30 Janeiro 2018
Em Primo Levi muitos se espelharam, porque o escritor sobrevivido aos horrores de Auschwitz não exibia a coragem indômita de um super-homem, mas ele tinha a força que brota da vontade daqueles que dominaram o medo. Sua história nasce da raiva dos ferimentos sofridos (físicos, mas principalmente psicológicos) que o levaram a querer contar imediatamente o que os outros sobreviventes dos campos de extermínio calaram por quase trinta anos, com medo de não serem acreditados.
A reportagem é de Antonio Ferrari, publicada por Corriere della Sera, 27-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este judeu, convicto antifascista, depois de alguns desentendimentos familiares, havia se juntado à resistência, e depois do armistício de 8 de setembro de 1943, embrenhou-se nas montanhas da Val d'Aosta. "Agora quem quer realmente lutar, tomou o rumo das montanhas", escreveu Ruggero Zangrandi.
Não teve sorte, Primo Levi. Capturado pelos nazi-fascistas, preferiu confessar sua origem - "Eu sou judeu" – do que correr o risco de comprometer os companheiros que lutavam com ele contra os ocupantes alemães e as forças da República Social italiana fascista.
Preso em seguida, foi levado para o campo de trânsito de Fossoli, não muito longe de Carpi, perto de Modena. Dali, foi embarcado em um trem de carga onde havia cinquenta pessoas por vagão, viveu o destino de tantos desafortunados que compartilharam uma viagem cruel, em que a maioria, especialmente os idosos e os mais vulneráveis, morreu antes de chegar ao seu destino. Levi teve uma primeira "sorte", poder-se-ia talvez dizer.
Sendo graduado em química, ele obteve o "privilégio" de ser transferido depois de algum tempo para Buna-Monowitz, campo conhecido como Auschwitz III, que ficava a poucas centenas de metros do campo principal. Ele não tinha uma saúde de ferro, aliás, era bastante debilitado, mas logo foi cercado pela humanidade de algumas pessoas que conseguiam entender o drama. E é aí que Levi descobriu o mundo feroz, solidário e implacável dos meandros do campo de extermínio, onde cada um tinha um papel: os mortos vivos, o redestinados, os empreendedores, os kapos (chefes judeus).
As câmaras de gás ficavam a uma curta distância e de suas chaminés saia fumaça e cinzas. Se questo é un uomo, obra-prima de testemunho direto e realismo, é a história-documento que Levi escreveu no gueto, entre o final de 1945 e janeiro de 1947. Um terrível mergulho, no desejo de saber, ver e conhecer ao que pode levar a abjeção, e entrada em um inferno dantesco.
Primo Levi respirou a vida do campo de extermínio, e principalmente se ligou ao grupo judaico de Salônica, originário da cidade ao norte da Grécia, que havia aprendido rapidamente, tendo sido deportado cedo, as imundas regras do campo, onde tudo, cada objeto, cada informação, cada pedaço de pão tinha um preço e um valor. A fome era um pesadelo, e os judeus de Salônica se mostraram "ladrões, sábios, generosos, vilões e solidários", como os descreveu Levi, e como mencionado por Sergio Luzzatto nas colunas do nosso jornal "Corriere della Sera" em 2007. É como se em Auschwitz houvesse uma bolsa de valores, que calculava não só os valores tirados dos carrascos nazistas ou dos judeus que os haviam escondido. Uma Bolsa de valores que seguia indicadores cruéis de um mercado capitalista ao extremo, muito além de qualquer hedge fund ou Bitcoin.
Por exemplo, como relata Levi, uma troca de roupa de baixo no mercado do campo tinha regras férreas: às vezes era possível trocar uma camisa com rações discretas de alimentos, outras vezes, a camisa ou as roupas íntimas não valiam nem um pedaço de pão. Liliana Segre, que o presidente Sergio Mattarella nomeou senadora vitalícia, contou que certa vez, na fila aguardando a distribuição de uma improvável sopa para um grupo de famintos, ouviu de uma detenta à sua frente que naquela "lavagem" nadava um rato. Segre respondeu: "Talvez o rato caia bem."
A fome era realmente um pesadelo. Os presos de Salônica que conheciam todos os segredos e artimanhas do campo, haviam se tornado, por bem ou por mal, os donos das cozinhas, contando com uma fina e tarimbada rede de pequenas corrupções. Um judeu de Salônica, que agora pertencia à Sonderkommando, ou seja, os judeus encarregados da limpeza das câmaras de gás e dos fornos crematórios, contou à colega Alessia Rastelli e a quem escreve que também era possível tentar escapar do forno, pagando uma quantidade significativa ou algum dente de ouro.
Sami Modiano, que vinha de Rhodes, nos contou que já destinado ao gás, foi salvo porque tinha chegado um carregamento de batatas na estação e os nazistas precisaram de braços jovens para descarregá-las. Nedo Fiano, outro sobrevivente, contou-nos ter sido salvo porque sabia alemão, sabia cantar e era de Florença. O oficial-carrasco, que talvez tivesse ido de férias para a capital da Toscana com sua namorada, sentia simpatia por ele.
Primo Levi, nas páginas mais intensas de Se questo é un uomo (Nota de IHU On-Line: É isto um homem? São Paulo: Rocco, 2013), narra as primeiras noites no colchão de palha e o ingresso naquele terrível estado de torpor entre o sonho de rever a liberdade, a casa, os amigos, e o pesadelo de um alimento abundante que jamais conseguia alcançar, porque o sonho-pesadelo terminava.
Pouco antes da libertação do campo pelo Exército Vermelho, Levi viveu um segundo "golpe de sorte". Ele pegou escarlatina, doença infecciosa, e foi internado na enfermaria. Assim evitou a "marcha da morte" com a brutal transferência dos prisioneiros: quem não conseguia andar e caia, era imediatamente morto. Os nazistas não queriam testemunhas de seus crimes.
Depois de muitas vicissitudes, o escritor-químico retornou para Turim, tentando reajustar-se à vida civil, mas teve que se encarregar de sua mãe e sogra, gravemente doentes. Levi, aos 67 anos, caiu e morreu das escadas de sua casa. Dizem que não tinha sido um acidente, mas talvez um suicídio. Não pode ser descartado. Da vida Primo Levi havia conhecido, como frágil valente, principalmente o pior.
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Memória do Holocausto. A coragem de lembrar e o dever de contar. A voz de Primo Levi no abismo de Auschwitz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU