19 Junho 2020
“...aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, que corresponde ao texto de Mateus 11,25-30.
Uma das devoções que tiveram (e continua tendo) mais êxito ao longo da história da Igreja é a do Sagrado Coração de Jesus. As “paredes” do universo estão cheias do eco que as palavras da famosa jaculatória deixaram – “Sagrado Coração de Jesus, eu confio em vós”. São incontáveis as vezes que foram pronunciadas, e imensurável a fé de que foi portadora.
Graças ao Coração de Jesus, entronizado em milhares de casas e colocado na porta de milhões de lares, se manteve firme a experiência de prolongar a humanidade de Jesus em nossas relações cotidianas, a vinculação do Evangelho com a vida concreta, a vivência do amor, uma maneira original e inspiradora de se situar no mundo (trabalhos, atividades, compromissos...), a sintonia com a Presença Providente de Deus...
Para muitos de nossos contemporâneos, causam uma certa resistência as representações que mostram Jesus com o coração transpassado e, com frequência, rodeado com uma coroa de espinhos. Se queremos atualizar esta devoção e encontrar um sentido que responda aos anseios de muitas pessoas de hoje, é necessário deixar de concentrar nosso olhar no “coração físico” de Jesus e recuperar o sentido bíblico e amplo do coração, como centro de nossa afetividade e de nossas decisões mais íntimas. Neste sentido, o Coração de Jesus revela a misericórdia de Deus que se expressa em todas as palavras e atos do Mestre de Nazaré.
A imagem do Coração de Jesus, em sua origem, fala de amor, com maiúsculas. O Amor. Não uma imagem suave das coisas nem uma aproximação só emocional à fé, mas o Amor, que dizemos que é Deus, e que se faz visível em Jesus. Amor verdadeiro, que é uma maneira original de olhar a realidade, conhecendo-a, assumindo-a e comprometendo-se com ela. É assim que Deus nos olha. É assim que Jesus nos olha.
Seu coração se rompeu numa cruz, mas continua pulsando já ressuscitado. E essa pulsação é hoje clamor em nossa história e nosso presente.
Jesus vivia a partir de seu coração e contagiava com a força poderosa de seu amor e de sua entrega.
Por isso, a melhor devoção ao Sagrado Coração de Jesus é “entrar em Seu coração”, é sentir o amor que queimava n’Ele; é sentir-nos amados por Ele, é aprender que o caminho do verdadeiro seguimento não é um ato de piedade, mas uma atitude de vida no amor. É descobrir que a verdade das “Nove primeiras Sextas-feiras” não se restringe em “confessar e comungar”, mas está no aprender a amar como Ele nos amou.
Todos estamos no coração de Cristo. Todo estamos no Amor de Deus. Todos fomos introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, humanizou-se e se fez semelhante a nós para que todos pudéssemos nos sentir n’Ele e nos tornássemos um pouco mais humanos.
Uma devoção ao Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações humanas, prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma devoção vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.
Na nossa cultura atual, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado: corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros; corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves; corações que sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de sentimentos.
Por outro lado, vivemos um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes, cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de pré-juizos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os laços humanos.
A devoção ao Coração de Jesus pode nos ajudar a descobrir as enormes possibilidades de nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração, tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em nós um coração que faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, preconceitos, ódios...
O Coração de Jesus nos capacita olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Ao sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração de Jesus nos ajuda a recuperar o “humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar nosso coração para humanizar as relações.
No sentido bíblico, “coração” é uma palavra primordial; ela nos remete ao mais profundo e vital de nossa essência e existência. O coração designava o complexo mundo interior do ser humano.
O coração profundo é o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que não consiste no sentimento, mas no lugar do encontro com Deus. A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano, num sentido muito mais lato que o das línguas latinas, no qual o coração evoca a vida afetiva. Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e plenamente em direção a Deus e ao bem.
Recordações, pensamentos, projetos e decisões são alguns dos componentes essenciais desse órgão vital por excelência. O que acontece no coração tem caráter decisivo. “O mistério interior do ser humano, tanto na linguagem bíblica como no não bíblico, se expressa com a palavra coração” (Xavier León-Dufour).
O despertar da identidade única de cada pessoa se dá no santuário de seu interior, que é o coração. Nele está estampada nossa imagem e semelhança divinas, pois no coração está gravada a imagem divina oculta. S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de Deus”.
“O sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração” (Olivier Clément). Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre” onde se guarda/oculta o que é mais nobre e rico em nós. Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
O coração é uma dessas palavras nas quais toda a multiplicidade se torna uno.
É ele que possibilita a pessoa chegar à unificação de todo o seu ser, integrando a corporalidade, a afetividade, a sensibilidade, a razão..., para além da bela expressão de Pascal: “O coração tem razões que a razão não conhece”. O fato é que há “olhos no coração” que permitem compreender o que nem os olhos do corpo, nem a razão são capazes de perceber: “Rogo a Deus que ilumine os olhos dos vossos corações, para que conheçais qual é a esperança à qual fostes chamados” (Ef. 1,18).
Enfim, o coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, fonte das bem-aventuranças, santuário da ação misteriosa de Deus e do encontro com Ele. Por isso, chegar ao lugar do coração é dom de Deus.
Talvez o resumo mais belo do que gera a oração do coração seja o que disse S. João Crisóstomo: “O coração absorve o Senhor, e o Senhor absorve o coração, e os dois se fazem uno”.
A intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro do coração, o orante se abre ao coração da realidade.
- Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Coração divino que nos humaniza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU