18 Setembro 2023
“Essa é uma carta inédita, escrita por um jesuíta alemão antinazista, Lothar König. Contém um anexo com estatísticas dos padres detidos nos campos de concentração mandados construir por Adolf Hitler. Mas principalmente fala de Auschwitz e Dachau. E relata informações de fontes confiáveis segundo as quais todos os dias cerca de seis mil judeus e poloneses eram mortos "nos altos-fornos" do Lager Bełzec, perto da fronteira com a Ucrânia. Está datada de 14 de dezembro de 1942...". Giovanni Coco, um dos “oficiais” – no léxico da hierarquia interna – mais respeitados daqueles que até 2019 foram os Arquivos Secretos do Vaticano, depois renomeados Apostólicos, mostra a folha datilografada e amarelada que despontou do labirinto de arquivos armazenados no bunker subterrâneo onde é protegida a memória da Igreja e do Ocidente: mesmo a mais inconfessável. Tira a carta de uma pasta de papelão azul clarinho com o antigo cabeçalho “Arquivos Secretos do Vaticano”.
A entrevista com é de Massimo Franco e publicada por La Lettura, caderno dominical do Corriere della Sera, 17-09-2023.
Ao lado dele, em frente à grande janela que olha para os jardins pontifícios, sob uma pintura a óleo da escola de Caravaggio, intitulada Os dois jogadores, está sentado D. Sergio Pagano, o bispo que desde 1997 é prefeito do Arquivo: o homem por cujas mãos passaram e passam os documentos mais reservados. Pagano assiste à conversa, intervindo o mínimo possível. Mas foi ele que encarregou Coco de descobrir o que continham aqueles envelopes desgastados, às vezes até adulterados; e entregue somente após muita insistência. Nos últimos meses, depois de uma cansativa reorganização e pesquisas meticulosas, apareceu uma verdade que está destinada a reanimar a discussão sobre os “silêncios de Pio XII” a respeito do extermínio dos judeus. Está tomando forma uma história de ameaças nazistas contra a Igreja Católica; de preconceitos do Vaticano que beiram o antissemitismo; de terror papal pelas possíveis represálias de Hitler. Aparece até uma adaga com insígnias nazistas, que um soldado da SS arrependido teria entregue a Pio XII, depois de lhe confessar que deveria ser usada para matá-lo.
Giovanni Coco nasceu em Catânia em 1972. Formado em Letras pela Universidade de Catânia, trabalha no Arquivo Apostólico do Vaticano desde 2002, onde é arquivista e pesquisador. Publicou em 2006 o livro Santa Sede e Manchukuò (1932-1945), publicado pela Libreria Editrice Vaticana, e em 2019 Il Labirinto romano. Il filo delle relazioni Chiesa-Stato tra Pio XI, Pacelli e Mussolini (1929-1939), com prefácio de Emilio Gentile, publicado pelos Arquivos Secretos do Vaticano. Também autor de artigos científicos, está prestes a publicar o ensaio A parábola da “última” encíclica de Pio na revista “Quaderni di storia” dirigida por Luciano Canfora.
Doutor Coco, que valor tem essa carta?
Enorme, acredito. É um caso único, porque representa o único testemunho de uma correspondência que devia ser rica e prolongada no tempo. Percebe-se pela familiaridade com que Lothar König dirige-se em alemão ao Padre Robert Leiber, secretário de Pio XII. Lieber Freund!, caro amigo.
König era o homem de ligação entre o Arcebispo de Munique, Cardeal Michael von Faulhaber, inimigo jurado do nazismo, e o Vaticano. Ele fazia parte do Círculo Kreisau, uma rede da Resistência alemã composta por católicos e protestantes, cujo serviço de inteligência teve condições de fazer chegar a Roma as informações mais confidenciais sobre os crimes de Hitler.
Esse é o único testemunho que existe ou o único que vocês têm? Poderiam existir outras cartas?
Não podemos descartar nada. Nós recuperamos essa. Mas existem suspeitas fundamentadas de que outras cartas poderiam ter sido destruídas já durante a guerra, por medo, ou foram perdidas após morte do Papa. Você sabe, os documentos sobre Pio XII custaram vinte anos de pesquisa e três de reorganização. E a carta de König chegou até nós dos arquivos da Secretaria de Estado e no lamentável estado em que se encontra, há relativamente pouco tempo, em 2019.
E vocês não se deram conta antes?
Infelizmente não. Não estava conosco porque não nos havia sido entregue pela Secretaria de Estado que, por sua vez, tem dificuldade em recolher e repassar os tantos documentos produzidos nos seus diversos escritórios e preservados em mil recantos. Os discursos e os textos datilografados de Pio XII haviam sido colocados em caixas de plástico numa ala do arquivo, os chamados "sótãos", onde aliás estavam se estragando devido ao calor e à umidade. As outras cartas estavam guardadas todas misturadas.
Por descuido ou de má-fé?
Principalmente por descuido. Provavelmente quem manejou aqueles documentos antes de nós não entendeu a importância do conteúdo. Você sabe, no passado os arquivos nem sempre eram vistos como uma prioridade em alguns escritórios do Vaticano. E nem sempre no passado — fora daqui - os arquivistas eram selecionados com base no seu profissionalismo.
A carta de König fala sobre Dachau e de Auschwitz. Era a primeira vez que chegavam informações sobre o extermínio nesses campos?
Não. O nome de Dachau já era conhecido há tempo e desde janeiro de 1941 tinha se tornado o campo de detenção para o clero. E na realidade o nome de Auschwitz também era conhecido no Vaticano desde 1941. Era conhecido como campo de concentração e haviam falado dele vários padres que viviam na Europa Oriental ou que viajavam nos países ocupados pelos nazistas. A novidade e a importância desse documento derivam de um fato específico: sobre o Holocausto, dessa vez temos certeza que da Igreja Católica Alemã chegavam a Pio XII informações exatas e detalhadas sobre os crimes que estavam sendo perpetrados contra os judeus. Estamos falando do campo de concentração de Bełzec, não longe de cidade ucraniana de Rava-Rus'ka onde entre 5 e 11 de dezembro de 1942 foram fuzilados mais de cinco mil judeus. ‘As últimas informações sobre Rawa-Russka com seu alto-forno da SS, onde todos os dias morrem até 6.000 homens, especialmente poloneses e judeus, me foram confirmadas por outras fontes...’, escreve König. Mas a carta também menciona outro relatório que não conhecemos ainda, referindo-se a Auschwitz.
É mais uma confirmação de que o Papa sabia.
Sim, e não só desde aquele momento. Mas a carta indicava algo novo. Dava informações em primeira mão sobre os campos de extermínio. No Vaticano os campos de concentração eram inicialmente conhecidos como locais de detenção em massa especialmente para poloneses e judeus, onde pessoas morriam devido aos maus-tratos que recebiam. Só depois se teve consciência sobre a ‘solução final'.
König e sua rede de inteligência sobreviveram à guerra?
Após o atentado do coronel Stauffenberg a Hitler em julho de 1944, König tornou-se um procurado. E para escapar da captura refugiou-se na carvoaria de um convento em Pullach, perto Munique. Lá ele permaneceu escondido até o fim do conflito. Mas ele adoeceu e morreu logo após a queda do nazismo. Por outro lado, ele sabia que estava arriscando a vida. Ele diz isso claramente na carta.
Ele diz isso em que termos?
Recomendando ao Vaticano que utilize aquelas informações com a máxima cautela, sem dizer uma única palavra que pudesse trair as fontes. König temia um vazamento do Vaticano, ou que a carta pudesse ser descoberta no caso de uma ocupação nazista. Ele escreve: ‘...Aqui está a continuação da minha lista da última vez. Os números são oficiais... Há também um relato de várias testemunhas oculares sobre o 'tratamento’ dispensado aos judeus em Dachau. ‘Ambos os anexos são foram obtidos com o máximo risco. Não só a minha cabeça está em risco, mas também a cabeça dos outros se não forem utilizados com a maior prudência e cuidado...’ Era um convite ao silêncio para não queimar a rede da resistência alemã ao nazismo.
Existia realmente o medo ou a possibilidade de o Vaticano ser ocupado pelos nazistas?
Circulavam rumores. É difícil dizer até que ponto eram verdadeiros e levados a sério. Da vontade de Hitler ocupar o Vaticano existem várias pistas, mas não sabemos quão concreta foi durante a guerra.
O que quer dizer?
Se ele tivesse vencido a guerra, não estava excluído que o Führer pensasse em ‘acertar contas’ com o Vaticano. E em 1942 ainda não estava descartada a possibilidade de Hitler ter sucesso. Os rumores eram tão insistentes que Pio XII pediu confirmação ao embaixador alemão da época, Ernst von Weizsäcker, que naturalmente o excluiu. Mas o Papa sentia essa pressão ameaçadora.
Na sua opinião, como sai disso a figura de Pio XII? Um Pontífice ameaçado e temeroso, ou um Papa preocupado pelas possíveis represálias?
Não temeroso. Para Weiszäcker o Papa Pacelli disse: ‘Vou ficar aqui’. Mas certamente pressionado pela sensação de estar na mira, de ser um possível alvo. Por outro lado, se até mesmo um soldado da SS podia encontrá-lo e esfaqueá-lo...
Sim, a história do punhal... Parece o enredo de um filme. Considera o fato crível?
É um fato que naqueles anos circulavam muitos loucos por aí. Mas parece que se trata de uma história verídica. A primeira vez que se falou disso foi no restrito círculo papal em 1963, quando João XXIII encontrou num canto do apartamento pontifício de Pio XII uma adaga alemã com friso nazista. Ele perguntou ao substituto da Secretaria de Estado Angelo Dell'Acqua do que se tratava. Mas Dell’Acqua não sabia nada. Então procurou a Irmã Pascalina Lenhert, o "oráculo" de Pio XII, a sua governanta. E a Irmã Pascalina revelou que a adaga havia sido trazida numa audiência por um membro da SS que deveria usá-la contra Pio XII. Mas o soldado havia se arrependido e a deixou para o Papa.
Poderia um nazista armado chegar à presença de Pio XII sem ser controlado?
Os controles naquele período eram frouxos. Estava-se em guerra. E os pedidos de audiência eram rotineiros. Havia, na época, a fila dos alemães, e após o fim do conflito dos estadunidenses, canadenses, ingleses, australianos.
Naquelas semanas, o Papa foi solicitado por Myron Taylor, representante pessoal da Presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, para dizer algumas palavras fortes sobre a perseguição dos judeus. Mas ele não o fez. Por quê? Ele tinha os elementos.
Outros receios também tiveram influência: em primeiro lugar, a possibilidade concreta de represálias nazistas contra os católicos poloneses, seu rebanho de fiéis. Teria significado cortar relações com os bispos dequela comunidade já sob o domínio nazista. E, além disso, numa grande parte do mundo vaticano, pairava o preconceito contra os judeus não só no plano religioso, mas às vezes também antissemita.
Está se referindo a alguém em particular?
Refiro-me em particular a monsenhor Angelo Dell'Acqua, que paradoxalmente viu ser confiado a ele o dossiê dos judeus. E não intencionalmente, mas por acaso. Ele ingressou na Secretaria de Estado em 1938, justamente às vésperas das leis raciais na Itália. Ele se tornou o contato de referência primeiro para as práticas relativas aos judeus italianos e depois para todas as questões do mundo judaico.
E influenciou a posição de Pio XII?
Muito, infelizmente. Suas opiniões eram ouvidas: ele era o ‘especialista’. Ele fornecia uma orientação, uma direção na interpretação das notícias que chegavam. Também na resposta dada a Myron Taylor está a sua mão. Ele minimizou as revelações sobre os campos de extermínio. Disse que não se podia confiar demasiado nos europeus orientais e nos judeus, pois eles tendiam a exagerar. Ele escreveu que o que Taylor escreveu continha ‘notícias gravíssimas’. Mas, completou, ‘precisamos ter certeza que correspondem à verdade, porque o exagero é fácil também entre os judeus. E... também os orientais não são um exemplo de sinceridade’.
O problema é que o Papa endossou essa análise redutiva, apesar de ter outras informações.
Era funcional a uma linha cautelosa, em última análise já decidida, temendo que os nazistas atacassem todos os católicos poloneses: embora houvesse também uma nota de D. Giovanni Battista Montini, o futuro Paulo VI, também essa inédita, que registrava uma conversa tida em 27 de setembro com D. Enrico Pucci, bem posicionado nos círculos do regime fascista e nos serviços secretos. Era um padre tão bem informado quanto discutido.
E o que dizia a nota?
Contava que D. Pucci havia conversado com o ministro Guido Rocco, ex-embaixador e diretor de imprensa estrangeira do Ministério da Cultura Popular. E que Rocco tinha ‘manifestado sentimentos de deploração pelas terríveis deportações e eliminações que estão sendo feitas de judeus inocentes’.
Um ministro fascista que deplorava o massacre dos judeus?
Um ministro fascista que tinha uma esposa de origem judaica. É também por isso que a sua confidência foi considerada tão credível que induziu Montini a escrever uma nota para enviar ao Papa.
Esses documentos não poderiam ser mais uma pedra no processo de beatificação de Pio XII?
Não saberia dizer. Certamente ajudam a explicar melhor seu comportamento. Claro, eu duvido que a Postulação tenha tido conhecimento desses documentos antes, também devido à sua história aventurosa. Pelo que se sabe, Pio XII foi declarado ‘venerável’ em 2009, com um decreto de Bento XVI que ‘atesta o caráter heroico de suas virtudes’, como se diz na linguagem técnica. Mas parece-me que desde então o processo não avançou muito.
O senhor escreveu um livro sobre os “Documentos de Pio XII para além do mito”. E em outubro participará de uma conferência organizada pela Universidade Gregoriana em conjunto, entre outros, com o Museu do Holocausto de Washington e o Yad Vashem de Jerusalém. Que efeito terão esses novos documentos sobre as relações entre a Santa Sé e o mundo judaico? Não estão destinados a alimentar novas polêmicas?
Espero que, em vez disso, alimentem uma nova consciência e ajudem a esclarecer. Debatemos por mais de meio século sobre documentos e fontes indiretas. Agora temos as diretas e outras provavelmente surgirão. Nós nos esforçamos para torná-las o mais acessível possível a todos, para que se possa entender a terrível época em que Pio XII liderou a Igreja. Tudo deve emergir, sem medos nem preconceitos. É isso que estamos fazendo nos últimos anos aqui no Arquivo.
O prefeito Pagano sorri e acena com a cabeça. Ele foi o primeiro a querer e recomendar a máxima transparência nos documentos de Pio XII.
Giovanni Coco (org.) Le “Carte” di Pio XII oltre il mito. Eugenio Pacelli nelle sue carte personali. Cenni storici e inventario, arquivo apostólico vaticano cidade de vaticano, páginas XII + 499 e 40. Nas livrarias a partir de 18 de setembro
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Pio XII sabia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU