22 Março 2024
"Por um lado, de fato, o enredo da sua vida, marcada em 1821 pela ordenação presbiteral, tinha registado uma sequência de contatos de alto nível, até mesmo com papas, políticos e grandes autores (Gioberti, Tommaseo, Cesare Cantù, La Mennais e, justamente, Manzoni, de que leu o rascunho de sua obra prima em 1826). Em 1848, Pio IX anunciou-lhe a púrpura e nas salas do Vaticano correram rumores de que o pontífice o queria como Secretário de Estado. Numa visita à sua histórica casa em Rovereto, eu próprio pude ver, conservadas em vitrines, as vestes cardinalícias já preparadas e nunca usadas. Por outro lado, de fato, como acontece frequentemente nos palácios, mesmo naqueles sagrados, ocorreu uma virada radical", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 17-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Antonio Rosmini. De volta às livrarias o famoso ensaio Delle cinque piaghe della santa Chiesa” [Sobre as Cinco Chagas da Santa Igreja], que “devem ser enfaixadas, para curá-las com o óleo da consolação”. Destacamos a curadoria de Nunzio Galantino e o posfácio de Giuseppe Lorizio “Adorar, calar, desfrutar”: assim, já moribundo, sussurrou a Alessandro Manzoni que tinha ido a Stresa para a última despedida, selando encontros, diálogos, consonâncias ideais e espirituais posteriormente recolhidos no Stresiane. Depois de uma dolorosa agonia de oito horas, Antonio Rosmini faleceu: era a madrugada de 1º de julho de 1855 e ele tinha 58 anos, nascido em Rovereto em 1797. A existência desse extraordinário sacerdote e pensador, figura capital não só na vida eclesial e cultural, mas também política, do século XIX foi gloriosa e atormentada e aquela trilogia verbal, confiada ao autor de Os Noivos, constituía quase uma síntese autobiográfica mística, mas também um tanto paradoxal.
Antonio Rosmini, Delle cinque piaghe della santa Chiesa, San Paolo (Foto: Divulgação)
Por um lado, de fato, o enredo da sua vida, marcada em 1821 pela ordenação presbiteral, tinha registado uma sequência de contatos de alto nível, até mesmo com papas, políticos e grandes autores (Gioberti, Tommaseo, Cesare Cantù, La Mennais e, justamente, Manzoni, de que leu o rascunho de sua obra prima em 1826). Em 1848, Pio IX anunciou-lhe a púrpura e nas salas do Vaticano correram rumores de que o pontífice o queria como Secretário de Estado. Numa visita à sua histórica casa em Rovereto, eu próprio pude ver, conservadas em vitrines, as vestes cardinalícias já preparadas e nunca usadas.
Por outro lado, de fato, como acontece frequentemente nos palácios, mesmo naqueles sagrados, ocorreu uma virada radical.
Poucos meses depois daquela audiência, em 1849, o próprio papa sancionava a condenação de duas de suas obras ao Índice dos Livros Proibidos. Uma delas é o famoso ensaio Sobre as cinco chagas da Santa Igreja, longamente elaborado em 1832-1833, retocado e publicado anonimamente em Lugano apenas em 1848, após a ascensão ao trono de Pedro (1846) justamente daquele Pio IX que o conduziria do altar ao pó. Pois bem, a obra reaparece agora nas livrarias numa reedição exemplar editada pelo bispo Nunzio Galantino, também colaborador do nosso suplemento.
Devemos a ele uma ampla introdução - sob a insígnia da liberdade e do amor que Rosmini atestou para a Igreja nos dias luminosos e naqueles tempestuosos -, um rico comentário ao texto reconstruído na forma final desejada pelo autor, um detalhado índice analítico e uma preciosa bibliografia comentada e ampliada tanto para as versões como para toda a arquitetura do pensamento de Rosmini.
Muito sugestivo é o posfácio de um dos melhores teólogos italianos, Giuseppe Lorizio, que atualiza em contraponto “as pragas de ontem e/ou de hoje” da Igreja, mostrando os elementos datados do ensaio, mas também “a relevância indiscutível para o presente”. Como se depreende do próprio título, os cinco capítulos da obra de Rosmini pontuam as chagas do Cristo crucificado, chagas que permanecem também no Ressuscitado, se é verdade que Tomé, o apóstolo incrédulo, é convidado a colocar a mão nelas, como Caravaggio mostrará na impressionante tela de Potsdam. Vamos tentar, então, seguir essa simbologia partindo da primeira chaga, a da mão esquerda: ainda sangra devido à divisão entre povo e clero na liturgia e na supremacia do ministério sacerdotal sobre o sacerdócio comum dos fiéis. Imagina-se facilmente a antecipação da visão de Rosmini em relação aos temas que estariam na pauta do Concílio Vaticano II e do Sínodo votado pelo Papa Francisco.
A insuficiente formação do clero que se manifesta num déficit cultural, mas também social é a segunda chaga, a da mão direita. Descemos depois ao lado dilacerado de Cristo na cruz e aqui revela-se a divisão letal dos bispos entre si, que se reflete na unidade harmoniosa da Igreja, delineada por Rosmini em contraste com um passado ideal e talvez visto como excessivamente idílico.
A quarta chaga no pé direito do Crucifixo surge diante de nós: é a nomeação dos bispos muitas vezes confiada ao poder político. A referência é certamente a uma época histórica ultrapassada (pense-se ao episcopado de eleição napoleônica ou ao veto dos imperadores cristãos oposto nos conclaves papais), no entanto, conserva a sua atualidade no fenômeno interminável das recíprocas ingerências entre Igreja e Estado ou da mistura entre fé e política.
A obra termina com a quinta chaga no pé esquerdo de Cristo: a cena é “a servidão dos bens eclesiásticos", eco permanente de um feudalismo que agora se apresenta de diferentes formas na relação com o dinheiro, com as degenerações financeiras e, mais em geral, com o poder temporal ou com aquele clericalismo frequentemente denunciado pelo Papa Francisco, também na raiz dos abusos de menores ou de pessoas frágeis. Como se pode intuir, esse pentagrama ainda hoje está aberto na mesa da pastoral eclesial. É claro que ao ler as páginas de Rosmini se vislumbram as contingências históricas, mas o pulsar daquelas chagas é ainda profundo.
Como escreve Lorizio no posfácio, elas “devem ser enfaixadas, não para escondê-las dos nossos olhos e daqueles do mundo, mas para tratá-las e curá-las com o óleo da consolação e o vinagre do estímulo à conversão”. Paralelamente, lembramos que, em 1828, Rosmini fundou uma comunidade religiosa, o Instituto da Caridade (conhecido como dos Rosminianos) com a missão educativa em colégios e escolas, com o anúncio da mensagem cristã pelo diálogo com os não crentes, o cuidado dos emigrados e as publicações. Entre os membros dessa comunidade vale a pena mencionar um convertido que foi um dos poetas mais intensos e originais do século XX, Clemente Rebora, também falecido em Stresa em 1957.
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A atualidade das feridas de Cristo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU