04 Janeiro 2024
Em seu livro “Nella buona e nella cattiva sorte: gli omosessuali cristiani e la scommessa di costruire una relazione ‘per sempre'” (Na boa ou má sorte: os homossexuais cristãos e o desafio de construir uma relação ‘para sempre’, em tradução livre), G. Geraci oferece um quadro muito detalhado dos sentimentos e pensamentos que acompanham uma relação estável de amor entre pessoas do mesmo sexo. Algumas reflexões suscitadas pelo livro no plano teológico permitem um avanço não pequeno no corpo da Igreja, ainda dominada pela tentação de confundir ordenamento eclesial com ordenamento civil. O Prefácio, do qual publico aqui apenas a parte inicial, pode ser lido na íntegra fazendo download do volume, que está disponível gratuitamente aqui.
O prefácio é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O texto foi publicado por Come Se Non, 03-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
No pequeno volume escrito por G. Geraci li o reflexo de uma pesquisa que atravessa todo o campo da reflexão teológica do catolicismo do último século. Que se questiona, a partir de perspectivas muito diferentes, sobre a mesma questão: como podemos oferecer algum esclarecimento ao novo uso da palavra “amor”, tentando salvar o “fenômeno”? Aquilo que J.-L. Marion chamou de “fenômeno erótico” pede novos esclarecimentos em relação àqueles que a tradição nos ofereceu. Nesses novos esclarecimentos devemos integrar três acepções diferentes da palavra amor. Uma acepção “mística”, uma acepção “moral” e uma acepção “sentimental”. O amor é, ao mesmo tempo, o nome mais belo de Deus feito homem, a tarefa mais elevada do homem criado e salvo e a paixão mais forte do corpo de carne e de espírito. Amar implica o corpo de Deus, o corpo do outro e o próprio corpo. Por isso, amar é em primeiro lugar uma questão de “tato”, de “vontade” e de “mandamento”.
Até a teologia descobriu que havia confundido os planos e que havia falado do amor, mas não muito em relação ao casamento. E que falou sobre casamento, mas não muito em relação ao amor. Assim, foi fácil para a teologia católica ficar literalmente escandalizada pela pretensão de tornar o amor presente no casamento uma “experiência comum” para todos os homens e as mulheres. Esse desenvolvimento tardio-moderno, que personalizou a instituição matrimonial, tornou permeável o casamento ao sentimento do amor e ao amor como paixão. Esse desenvolvimento enriqueceu e complicou simultaneamente o quadro institucional e normativo. Se “consenso” e “exercício do direito sobre o corpo do outro” são agora mediados pelo sentimento, pela emoção, pela paixão, a sua relação não pode ser gerida apenas no plano dos contratos e dos contatos: o coração apaixonado e a dependência do outro tornam-se elementos insuperáveis de todo vínculo que leva o nome de “casamento”: a forma do amor marca o modo como os homens e as mulheres se unem, cuidam uns dos outros, geram e tornam presente o mistério de Deus.
O automatismo que faz de cada “casamento entre batizados” um sacramento é um princípio que simplifica a burocracia, assegura a lei objetiva, mas complica as experiências pessoais e as consciências eclesiais. Sobre essa linha limítrofe, sutil mas decisiva, coloca-se hoje também a reflexão sobre o “amor conjugal” como possibilidade referente não só à relação entre homem e mulher, mas também à relação homoafetiva. O nome de Deus, que é amor, torna-se princípio de uma tarefa de amor, e ilumina-se de emoção, paixão e sentimento, para todos aqueles que amam de forma estável, fiel, resistente, de maneira quase obstinada. Pois é: a persistência obstinada e forte na relação amorosa diz respeito também à relação homoafetiva. Por essa razão, torna-se relevante e significativa também para a teologia cristã.
A possibilidade de estender o amor conjugal também à relação homoafetiva implica a disponibilidade para entrar, com o coração e o intelecto, na forma concreta dessa relação. Uma longa tradição teológica manteve-se bem distante dessa possibilidade, principalmente desqualificando moralmente tal relação, definindo-a a priori como “contra a natureza” e “desordenada”. A dimensão “contra a natureza” e a “desordem” derivavam essencialmente de uma conotação que não habilitava a relação homoafetiva à geração. Dado que, durante muito tempo, justamente esse bonum do gerar filhos foi o principal critério de justificação de todo exercício da sexualidade heterossexual, a possibilidade de conceber como legítima uma relação entre dois homens (ou entre duas mulheres) era percebida como uma contradição com a realidade natural e com a dimensão institucional, por serem percebidas como normativas. Enquanto a “sociedade da honra” pôs essa visão como regra incontornável de respeito social, não havia nenhuma possibilidade de imaginar um “conjúgio legítimo” que excluísse, por princípio, toda geração de prole.
Neste volume, G. Geraci procede a uma demonstração “a partir da experiência” – diríamos de baixo e a posteriori, escrita com o intelecto e o coração – dessa possibilidade tradicionalmente excluída por princípio (ou, melhor, por preconceito). Se em teoria podemos sempre demonstrar como possível uma realidade, pode acontecer que de fato a realidade antecipe a teoria e mostre antecipadamente tal verificação. Assim, se algo tiver sido vivido como real, resultará vão e quase cômico demonstrar a sua impossibilidade.
A posição que o magistério católico tem assumido sobre o tema reiterou em muitos casos esse “princípio não demonstrado” (mas considerado totalmente convincente): toda relação homossexual seria “em si” incapaz de uma verdadeira alteridade e, portanto, se reduziria a “autocomprazimento”. Ou seja, seria apenas sentimento, emoção, paixão, sem qualquer dimensão de função, de responsabilidade e de testemunho.
Se é verdade que as relações heterossexuais e a relação homossexual não são iguais, é igualmente verdade que as diferenças não impedem de descobrir numerosas analogias e profundas semelhanças. Acima de tudo, não se pode descartar de forma alguma que uma relação homoafetiva possa ser uma experiência de alteridade, uma prova do caráter, um exercício das virtudes, atestação da fidelidade, função de uma relação “individual” e “para sempre”. No texto de Geraci, que não se nutre apenas de experiência direta, encontramos uma longa citação de um texto de Albino Luciani, escrito antes de se tornar Papa João Paulo I, no qual são recordadas algumas sábias palavras de São Francisco de Sales a respeito da relação de amor conjugal. Aquele texto, que remonta à década de 1970 e foi escrito exclusivamente em relação às relações heterossexuais fiéis e indissolúveis, pode ser aplicado hoje, sem dificuldade, também às relações homossexuais. Esse fato, na sua realidade, já passou no teste da possibilidade. A Igreja não deve declarar impossível o que é real, mas é convidada a perguntar-se por que as suas categorias não conseguem honrar a realidade e preferem defender-se dela, não reconhecendo a sua qualidade. Um conceito de “natureza” demasiado rígido e cego impede a doutrina de ver a realidade. A realidade de um “conjúgio” diferente do “casamento” poderia ser reduzida a uma construção ideológica contemporânea, mas talvez poderia ser apenas uma categoria clássica - bem presente ao longo da história - hoje capaz de ler a relação conjugal não apenas em termos de geração, mas também em termos de fidelidade e estabilidade[1]. Poderíamos talvez pensar que seja também a Igreja, e não apenas muitos Estados modernos, a considerar a experiência do amor fiel e indissolúvel entre pessoas do mesmo sexo como um “bem a proteger”? Será que poderia acontecer que a luta contra a institucionalização da relação homoafetiva se torne uma esperança e uma sugestão de um reconhecimento institucional e eclesial?
Uma teologia que não olhe apenas para trás, mas também para frente - pois o Senhor que já veio ainda está por vir - pode ajudar o Magistério da Igreja a reconhecer esses fatos como portadores de "bens" e a salvaguardar a substância da antiga doutrina do depositum fidei não só aceitando, mas também promovendo a sua urgente “reformulação”. Todo batizado em Cristo entra numa vida casta, isto é, numa vida de seguimento do Senhor, nas formas de existência que se abrem diante do caminho de cada um. A castidade é ameaçada pela falta de fé, de esperança e de caridade. A castidade é ameaçada pela falta de justiça, de prudência, de temperança e de coragem. A castidade é ameaçada pela soberba, pela inveja e pela ira. Os “vícios da castidade” são muito mais amplos do que a seca lista com que o catecismo os enumera, numa sequência que hoje parece pouco meditada, inspirada mais pela proibição de “atos impuros” do que pela sede de “vida santa dos discípulos do Senhor”. Nessa lista, como reproposto rudemente pelo Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, lemos:
“São pecados gravemente contrários à castidade, cada um segundo a natureza do objeto: o adultério, a masturbação, a fornicação, a pornografia, a prostituição, o estupro, os atos homossexuais" (Compêndio CIC, 492).
Quanta rudeza na sequência, construída por amontoação, sem verdadeiro discernimento. Quanta fineza relemos, ao contrário, nos maiores autores medievais. Pedro Lombardo tem, a esse respeito, uma frase elegantérrima:
“Melior est virginitas mentis quam carnis” (Sententiae, D. 33).
Uma das coisas belas que a nossa época é capaz de nos fazer desfrutar é o fato de retornar à grande tradição, passando pelas experiências que emergem no coração da "sociedade da dignidade", bem além das formas civis e eclesiais da sociedade da honra. A sociedade da igualdade, com todos os seus limites, mostra-nos os abismos de injustiça da sociedade da diferença e da preferência. O apelo que a tradição faz à “vida casta” diz respeito a todos os estados de vida. Existe uma castidade celibatária e existe uma castidade conjugal. Existem analogias e diferenças entre castidade e continência, que nunca podem ser reduzidas nem à identidade nem à oposição. Isso vale tanto para a orientação heterossexual quanto para a orientação homossexual. As páginas que Geraci escreve sobre a “castidade” são exemplares e abrem possibilidades para uma nova interpretação, motivada pela dignidade da igualdade, e não pela discriminação da diferença. (continua).
[1] Parece que C. Scordato move-se nessa direção em sua contribuição Chiesa cattolica e “coniugio omosessuale”: realtà e possibilità, in A. Grillo – C. Scordato, Può una madre non benedire i propri figli? Unioni omoaffettive e fede cattolica, Cittadella, Assisi, 2021, p. 57-84.
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Fidelidade homoafetiva: um livro de G. Geraci. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU