10 Janeiro 2024
"A Declaração "Fiducia suplicans" abre uma brecha decisiva na totalização administrativa da Igreja: deixa um espaço para a profecia", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 08-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mesmo no último, mais recente e oficial comentário à Declaração "Fiducia supplicans", assinado por Alberto Cozzi e publicada em "Avvenire" de 6 de janeiro, uma correta avaliação do documento no plano “pastoral” parece deixar no não dito o papel que a bênção desempenha na vida da Igreja, justamente com a sua forma ritual. Negar o caráter ritual da bênção, na verdade, continua sendo uma maneira antiga de pensar, que requer alguns esclarecimentos. Talvez justamente essa declaração, que capta com lucidez o desafio atual, mas que o enfrenta com categorias um tanto forçadas, me pareça ser a oportunidade para um esclarecimento importante.
Por um lado, de fato, constatou-se, desde o primeiro aparecimento da Declaração, que essa comportava uma superação explícita e declarada do conhecido “Responsum” de 2021: aqui há uma importante descontinuidade disciplinar, à qual, no entanto, não corresponde uma exposição teológica igualmente clara. Existem três pontos fracos:
a) a contínua reafirmação de que a “doutrina permanece inalterada”, o que é apenas parcialmente verdadeiro;
b) uma noção de “bênção não ritual e não litúrgica” que parece bastante paradoxal;
c) uma necessária redefinição dos sujeitos que pedem a bênção (que não são simplesmente pecadores que precisa aprender a acolher)
Tentarei me debruçar sobre cada um desses pontos críticos:
O horizonte da “doutrina sobre o matrimônio”, que a Declaração recorda desde a sua introdução, estabelece uma noção de bênção que, na história do matrimônio católico, parece extremamente problemática. De fato, o desenvolvimento moderno específico da doutrina católica do matrimônio excluiu a bênção da substância do sacramento. A partir do Decreto “Tametsi” de 1563, a bênção não desempenha mais um papel substancial na concessão do sacramento, que se baseia simplesmente no consenso dos cônjuges, recebido pelo ministro ordenado segundo a forma canônica. Isso, porém, não pode fazer com que a Igreja esqueça que por cerca de 1500 anos foi precisamente a bênção a “unir” formalmente os esposos, pelo menos no plano sacramental.
Essa história complexa introduziu nas atuais preocupações doutrinais a exigência de uma distinção contínua entre “bênção litúrgica” e “bênção informal”, que de fato não tem precedentes históricos. A exigência de “não abandonar à maldição” todos as uniões “sem regra” é bem compreendida, mas a disponibilização de um instrumento “não ritual” parece proteger a instituição da responsabilidade profética de um reconhecimento efetivo e não clandestino.
Dessa forma, reabre-se uma dimensão “clandestina” das uniões que Trento havia tentado superar. Se compreendo e aprecio o fato de essa Declaração constituir uma descontinuidade em relação à anterior “proibição da bênção”, não entendo porque só possa ser pensada como “sem regras prévias”, sem livros, sem rituais, talvez até sem espaço e sem tempo.
Uma doutrina da bênção, como forma original do orar cristão e de benevolência de Deus, pede que antes de tudo na bênção haja espaço, tempo, uso da linguagem verbal e não verbal. Aqui, a meu ver, a preocupação em “salvaguardar a doutrina” confunde as bênçãos com os sacramentos e por isso as reduz incrivelmente a uma pontualidade sem publicidade. A bênção é um ato que envolve não só o bispo, o presbítero ou o diácono, mas toda a comunidade, queira-se ou não.
Precisamente sobre a “essência da bênção”, parece-me que o magistério litúrgico do século passado tenha sido largamente ignorado ou mal compreendido. Aqui ainda se encontra, na Declaração, a herança do mal entendimento presente no Responsum de 2021: ou seja, aquela de equiparar bênção e sacramento. A bênção, historicamente, foi entendida como “sacramental”, não como “sacramento”: isso significa que descende de uma instituição eclesial, não é instituída por Cristo; que é eficaz “ex opere operantis”, e não “ex opere operato”.
Originalmente essa categoria foi inventada no início do século XIII, para dar dignidade à bênção com que o Bispo era consagrado. Não sendo pensado como sacramento, o episcopado era um sacramental! É por isso que hoje poderíamos estar muito menos preocupados em garantir a natureza “não litúrgica” e “não ritualizada” da bênção. Essa necessidade revela um desnível nas categorias fundamentais com que pensamos a tradição. Precisamente por ser “profecia eclesial”, reconhecer as diversas formas de “comunhão de vida e de amor”, sem negar as suas diferenças e limites, pode e deve ter formas ritualizadas, ainda que não sacramentais. A bênção implica um regime formal, verbal e ritual que não deve ser confundido com a “regulamentação jurídica”.
A Declaração está certa nisso, que identifica bem a descontinuidade, mas a elabora com categorias antigas. Permanece de alguma forma enredada na pretensão moderna, típica do Decreto Tametsi, de um regulamento eclesial abrangente, que cobre simultaneamente as formas do consenso, da bênção e da regulamentação matrimonial.
A partir disso, especialmente no casamento, litúrgico passa a ser sinônimo de “oficial”. E então um padre que se identifica demais com um “funcionário público” terá dificuldades para ser profeta, não secretamente ou brevemente, mas abertamente e com todo o tempo necessário. Enquanto o Responsum o proibia, agora a Declaração o permite e quase o recomenda, mas em segredo e com tempos acelerados. “O mais breve possível” não pode ser a regra de uma virada pastoral, mas apenas aquela de uma solução diplomática e provisória.
Famílias irregulares são “desordenadas”. De acordo com o Responsum essa é a razão pela qual não podem ser abençoadas, pela Declaração essa é a razão pela qual podem ser abençoadas. Mas é essa definição de “desordem” que já não é mais adequada. Vem das taxonomias do pecado, que pensam as formas do mal de acordo com grandes categorias. Ser “contra Deus” e “contra o próximo” significa que não se pode abençoar o blasfemador por ser um blasfemador, ou o ladrão por ser ladrão.
Se o bem do casamento é a geração, uma união que não pode gerar por natureza torna-se “intrinsecamente má”. Essas categorias clássicas, que podem levar à sequência demasiado tosca do Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, quando reúne masturbação, estupro e homossexualidade como vícios da castidade, devem ser revistas, para que se possa abençoar, nos chamados casais irregulares, uma “comunhão de vida e de amor” que merece reconhecimento também eclesial.
A pastoral, aqui, requer uma nova leitura da doutrina, que use categorias atualizadas que ainda não elaboramos plenamente: não porque sejam impostas pela moda, mas para que possamos honrar os fenômenos reais, oferecendo verdadeiros esclarecimentos. Os casais divorciados e recasados e os casais homoafetivos não são “intrinsecamente maus” porque não respeitam a lei objetiva da “reserva da sexualidade para o casamento legítimo”.
As dimensões do pecado, que o limite das histórias pessoais entrelaça inevitavelmente (a injustiça face à primeira união, a incapacidade da geração biológica) são limites que devem ser reconhecidos, mas que não impedem a forma de vida e de amor que é a "segunda união” ou “união homoafetiva”. Sair da perspectiva que julga essas formas de vida principalmente pelo que negam e saber amadurecer uma visão capaz de reconhecer o que é afirmado naquelas comunhões de vida e de amor, pede à Igreja Católica uma doutrina atualizada.
A tradição é mais rica do que pensamos a partir do mundo moderno. A tradição sabe bem que a bênção é a linguagem mais livre da Igreja, que não deve ser previamente submetida a julgamento dogmático, como se se tratasse sempre de “fórmulas sacramentais”. A bênção mantém a sua liberdade quando permanece narrativa de vida, contextualização espacial e temporal, ato corporal, profecia comunitária, verdadeiro acolhimento. Por essa razão, o critério do escândalo, frequentemente utilizado como norma normans das bênçãos que têm por objeto as “relações afetivas e sexuais”, deve lembrar que era escandaloso, para a Idade Média e para a idade moderna, afirmar que o casamento era um “ato dos cônjuges” e não “dos pais e das famílias".
A grande luta que atravessou a Europa a partir das teorias dos canonistas medievais foi um verdadeiro “escândalo”. A Igreja soube reconhecer que a vontade dos noivos era superior à vontade das famílias de origem. Soubemos ser escandalosos e tivemos orgulho disso e ainda poderíamos e deveríamos ser. Não deveríamos ficar demasiado preocupados por sair da sociedade da honra, que culpabiliza todo comportamento “homoafetivo”, temendo que essa “falta de geração” seja uma ameaça para a sociedade. A abominação contra a natureza e contra Deus baseia-se nessa arcaica redução do casamento à “geração”, algo sobre o qual Jesus absolutamente nada diz. O “vínculo indissolúvel” entre homem e mulher pode surgir, talvez inesperado, mas real, no vínculo entre homem e homem, entre mulher e mulher. Com o limite da ausência de geração biológica, mas não sem fidelidade, não sem vínculo perene, não sem fecundidade social, contextual e pessoal.
Os atos administrativos podem ser pontuais, fora do espaço e do tempo. As bênçãos são narrativas que pedem espaço e tempo. É por isso que uma absolvição, uma crisma ou um batismo podem durar 10 segundos, enquanto uma bênção do crisma, da água ou do pão e do cálice requerem tempo e espaço, gestos e memórias, imagens e emoções. A divisão entre administração dos sacramentos e narrativas de bênção é um dos nossos problemas mais profundos. Na realidade, todo sacramento vive de bênção: abençoa-se a água, abençoa-se o crisma, abençoa-se o pão e o cálice, abençoa-se o óleo dos enfermos, abençoa-se o candidato ao ministério e abençoam-se os esposos. Mesmo o penitente não é simplesmente absolvido, mas entra na bênção de fazer penitência no coração, na boca e no corpo. Uma releitura dos sacramentos em relação à bênção é muito instrutiva. Acima de tudo, evita inverter as perspectivas e cair na armadilha de julgar as bênçãos com o critério de um "ato administrativo sacramental" e não o sacramento à luz da narração das bênçãos de Deus. A Declaração "Fiducia suplicans" abre uma brecha decisiva na totalização administrativa da Igreja: deixa um espaço para a profecia. O que, porém, não é nem pode ser simplesmente um “espaço alitúrgico”, porque precisamente a “liturgia da bênção” é o espaço originário dessa vocação pastoral. A pastoral mais profética não está aquém ou além da liturgia, mas precisamente no seu coração mais antigo.
Isso implica, no entanto, uma relação complexa entre doutrina e pastoral: a pastoral não é simplesmente uma “humanização” da doutrina, mas é também “fonte” de uma revisão doutrinal. Nisso, em comparação com a análise de A. Cozzi, parece-me que a proveniência da Declaração do Dicastério da Fé seja um sinal importante. Que possa haver uma mudança na doutrina sobre a guerra ou a pena não parece perturbar ninguém. Parece que, em vez disso, na regulação das relações sexuais, devemos nos empenhar para enfrentar 2.000 anos de fidelidade uniforme. Ninguém considera exagerada a condenação da guerra ou da pena de morte, mesmo em relação a culturas belicistas ou justicialistas. As diferenças culturais necessitam de uma pedagogia corajosa e paciente.
Mas quanto ao respeito pela homoafetividade, alguns pretenderiam uma total sintonia dos bispos com as tradições mais intolerantes. Como se o preconceito contra a homossexualidade estivesse contido no Evangelho. Como se as lógicas atávicas da honra tivessem que prevalecer contra as lógicas da dignidade. A diferença de tratamento das questões depende do fato de os pecados de soberba e raiva parecerem irrelevantes, enquanto o pecado sexual agigantou-se desmedidamente, quase se tornando o pecado por excelência.
Aqui há uma real perda de identidade, apresentada como resistência e pureza. Aqui, parece-me, dizer “pastoral” implica um trabalho sobre a doutrina que não pode ser negligenciado nem subestimado.
Trabalho sobre a doutrina não significa “mudar a doutrina”, mas traduzir as formas doutrinais expressas na “sociedade da honra” nas formas doutrinais “da sociedade da dignidade”.
Uma Igreja que não se sinta desonrada pelos divorciados recasados que a frequentam e pelos casais homossexuais que nela vivem evita assumir, mesmo oficialmente, aquelas formas de ocultação e de reserva embaraçosa que são o resquício de uma concepção totalizante e totalitária da sociedade e da Igreja.
É preciso prudência, isso é certo: mas ser prudentes em alguns casos significa frear, noutros significa pisar firmemente no acelerador.
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A bênção litúrgica e as categorias da doutrina. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU