Três passos falsos dos bispos diante da “Fiducia Supplicans”. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Ranyel Paula | Cathopic

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05 Janeiro 2024

"As diferenças culturais devem certamente ser consideradas e fazem parte daquilo que os bispos devem avaliar sacramentalmente: mas uma teologia atrasada, e achatada sobre as formas da sociedade da honra, é prejudicial na África como na Europa, em Paris como em Montevidéu, fazendo com que as pequenas coisas se tornem grandes e as grandes pequenas", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 04-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Procurei compreender as razões fundamentais que levaram uma série de bispos e episcopados a rejeitar o texto da Fiducia Supplicans e tentar esvaziá-lo de todo significado efetivo e operacional.

Acredito poder identificar essas dificuldades em três pontos-chave da tradição, dos quais esses bispos – por razões não uniformes e não lineares – demonstram não estar conscientes. Parece-me que seja decisiva uma autocompreensão episcopal não sacramental, uma leitura de sexo com a categoria predominante de ato impuro e uma leitura apenas tridentina do casamento. Tentarei explicar cada um desses problemas de forma concisa.

  • a) Talvez não seja do conhecimento, nem mesmo dos bispos, que com o Concílio Vaticano II a Igreja Católica recuperou uma visão sacramental do episcopado, que durante quase um milênio havia saído da consciência e da reflexão católicas. Isso significa que o Bispo não é mais primariamente o titular de um “poder de jurisdição” (que diz respeito ao governo e à palavra), mas é a testemunha dos “três dons” (tria munera) que todo batizado recebe em Cristo, e que encontram uma forma específica de realização no “ministério ordenado”, agora pensado precisamente em relação ao munus profético, ao munus sacerdotal e ao munus régio. Se um Bispo deixa de lado, hoje, a dimensão profética e sacerdotal do seu “officium” (que é um dom), pode sentir-se quase ofendido e, em todo o caso, desorientado por uma iniciativa que o “bispo de Roma”, que conhece bem essa evolução decisiva, determina no plano da disciplina eclesial. O Bispo “pré-conciliar” (no coração e na mente) tende a interpretar-se como o guardião de uma “doutrina e disciplina” que administra, com um controle direto sobre todas as “palavras” que se usam. E acabaria facilmente por condenar como um erro a própria Declaração! O novo modelo de bispo, que se inspira numa experiência mais antiga, sabe que também é chamado a ser profeta e a abençoar as diversas formas em que o bem se apresenta no meio do povo de Deus. Por isso deve saber que é o “vértice” daquele sacramento da ordem, que não é apenas “administração de governo”, mas “possibilidade de profecia” e “lugar de celebração” no centro e na periferia. Ele não tem como princípio decisivo “não escandalizar”, mas dar palavra à Palavra de Deus que não se identifica com as tradições humanas. E que a “desonra” deve ser relida como “demanda de dignidade”.

  • b) Ao lado dessa primeira razão, parece-me clara uma segunda sujeição que marca as reações destes Bispos desconcertados. E é a primazia que o “pecado sexual” assumiu na autocompreensão eclesial a partir do século XVII. Se Roma fala em superar a “pena de morte” como sanção, ou a “guerra” como remédio diplomático, é pouco provável que os Bispos se desesperem porque uma evidência da tradição é posta em jogo. Se, no entanto, se toca na dimensão dos “atos impuros” e se sai da constrição (muito recente) de pensar masturbação e genocídio na mesma (tosca) categoria de “atos intrinsecamente maus”, a reação a uma sábia explicitação dos níveis de relação com o bem torna-se cega e quase furiosa. Também pode ser expressa de forma mais direta e velada, mas revela a incapacidade de sair de uma leitura burguesa (ou tribal) do pecado. A soberba e a ira não têm peso, mas a luxúria sempre parece colocar em jogo Deus e a natureza. Dessa forma, querendo preservar a tradição, destruímo-la.

  • c) O terceiro nível de inadequação dessas posições episcopais, que vieram à luz depois de 22 de dezembro de 2023, reside numa compreensão meramente tridentina do casamento e do papel que a Igreja Católica exerce em relação a ele. Se continuarmos a pensar que “o casamento entre dois batizados seja ipso facto sacramento”, então a imediatez da competência tende a ser totalizante e a tornar quase impossíveis todas as necessárias distinções que a Igreja Católica utilizou até 1563 e que depois em grande parte perdemos. A própria Declaração, no início do seu texto, tenta tranquilizar o episcopado e os fiéis, e faz isso com linguagem tridentina. Naquela linguagem, reforçada pelos códigos de 1917 e 1983, resta um espaço exíguo para a profecia eclesial. A Declaração se colocou de forma decisiva nesse espaço, que reconhece tanto a nova compreensão do episcopado quanto a diferente leitura da dimensão sexual do pecado e da graça.

Se combinarmos esses três níveis de inadequação nas mesmas pessoas (bispos, presbíteros e/ou fiéis), entende-se a rudeza das reações e a falta de relação entre as palavras e as coisas. As diferenças culturais devem certamente ser consideradas e fazem parte daquilo que os bispos devem avaliar sacramentalmente: mas uma teologia atrasada, e achatada sobre as formas da sociedade da honra, é prejudicial na África como na Europa, em Paris como em Montevidéu, fazendo com que as pequenas coisas se tornem grandes e as grandes pequenas. Relendo a demanda de dignidade como falta de honra e temendo principalmente que a relação com formas “irregulares” pareça desonrar a Igreja e a tradição. Fazendo depender da fuga da desonra o sentido do episcopado, o valor da castidade e o sentido do casamento. Aqui há pelo menos três pontos de analfabetismo eclesial, que afetam a cultura e a prática de bispos, talvez viciados pela ilusão de poder perpetuar ainda hoje um modelo de Igreja, de moral e de casamento que o Concílio Vaticano II começou profundamente a repensar.

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