15 Fevereiro 2024
"De preparação e envergadura indiscutíveis, Pacelli é o papa mais controverso do século passado, e o católico d'Ormetton apresenta um retrato vívido em claro-escuro: por um lado o admira, mas por outro, ao mesmo tempo, não esconde as limitações evidentes do pontífice eleito há pouco mais de um ano", escreve Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, em artigo publicado por Domani, 11-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando em 1939 o conclave convergiu na sua rapidíssima escolha por Eugenio Pacelli, o mais papável dos papáveis, o cardeal protodiácono - responsável por pronunciar o habemus papam e depois o nome de batismo do escolhido - assim que falou Eugênio foi interrompido pelo clamor da multidão. O nome tinha que ser seguido pela fórmula usual sanctae Romanae ecclesiae cardinalem e obviamente pelo sobrenome. Todos haviam entendido, mas naqueles poucos instantes Camillo Caccia Dominioni teve a presença de espírito de sussurrar ao ouvido do seu colega Eugène Tisserant: “E se eu disser Tisserant?”
O inesperado episódio, juntamente com outros pouco conhecidos ou desconhecidos, é contado por Wladimir d'Ormetton o jornalista e escritor, durante anos uma figura muito popular no Le Figaro, que foi duas vezes embaixador da França na Santa Sé. Publicado recentemente, Ma tragique ambassade (Tallandier) relembra os cinco meses romanos, do final de maio ao início de novembro de 1940, da primeira missão, de imediato muito difícil.
De antiga família aristocrática, o famoso jornalista e escritor foi enviado pessoalmente ao Vaticano justamente enquanto a guerra se espalha por todo o continente e a França enfrenta um dos seus piores períodos história.
São as semanas em que o país está afundando, esmagado pela ofensiva de Hitler e ocupado pelos alemães, que deixam ao Sul o regime colaboracionista de Vichy liderado pelo marechal Pétain, o octogenário protagonista da Primeira Guerra Mundial.
No pano de fundo europeu e francês no relato do embaixador são delineados com inteligência e sem reticências o microcosmo do Vaticano - atravessado por diferentes tendências e intimidado pelo fascismo – e a figura de Pio XII, o último Papa romano. De preparação e envergadura indiscutíveis, Pacelli é o papa mais controverso do século passado, e o católico d'Ormetton apresenta um retrato vívido em claro-escuro: por um lado o admira, mas por outro, ao mesmo tempo, não esconde as limitações evidentes do pontífice eleito há pouco mais de um ano.
O retrato do papa contrasta com aquele do impetuoso Tisserant, o outro Eugênio no conclave. Figura fora do comum, aquela do prelado de barba vistosa – desde 1951 durante um vintênio reitor do “sagrado colégio” – é excelentemente reconstruída por Étienne Fouilloux para Desclée de Brouwer graças ao enorme arquivo pessoal sobre o qual muito se especulou.
O cardeal, orientalista e bibliotecário, tinha de fato ordenado a sua preservação fora do Vaticano (como aconteceu com os documentos não oficiais de Roncalli, Montini e Casaroli): “Adoro a história e a história recebe das correspondências privadas uma parte da sua melhor documentação”.
O relato do embaixador pode ser comparado a esse gênero literário, por ser baseado no diário cotidiano, depois depositado no Quai d'Orsay, sede do ministério do exterior em Paris. A partir dessa documentação pessoal – apenas em pequena parte utilizada por Owen Chadwick e, mais ideologicamente, por David Kertzer – d'Ormetton escreve dois anos após o fim de sua missão.
Em poucas semanas a narrativa, fluida e apaixonada, por vezes literária, conclui-se no dia do Natal de 1942, o quarto inverno da guerra.
Em 1954, d'Ormetto - tendo regressado há seis anos da representação diplomática - escreve preliminarmente que, “se alguns juízos formulados sobre o caráter do Sumo Pontífice ou sobre a Santo Sé às vezes parecem um pouco excessivos também para mim, é porque quando escrevi essas páginas eu estava ainda como alguém ‘esfolado vivo’. Mas eu não quis fazer correções nessas impressões frescas e imediatas”. E o manuscrito do relato confirma isso. Conservador, a princípio sem preconceito em relação a Mussolini e simpatizante de Franco, d'Ormetton é, em vez disso, "ferozmente hostil a Hitler", observa no prefácio do livro Gérard Araud, que acrescenta como esse católico “visceralmente anticomunista” – e só mais tarde Gaullista – rejeita logo o regime de Vichy.
E a descrição final da sua decepcionante visita de cortesia a Pétain mostra o desengano aristocrata do diplomata recentemente afastado sem aviso prévio: “Na antecâmara do marechal, esperava-se a vez como no dentista, no meio de uma profusão de gente indo e vindo, errando de porta, procurando sabe-se lá quais chefes de escritório. Uma desordem totalmente democrática reinava nesses ambientes do chefe de Estado, um dos mais autoritários que já tivemos”.
Como em um vaudeville.
Já na sua chegada a Roma, a missão do novo embaixador revela-se impossível, apesar do seu antecessor, François Charles-Roux, tivesse se vangloriado em Paris a d'Ormetton de ter sido um grande eleitor de Pacelli: convencer o Papa a impedir que Mussolini entrasse em guerra e da agressão pretensiosa a uma França já derrotada por Hitler, nessa altura já decididas há meses.
O diplomata lembra então a recomendação lida nas memórias de um cardeal francês do século XVII e transcreve-a com amargura: “Há muitas pessoas em Roma que adoram assassinar aqueles que estão no chão. Não caiam...”
Entre as primeiras funções d’Ormesson está a visita imediata ao secretário de Estado, Luigi Maglione, ex-núncio do Papa na França. Ele é um amigo, que tira qualquer ilusão do embaixador sobre a possibilidade de evitar a guerra: de Mussolini e dos seus ministros - "aqueles senhores", como o cardeal os chama - "não se pode esperar nada... nada... absolutamente nada”.
E baixando a voz recomenda cautela ao embaixador recém-chegado, porque os italianos têm os códigos dos diplomatas franceses. “Se o Palazzo Chigi sabia tudo o que estava acontecendo no Vaticano, o oposto também era verdade" comenta o diplomata, que descreve o pequeno mundo do Vaticano infiltrado por espiões fascistas e por simpatizantes do regime.
Justamente às vésperas da entrada da Itália na guerra, o novo embaixador da França é recebido no dia 9 de junho em audiência pelo pontífice – será a primeira de cinco em cinco meses, um recorde – para a apresentação das credenciais.
O diplomata havia conhecido Pacelli em 1937, em Paris, e o cardeal secretário de Estado falou-lhe do regime de Hitler “com uma franqueza, uma firmeza, quase diria com uma violência” que o impressionaram.
Agora a linguagem do papa era “infinitamente mais moderada”: porque se sentia mais obrigado a uma maior discrição ou talvez porque já não era mais o principal colaborador de Pio XI, que era fortemente antinazista, como observa o diplomata.
A diversidade entre Pacelli e o Papa Ratti, que o designou de diversas maneiras, é muito clara: “Pio XII é certamente um homem distinto, um bom homem, um homem puro. Mas carece de temperamento. Deleita-se com as nuances e procura as sombras. A esse respeito, a diferença que o separa do seu antecessor é imensa”. Um lombardo, o outro romano que "respirava a atmosfera da cúria desde o nascimento", diferente até fisicamente: Pio XI “maciço, arrogante, sem fascínio, um tanto vulgar”, Pacelli “magro, alto, distinto, fascinante na sua delicadeza”. E diferentes eram o Papa e Tisserant, o impetuoso francês a quem os filhos do embaixador dão o apelido de “cardeal de Gaulle” (como Roncalli também o chamará) porque, vigorosamente contrário às forças do Eixo, "anticlerical tanto quanto possível para um homem da igreja", nunca escondia o que pensava. Clássico “elefante numa loja de cristais”, não era amado pelo pontífice: o prelado não votou nele no conclave – Fouilloux, porém, é mais matizado – e não o apreciava.
Mas depois de um duro confronto com o papa, o cardeal ajoelhou-se e, segundo um antigo costume, beijou-lhe o pé: “Pio XII levantou-o então e abraçou-o”.
A despedida do embaixador do Papa termina com o Angelus: “Não restava que uma oração, pura como uma chama, que subia dos lábios daquele que tinha de Cristo as chaves da vida futura e que, de joelhos, como o mais miserável entre nós, orava com humildade”.
Aquela de um homem com defeitos, “não sintonizado com os acontecimentos de ferro e fogo que brutalizam a cristandade e o mundo"; mas ninguém pode recusar a homenagem devida à sua delicadeza, à sua pureza totalmente angelical".
Oito anos depois, d’Ormesson retorna pela segunda vez como embaixador e, num contexto completamente diferente – em 1954 fala das “incríveis mudanças que ocorreram no Vaticano” – reencontra Pio XII. Que contará em outros dois livros.