lado, Dehon e a sua congregação ainda dependem da autoridade eclesial no que diz respeito à exposição cotidiana do sacramento eucarístico na capela das comunidades para a adoração, por outro, ele se desvincula dessa tutela eclesiástica indicando aos seus a prática da visita cotidiana frequente ao sacramento eucarístico colocado novamente no sacrário.
Aquela que, à primeira vista, poderia parecer uma questão banal de piedade devocional, acaba sendo, por sua vez, o ponto de virada para uma reativação da devoção ao Coração de Jesus, assim como esta, por um momento, se tornou possível na Igreja no início da era moderna. As harmonias de fundo entre a experiência da fé de Tomás de Olera e a restituição carismática da devoção ao Sagrado Coração do Pe. Dehon são muitas – representando aquilo que poderíamos chamar de trânsito da memória devocional para além do fim da modernidade europeia. Mas a força da reativação não consiste em uma simples repetição de uma possibilidade adormecida, mas sim na sua transfiguração, que pode levá-la até a irreconhecibilidade.
Consentir com inteligência evangélica e sensibilidade cultural com essa força da reativação é uma tarefa que cabe à congregação dehoniana no tempo presente da nossa história humana. Recolhendo o nexo entre o cuidado da dimensão interior da alma crente e as práticas civis de uma justiça social que saibam honrar aquele humano posto no coração do mundo pelo excesso benevolente da liberalidade de Deus.
O exercício efetivo dessa conjunção leva ao esboço de uma antropologia política à altura da “mudança de época” (Papa Francisco) pela qual estamos passando, em uma curva em que a circulação nas nossas sociedades de um horizonte de justiça que nenhum direito e nenhuma norma positiva podem equiparar é exatamente o modo de conservar publicamente o dever ético da dignidade humana que é comum a todos nós.
Nas cordas da espiritualidade dehoniana, existem os fundamentos para cultivar uma intensidade afetiva do espiritual, sem considerar como marginal o espaço associado do viver-juntos entre muitos em um regime de pluralismo, e para um compromisso apaixonado com a invenção social de práticas políticas atravessadas, de cima a baixo, pela excedência benevolente da justiça de Deus, sem negligenciar a qualidade espiritual da experiência interior da alma.
O horizonte messiânico que a espiritualidade dehoniana deriva da sua dimensão eucarística, possibilitada pela curvatura litúrgica da devoção ao Sagrado Coração induzida por Margarida Maria Alacoque, pode representar o eixo em torno do qual é possível fazer girar a dimensão espiritual do homem interior e a dimensão social do homem político – que em Dehon ainda permanecem substancialmente justapostas: “São necessários batizados formados para ser e agir no tempo olhando continuamente para o ultratemporal, isto é, acostumados a perscrutar a história, mas à luz do meta-histórico, da escatologia” (G. Dossetti).
A ampliação convivial do carisma da congregação aos amigos das comunidades dehonianas e a todas as pessoas encontradas na sua vivência deveria visar exatamente a isso, permanecem, assim, realmente aderente ao legado espiritual do Pe. Dehon no hoje da história humana.
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Sagrado Coração, uma devoção. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU